Nos EUA, um desconhecido sem um único documento válido elegeu-se presidente sem que ninguém no Parlamento ou na mídia ousasse sequer perguntar pela sua identidade, e, após oito anos de um governo desastroso e uma série inumerável de crimes, vai chegando ao fim do segundo mandato contando ainda com invejável popularidade e envolto numa aura de glamour praticamente indestrutível.
Em vários países da Europa, militantes e terroristas islâmicos camuflados sob o rótulo de “refugiados” matam e estupram à vontade, gritando aos quatro ventos sua intenção de derrubar os governos locais, enquanto esses mesmos governos os protegem e adulam ao ponto de manter as portas de seus países abertas para que eles continuem entrando em números crescentes e de proibir qualquer palavra mais forte que se diga contra a religião deles.
No Brasil, com Dilma ou sem Dilma, com Lula ou sem Lula, com PT ou sem PT, a hegemonia cultural da esquerda continua em vigor, inalterada e inabalável, dominando amplamente as universidades, a mídia e uma parte considerável da classe política.
Todos esses fenômenos e outros tantos similares, são ao mesmo tempo expressões e resultados de uma modalidade de ação histórico-política altamente complexa, denominada genericamente de “guerra cultural”.
Como essa expressão é usada também para denominar muitos outros fenômenos diferentes, como a competição natural entre culturas, a absorção de uma cultura por outra mais forte, o imperialismo cultural, a propaganda política e a doutrinação de militantes, o processo em referência continua muito difícil de apreender intelectualmente em sua unidade essencial, e mais difícil ainda de combater. Não existe, no debate público, nem mesmo clareza sobre quem são os agentes da guerra cultural: São governos? São partidos políticos? São entidades religiosas? São grupos financeiros bilionários? São sociedades secretas? É alguma classe social em particular? São forças sociais impessoais e anônimas que convergem espontaneamente no sentido de produzir certos resultados impremeditados?
Mais ainda, a própria denominação “guerra” sugere uma disputa, um confronto de forças opostas, condição que nem sempre – ou quase nunca – se cumpre. Na maior parte dos casos, os guerreiros culturais não encontram nenhum inimigo pela frente e limitam-se a arrombar portas abertas. Um dos elementos centrais da sua estratégia consiste precisamente num conjunto de procedimentos destinados a neutralizar de antemão qualquer possibilidade de resistência.
Nada mais urgente, não só neste país como em muitos outros, do que compreender claramente a natureza, as estratégias e o modus operandi da guerra cultural.
Cultura não é um objeto sensível, capturado pelos sentidos, mas apenas vislumbrado através de uma complexa construção imaginativa fazendo uso dos elementos que recebemos dela mesma, sendo a única maneira de chegarmos a ter um desenho da própria cultura é saindo de dentro dela, observando-a desde outros pontos de vista.
Isto implica dificuldades, sendo a primeira o fato da cultura só chegar ao nosso conhecimento através da documentação escrita, sonora e plásticas, cuja unidade será diferente para cada indivíduo. A própria personalidade humana é construída com elementos vindos da cultura, ou seja, a cultura está dentro de nós – nossa personalidade, valores, símbolos, sentimentos, expectativas e temores nos quais nos reconhecemos.
Assim, o primeiro material a nossa disposição para compreender o que é cultura, e de como as culturas podem entrar em guerra, somos nós mesmos – um processo de autoanálise retrospectiva, uma psicanálise cognitiva interior. Tomar consciência das influências culturais que determinaram o nosso universo psíquico – nossas ideias, aquilo que aparece em nossos sonhos, nossos sentimentos mais íntimos, os julgamentos que fazemos dos acontecimentos do dia a dia, as reações que temos perante a conduta de outras pessoas, tudo isso nós absorvemos da cultura. Nossa liberdade, nossa individualidade depende desta consciência autobiográfica.
No caso brasileiro esta introspecção é ainda mais difícil pela inexistência de uma tradição histórica autoconsciente – uma inconsciência histórica revelada no desconhecimento dos fatores passados que estão pesando sobre nossa presente vida mais interior. Isso ocorre não apenas com relação a história remota, mas também com a história recente, e.g. a larga ignorância com relação aos fatos envolvendo o contragolpe de 1964 (deturpada por grupos de interesse). A perda dessa referência histórica é também uma perda do senso da temporalidade. Atualmente uma música é considerada antiga depois de até menos de cinco anos, o prazo de duração dos elementos na memória vão se estreitando cada vez mais. Neste ambiente a cultura corre o risco de transformar-se num mero fetiche.
Outra dificuldade na definição da cultura é a noção dela estar inevitavelmente ligada à ideia de culturas nacionais, como um segundo sinônimo de nacionalidade. Quando o fato é que as fronteiras culturais não coincidem, de maneira alguma, com as fronteiras geográficas nacionais, e.g. o próprio antiamericanismo sentido por segmentos da sociedade brasileira é uma importação do próprio EUA.
Por mais que a cultura se identifique com a personalidade individual, o compartir do meio social cria um horizonte de consciência coletivo, ou seja, é um conjunto de fatos e ideias que todos conhecem, e que serve como o vocabulário pelo qual as pessoas se entendem. Daí a necessidade de transcender os limites da própria cultura, ampliando o horizonte de consciência, para abranger não só outras culturas no sentido geográfico, mas no sentido temporal.
Uma terceira dificuldade é identificar os agentes culturais, as personagens que buscam influir no nosso imaginário e na nossa construção da imagem da cultura. Por vezes o indivíduo sai de uma para outra cultura, reestruturando sua personalidade, sem dar-se conta disto – mas seguramente há alguém por trás deste processo compreendendo ser o resultado de ações intencionais.
Tenhamos em mente que não existe guerra ideológica, mas apenas guerra cultural. Ideologias podem ser discutidas racionalmente, com os fatos e a lógica sobrepondo uma à outra – é mais fácil se despir de um discurso ideológico. Mas na guerra cultural uma mudança de curso implica rever a própria personalidade, pois não se trata da adesão racional a uma doutrina, mas da participação emocional e imaginativa em uma cultura. Por isso é comum, por exemplo, um ex-marxista adotar algum outro discurso revolucionário com o engodo ecológico ou o devaneio sobre sexos. A guerra cultural não se trava na esfera das ideologias, mas numa esfera psicológica mais profunda – o inconsciente humano.
O eterno adiamento da implementação do novo mundo revolucionário faz parte da própria dialética interna da revolução. Os objetivos proclamados da revolução não podem ser atingidos, pois a revolução nega todos os valores existentes e se afirma a si própria como um valor supremo que não pode ser julgado por nenhum dos outros. Desse modo, a revolução só pode ser julgada por si mesma. Por isso mesmo, ela jamais pode se transformar num estado de coisas estabelecido, porque esse estado de coisas será julgado de acordo com outros interesses. Por exemplo, a população não atendida pelas promessas revolucionárias julgaria e condenaria a revolução, e isso não pode acontecer jamais.
Esta impossibilidade, somada a inviabilidade econômica do comunismo, explica o investimento das grandes fortunas e grupos econômicos nas ideologias de esquerda – um movimento de conflito planejado e controlado. Por exemplo, quanto mais se dissolve as famílias, mais as pessoas são reduzidas a átomos soltos, sem raízes em valores próximos, ficando como ovelhas desgarradas, e facilmente integradas num círculo de referência maior, seja o criado pelas grandes empresas ou pelo Estado. Hoje vemos o grande capital implementando controles sociais inimagináveis aos grandes tiranos da história, e.g. carros e celulares com GPS identificando os movimentos da cada um.
A velha oposição entre capitalismo e socialismo já não expressa a realidade do que está se passando (se é que algum dia o fez). O que se tem efetivamente é uma guerra cultural na qual os inimigos não se definem por linhas de diferenciação ideológicas, mas pela quantidade de controle que eles podem ter em suas mãos. Existe muita pouca diferença entre um Estado socialista – nominalmente socialista, como ainda é a China – e um Estado dito capitalista, onde as grandes empresas em associação com o Estado, exercem o controle sobre toda a população.
A presente guerra cultural é travada entre uma cultura mundial de centralização e acumulação ilimitada de poder e todas as culturas que ela vai abrangendo neste processo.
A guerra cultural visa a dominação das consciências e das personalidades, forjar consciências e personalidades que estejam de acordo com as necessidades do grupo dominante. Ter consciência disso, rompendo os limites de consciência impostos, é o primeiro passo para preservar nossa autonomia, e, dependendo da natureza de cada um, ser uma força de resistência.
Isto não se relaciona com nenhuma corrente política, pois a atividade política é a luta pelo poder, e todo poder busca sua concentração (ver O Poder: História Natural de seu Crescimento de Bertrand de Jouvenel). Nenhuma corrente política coincide com a causa da liberdade humana. Napoleão Bonaparte disse uma frase terrível: “a política é o destino concreto do nosso tempo”, ou seja, que dali para diante tudo se transformaria em política, e a disputa de poder se tornaria a chave explicativa de tudo. Isto escraviza a todos, pois qualquer iniciativa que se tenha no sentido da liberdade humana será reaproveitada dentro da luta de um grupo pela centralização de seu poder. E é exatamente disso que nós temos que nos libertar.
Esta liberdade só pode ser alcançada se conhecermos a história verdadeira, i.e. se conhecermos de onde as coisas surgiram e quais os valores originários que as inspiraram. E para isto a eliminação do efeito cronocêntrico é providência preliminar. Uma sociedade com um número suficiente de pessoas com um horizonte de consciência saudável impõe maiores dificuldades para a implementação de sistemas totalitários.
O agressor na guerra cultura inibe o horizonte de consciência sobre a realidade, enquanto povoa a imaginação de suas vítimas com informações que atendem ao seu interesse. Para tal, a indústria de entretenimento é fundamental, pois a imagem que as pessoas fazem da realidade é determinada maciçamente pela ficção, e não pela informação, e.g. a esmagadora maioria das pessoas interpretam a Guerra do Vietnã pelos filmes,e não pelos livros de história. E a ficção é depois incorporada no material pedagógico e impregna o noticiário – guerra cultural é uma batalha travada no campo da imaginação (a imaginação é mais influente que a realidade porque enquanto a realidade está permanentemente em fluxo, a imaginação estabiliza e se repete). Muitas lendas, como as em torno da Queda da Bastilha ou Sierra Maestra, foram criadas ficcionalmente.
As palavras também são empregadas nesta guerra, tornando-se chaves interpretativas. Palavras como ‘fascista’, ‘direitos humanos’, ‘igualdade’, ‘homofobia’, etc., são desprovidas de sentido semântico e histórico, e transformadas em alegorias emocionais.
Há importantes exemplos de guerra cultural ao longo da história, um deles é a empreendida pela Reforma Protestante contra a Igreja Católica – a campanha difamatória mais longa, universal e bem-sucedida da história humana, começando no meio do século XVI e prolongando-se até hoje em modo crescente (o modelo protestante foi reutilizado pelos iluministas no século XVIII e pelos comunistas a partir do século XX).
Ação histórica ocorre quando os meios de ação utilizados continuam existindo depois da extinção dos seus primeiros protagonistas. A ação histórica requer a continuidade ao longo das gerações, e para tal demanda ‘reprodução’ (termo cunhado por Pierre Bourdieu), ou seja, os hábitos, valores, habilidades, e técnicas que estão de posse da primeira geração têm que ser transmitidas às seguintes, formando o tipo de personalidade adequada para a continuidade daquela ação.
A história do Brasil é marcada por uma sucessão de várias ações históricas, separadas e de curta duração. O atual movimento conservador brasileiro carece do entendimento das demandas temporais e sacrifícios pessoais que uma ação histórica exige, e por isso está destinado ao fracasso.
Nações e estados não são agentes históricos, mas apenas estruturas administrativas e militar da qual os agentes históricos se apossam e utilizam. Também nenhuma classe social pode ser agente histórico em função do contingente de pessoas que a compõe, e de sua natureza pública (não secreta) – na Revolução Francesa, por exemplo, vemos que grande parte das famílias que enriqueceram depois da revolução, e se tornaram a classe burguesa, eram de origem aristocrática.
Agentes históricos são as grandes religiões pela sua grande continuidade temporal. Esta mesma continuidade histórica é observada em organizações esotéricas, e.g. maçonaria. O movimento comunista também é um agente histórico, assim como as famílias dinásticas como os Habsburgo, Rothschild, e Rockfeller. Todas apresentam a natureza exigida para agir na história: visão de longuíssimo prazo, demanda de sacrifício pessoal, lealdade irrecusável, e cerco da personalidade (levando a psicopatia no caso comunista).
A efetividade de um movimento político exige minimamente ter uma elite intelectual capacitada para discutir entre si, de maneira discreta, um diagnóstico da situação até se ter uma ideia do panorama. E, a partir daí, montar um sistema de informações para alimentar essa discussão, sendo que da elite intelectual e do sistema de informações surge um grupo de pessoas qualificadas que estudarão cenários e ações possíveis, e nutrirão as tomadas de ação do comando – sem isso, não existe nada (ou seja, não existe hoje um movimento de direita).
Todo conhecimento, ensina Susanne K. Langer (1895-1985) no seu já clássico An Introduction to Symbolic Logic (1937), começa com a percepção de uma analogia. Analogia é um símbolo que não traduz diretamente uma realidade, mas uma constelação de impressões entorno dela – a primeira coisa que se apreende da realidade não é o fato em toda a sua pureza, mas um conjunto misturado de impressões. É analisando essas impressões que se forma aos poucos o conceito descritivo apropriado daquela realidade, tornando possível a discussão racional, culminando as vezes num conhecimento científico bastante sólido.
Quem leu Aristóteles em Nova Perspectiva (1996), sabe que, segundo o fundador do Liceu, todo o processo de conhecimento começa na elaboração imaginativa e simbólica dos dados apreendidos, sem a qual é impossível saltar diretamente para a esfera dos conceitos da análise dialética e da prova lógica. Ou seja, a inteligência não conseguiria operar diretamente em cima dos dados dos sentidos, não só porque eles são enormemente confusos, mas porque estão sempre em fluxo. Logo, primeiro é preciso focar a atenção através dos sentidos, e mais ainda através da memória e da imaginação. O símbolo, como resume Langer, é matriz de intelecções.
Por isso, é que as primeiras reações da mente humana ante as grandes mutações e tragédias da existência coletiva, assumem logo a forma de obras de arte – poéticas, narrativas, teatrais e as vezes até musicais e pictóricas –, antes de se converterem em análises sociológicas ou mesmo em livros de história. Esse é um dos sentidos em que se pode interpretar o dito de Aristóteles segundo o qual “a poesia é mais verdadeira que a história”. A verdade da história está prefigurada, ainda que nebulosamente, na verdade da invenção poética, e nunca passa da exploração de algumas das linhas de forças ali contidas.
Mais ainda, ensina Aristóteles que a imaginação – que ele chama de fantasia – é o primeiro grau do processo abstrativo que vai dos fatos aos conceitos. É nela que se efetua a primeira triagem que separa o acidental do essencial, conservando na memória somente este último, já adotado de uma forma estável sobre a qual a inteligência poderá então operar novas distinções até chegar ao conceito descritivo, claro, e cientificamente válido.
Benedetto Croce (1866-1952) definia a poesia, e arte em geral, como “expressão de impressões”. Se o indivíduo não consegue sequer expressar as impressões que recebe de um fato, como ele chegará a uma descrição objetiva do próprio fato?
Dependendo da maior ou menor sensitividade do artista aos indícios sutis e quase imperceptíveis colhidos no ambiente mental entorno, certas obras podem mesmo antecipar quase que profeticamente grandes mutações históricas ainda em germe. Os Demônios, de Dostoiévski, anunciam enfaticamente o morticínio comunista. E aspectos fundamentais do nazismo aparecem nos filmes de Fritz Lang, O Testamento de dr. Mabuse e O Vampiro de Dusseldurf.
(No caso de Os Demônios, Dostoiévski antecipou não somente o morticínio, mas também uma tática fundamental do comunismo. Pois um dos personagens principais incendeia uma favela para criar uma crise social e em seguida denunciar o que aconteceu. É a famosa frase do Lênin, “xingue-os do que você é, acuse-os do que você faz”, que já está ali com 40 anos de antecedência. Ou seja, isso não tinha acontecido, o Dostoiévski simplesmente percebeu que era isso que estava na mente das pessoas, que elas iam fazer isso porque era essa a forma mentis delas.)
Mas, isso também quer dizer que a possibilidade de uma compreensão racional dos fatos depende de uma forte reação imaginativa inicial. Sem isso, qualquer tentativa de chegar ao nível dos conceitos descritivos se perderá em mil detalhes irrisórios e não obterá, na melhor das hipóteses, senão um simulacro persuasivo de conhecimento científico.
Temos um exemplo disto na diferença entre as reações da esquerda e da direita brasileiras em situações de derrota e perigo. Entre 1964 e 1967 alguns destacados escritores e artistas de esquerda alijados do poder e sentindo-se ameaçados de uma efetiva expulsão de toda atividade política, começaram a produzir romances, novelas, peças de teatros e filmes que expressavam imaginativamente a sua experiência imediata do novo estado de coisas. Nenhuma dessas foi obra de mera propaganda, eram todas obras de artes no sentido mais genuíno da palavra. Com maiores ou menores méritos, algumas incorporaram-se definitivamente ao panorama da alta cultura nacional.
Poucos meses após a derrubada do Presidente João Goulart, o poeta e romancista Lêdo Ivo já retratava satiricamente na novela O Sobrinho do General (1964) a tragicomédia de um país cuja existência histórica consistia em passar de golpe em golpe, de revolução em revolução, sempre na esperança de com isso prevenir novos golpe e revoluções.
Em 1965 a peça Liberdade, Liberdade de Millôr Fernandes (1923-2012) e Flávio Rangel (1934-1988) condensava num pot-pourri de textos clássicos, os valores de liberdade e democracia que então pareciam condenados a extinção, no entender desse grupo.
No mesmo ano, o filme de Paulo Cesar Saraceni (1933-2012), O Desafio, ilustrava um tanto canhestramente, tanto que é um filme francamente mal, o drama do intelectual de esquerda comprometido por ligações íntimas com a classe dominante e subitamente desprovido de meios de ação cultural ou política na nova situação vigente – refletindo a situação da intelectualidade esquerdista naquele momento.
O tema ainda nesse ano seria retomado em Terra e Transe, de Glauber Rocha (1939-1981), e no filme de Luiz Sérgio Person (1936-1976), São Paulo, Sociedade Anônima, no qual o intelectual de esquerda se degrada e se dissolve num ambiente de triunfalismo burguês. A Hora e Vez de Augusto Matraga de Roberto Santos (1928-1987), livre adaptação cinematográfica da novela de João Guimarães Rosa, já introduzia o tema da violência redentora, antecipando as guerrilhas, que após o fiasco das ligas camponesas, anterior ao golpe militar, eram então uma hipótese remota rejeitada pela cúpula do Partido Comunista Brasileiro – o filme já era uma tomada de posição dentro dessa discussão.
O romance de José J. Veiga (1915-1999), A Hora dos Ruminantes (1966), ampliava o quadro sociológico da descrição, mostrando toda uma sociedade na qual os mecanismos de controle ultrapassavam a esfera pública, invadindo a vida privada e a intimidade das consciências. Ficava subentendido que era a isso que tendia o novo regime – isso evidentemente impressionava muito as pessoas, não porque estivesse acontecendo, mas porque insinuava que poderia acontecer. No ano seguinte, Marques Rebelo (1907-1973) na novela O Simples Coronel Madureira, voltava ao tom satírico de Lêdo Ivo, retratando a
classe militar como um bando de simplórios.
Mas dois romances de grande porte, Pessach: a Travessia, de Carlos Heitor Coni (1926-2018) e Quarup, de Antonio Callado (1917-1997), retomava o tema do destino do intelectual na situação vigente. O primeiro contava a história de um boêmio apolítico, alter ego do autor, que levado pelas circunstâncias acabava se envolvendo na guerrilha, que então já se formava. O segundo, Quarup, introduzia espetacularmente quatro novos temas que viriam a ter uma importância decisiva nos anos subsequentes: a teologia da libertação – o personagem é um padre –, as culturas indígenas como um núcleo de resistência a civilização do ocidente, e a liberação sexual e as drogas como instrumento de dissolução da ordem vigente. Naquele tempo ainda não havia muita droga em circulação e usavam o lança-perfume como droga – tem uma capítulo inteiro de alucinação por lança-perfume que seria a suposta libertação interior do personagem, cujo o último ato, depois de uma série de peripécias, será ir para guerrilha; e o padre larga a batina e também acaba virando guerrilheiro, fato este que aconteceria muitas vezes nos anos seguintes.
No mesmo ano, um novo filme de Luiz Sergio Person, O Caso dos Irmãos Naves, retratando com detalhes escabrosos um caso de erro judiciário ocorrido no tempo da ditadura Vargas, aludindo sem muita sutileza ao novo fantasma que assombrava as almas esquerdistas: a ameaça da tortura. As denúncias de tortura ainda não haviam se tornado endêmicas, mas elas já estavam nos filmes – todas essas obras antecipavam acontecimentos históricos. Os autores não se importavam se refletiam adequadamente o estado de coisas, em geral ampliavam histericamente suas próprias ilusões como o uso descarado de velhas lendas urbanas, e.g. o cemitério secreto de bebês de monjas em Quarup, ou o líder comunista com os genitais torrados a maçarico em Pessach – fatos nunca ocorridos.
Exagero histérico no mais alto grau, era o controle social das consciências em A Hora dos Ruminantes de Jose J. Veiga, que nunca esteve sequer nos planos da ditadura militar, e que somente os próprios esquerdistas viriam a implantar mais tarde por meio da hegemonia e ocupação de espaços. Mas no contexto, mesmo essas absurdidades se encaixavam bem nas tramas e não soavam como apelos propagandísticos, embora o fossem. As impressões registradas nessas obras nunca foram eram compartilhadas pela massa da população, refletindo nada mais que o sentimento de um grupo ínfimo, que adoraria ser a voz do povo, mas sabiam que falavam apenas em seu próprio nome. Ao longo de todos os governos militares, o notório contentamento popular com regime foi para esse grupo uma causa de desalento e desespero – na última semana de governo, o presidente Médici tinha mais de 80% de aprovação popular.
Aquela fração minoritária, ou até microscópica, não tinha como explicar isso senão reiterando a ilusão de que só ela representava a consciência nacional, enquanto a população inteira vivia na alienação sustentada pela máquina de propaganda do governo. Na verdade, essa máquina só se notabilizou pela discrição e timidez. Ao longo dos vinte anos de regime militar, o governo não produziu um único filme anticomunista, limitando-se a generalidades patrióticas sem qualquer conteúdo ideológico perceptível, e nunca deixou de financiar generosamente os seus minguados adversários na literatura, no teatro, no cinema e na indústria editorial.
Tão pouco era cabível culpar a censura. A mídia inteira era controlada pelos comunistas, e invariavelmente as notícias proibidas, assim como peças de teatro e obras cinematográficas, eram liberadas mais cedo ou mais tarde. Ao passo que a censura de livros foi praticamente inexistente.
A mensagem de revolta contra o estado de coisas, enfim, não tinha nenhuma ressonância popular. Foi preciso um lapso de quase duas décadas para que algo de semelhante viesse a produzir-se, mas com certeza não é isso que está em discussão aqui. O fato é que aqueles livros, filmes e peças teatrais, expressavam corretamente as impressões de um grupo que, em compensação do seu isolamento, se considerava a parcela mais esclarecida da população. Estatuto ao qual justamente o seu domínio do mercado das artes e letras acabava por dar alguma confirmação retroativa.
O fato mesmo de que tantas dessas obras se concentrasse nos problemas do intelectual, e não nos do povo já mostra que a vivência ali registrada era de uma minoria ínfima, que tomava a sua intersubjetividade, a sua experiência intersubjetiva, como consciência nacional. E toma até hoje, mesmo quando a maioria da população a rejeita e a despreza.
As obras mencionadas, constituíram, portanto, o fundo imaginativo comum sob o qual a esquerda veio a tecer a rede inteira das suas discussões políticas e estratégicas nas décadas seguintes, bem como a linguagem básica em que essas discussões se tornavam imediatamente compreensíveis ao gosto dos militantes e simpatizantes. Por exemplo, o debate entre a proposta guerrilheira e a via pacífica para a conquista do poder, tão decisivo para o curso das coisas, na década seguinte já estava inteiramente prefigurada em obras como Quarup e O Desafio e A Hora e Vez de Augusto Matraga.
A criatividade literária da esquerda não se limitou a responder ao golpe de 1964, continuou registrando as mutações psíquicas do grupo ante a derrota das guerrilhas, o advento da New Age, a fusão de esquerdismo e banditismo, e eventos subsequentes. Só deu sinais de esgotamento depois da década de oitenta, quando a importação massiva de slogans politicamente corretos da esquerda americana passou a favorecer o discurso propagandístico e não o esforço literário. A partir dos anos noventa, a esquerda brasileira pode se considerar intelectualmente morta, justamente quando começava a sua escalada final em direção ao poder.
Portanto, entre as décadas de sessenta e oitenta, a resposta literária e artística da esquerda nacional ao estado de coisas, forjou a imagem do mundo sobre a qual ergueram as suas novas concepções estratégicas, bem como uma retórica que logo se espalharia para muito além dos círculos militantes e se tornaria a linguagem dominante de toda a mídia, no show business e no meio universitário em geral, desfrutando ainda de uma imensa credibilidade residual muito tempo depois de haver perdido todo o impulso criativo e se ancilosado num sistema de chavões.
A esse fato se deve opor em comparação a ascensão cultural e política da esquerda que, desde a década de 80, determinou mudanças muito mais profundas, abrangentes e marcantes na sociedade brasileira do que o golpe de 1964 e tudo que os governos militares vieram a fazer. A decomposição moral da sociedade, a ascensão irrefreável do tráfico de drogas e da criminalidade em geral, a disseminação epidêmica da incontinência sexual mais descarada entre adolescentes e depois entre crianças menores, a completa destruição da educação escolar, a migração em massa de fiéis católicos para toda sorte de igrejas evangélicas, o advento de um anticristianismo militante cada vez mais agressivo, para citar os aspectos mais visíveis, constituem transformações sociais imensamente mais vastas e impressionantes do que tudo que as administrações militares ousaram sequer conceber em sonhos ou pesadelos. Era de se esperar que mudanças de tal magnitude produzissem na imaginação literária e artística nacional respostas mil vezes mais dramáticas, mais numerosas, e mais inventivas do que a simples derrubada de um presidente em 1964, ou mesmo do final patético das guerrilhas nos anos 70, no entanto, isso não aconteceu.
A intelectualidade esquerdista não teria porque reagir literariamente a situações que, agora investidas de considerável poder cultural e político, ela mesma estava produzindo. Expressar com sinceridade qualquer impressão genuína ante o estado de coisas só poderia ser contraproducente para a nova classe em ascensão. Agora, só interessava a ela cultivar os chavões convenientes, repetir em todos os megafones o discurso dos meninos de rua, dos jovens negros massacrados pela polícia, das mulheres
vítimas de violência doméstica, dos milhares de gays assassinados, do preconceito e discriminação etc.
Não é preciso dizer o quanto esse estado de espírito, sufocando a vivência da realidade sob toneladas de estereótipos repetidos com uniformidade geral e obsessiva, era hostil a qualquer criação literária ou artística que merecesse o nome. Não se vê nenhum romance ou filme com a conexão orgânica entre a alma individual e a consciência social, a tensão entre a consciência e a sociedade desapareceu nas nossas artes. As grandes e nefastas transformações das últimas décadas ficou sem uma documentação literária, não tendo ninguém capaz de expressar as impressões que estava tendo. O acesso livre de escritores intelectuais e artistas às verbas oficiais cada vez mais generosas e ilimitadas, cimentou a redução da cultura à propaganda, o que é o mesmo que dizer a morte da cultura.
Um exemplo praticamente único de impressão autêntica, vazado quase que por desatenção para dentro de uma obra cinematográfica, é a cena do filme Tropa de Elite (2007) em que o policial estudante acusa os seus colegas burgueses leitores de Foucault de serem como consumidores os verdadeiros culpados do tráfico de drogas, ilustrando com muita clareza a proibição de ‘perceber’, o que se tornou um mandamento obrigatório nos meios esquerdistas. O episódio suscitou tanta indignação e escândalo, não porque fosse falso, mais justamente porque traduzia uma realidade visível aos olhos da cara, que o diretor se viu obrigado a produzir um segundo capítulo do filme com afagos apaziguadores na alma esquerdista. A verdade da existência fora definitivamente, e por assim dizer, oficialmente banida do imaginário esquerdista, e substituída pela língua de pau da propaganda politicamente correta.
Todas as reações ao presente estado de coisas foram de natureza puramente jornalística. São artigos, são blogs, as vezes são livros, mas tentando discutir a coisa já no plano dos fatos sem ter o condensado simbólico inicial, portanto, apegando-se a fatos soltos, sem unidade e possibilidade de diálogo. Não pode haver unidade estratégica sem antes ter uma unidade imaginativa. Primeiro, é preciso fazer com que as pessoas compartilhem de um certo estado de espírito geral e vago, mas suficientemente reconhecível, e isso se condensa em símbolos. E somente a arte é capaz de produzir isso – esta é a verdadeira dimensão da guerra cultural.
O ponto fundamental da guerra cultural é que ela nada tem a ver com propaganda, essa não é a prioridade. Antes tem de obter a conquista da hegemonia intelectual, que é diferente da hegemonia cultural. A hegemonia intelectual é ter em mãos as concepções mais abrangentes que engolem todas as outras, e que de certo modo se impõem por si mesmas como a visão natural das coisas – ser a matriz do senso comum através da alta cultura.
O empreendimento de uma guerra cultural demanda o entendimento da cultura que se pretende modificar, e a única maneira de construir uma representação mais integral de uma cultura é através da imaginação, ou seja, através de um aglomerado de símbolos que, de algum modo, represente os vários componentes da sociedade na sua ação, na sua interação, no seu conjunto.
Mas quantas representações integrais de uma sociedade podemos encontrar documentadas ao longo da história? A primeira talvez tenha sido a Comédia Humana de Honoré de Balzac (1799-1850). Na verdade, a obra inteira de Karl Marx (1848-1883) não passa de uma transposição da Comédia Humana em termos econômicos e sociológicos: sem Balzac não existiria Karl Marx. Se não fosse por esses grandes painéis imaginativos, toda e qualquer descrição científica da sociedade seria impossível.
Balzac conseguiu conceber um panorama que demonstrava a sociedade francesa inteira em ação através de personagens representativos de grupos e padrões inteiros de conduta, mantendo naturalmente o padrão de verossimilhança ficcional. Essa capacidade de apreender a tipicidade sem tornas as personagens esquemáticas, é característica da imaginação do romancista – mostrar as personagens agindo de tal modo que se perceba claramente individualidades concretas reais e que, ao mesmo tempo, condensem comportamentos coletivos similares.
Outra tentativa de representa uma sociedade é o livro Os Noivos de Alessandro Manzoni (1785-1873), que embora seja apenas um livro, e não uma coleção como a Comédia Humana, também, procura condensar a sociedade italiana da época descrita. Na obra de Dostoiévski também vemos uma descrição da sociedade inteira, mas espalhada entre seus vários romances, novelas e contos. A obra de Dostoiévski contempla a sociedade russa, mas não tem um livro que condense tudo, nem existe uma relação orgânica entre os diversos livros.
Para distinguir os vários grupos sociais possíveis, Balzac optou pelo critério econômico, i.e. de onde advém o dinheiro das pessoas, do quê que elas vivem. Pois isto fornece imediatamente um critério distintivo dos vários grupos. O critério econômico é útil porque todos precisam de algum valor monetário para viver, este valor tem fontes e posses variadas, e o dinheiro medeia todas as relações entre as pessoas. Mas, poderia ter feito por outro critério, por exemplo, pelo critério racial, por estilo de linguagem ou diferentes gírias de diferentes meios, e.g. em Pigmalião de George Bernard Shaw (1856-1950) as classes são distinguidas pela sua linguagem.
Karl Marx parte das descrições balzaquianas da sociedade para descrever, de forma fantasiosa e forçada, a acumulação primitiva de capital. E desenvolver toda sua teoria de luta de classes. Ele vai ampliar os conflitos balzaquianos de modo a transformar aquela imagem numa generalização, criando um processo descritivo que pode se aplicar em qualquer momento, a qualquer sociedade humana. Esse critério descritivo parte das distinções econômicas entre as classes sociais e daí vai obtendo outras modalidades de distinção, como por exemplo, linguística, psicológica, e nas relações familiares.
Essa é a única técnica que ainda existe para a descrição integral de uma sociedade. Não existe nenhuma outra. Isso é uma vantagem imensa que o marxismo tem a seu favor. Por mais que as sociedades não funcionem assim, o sistema descritivo parte de um fato observável (há diferenças econômicas entre as pessoas), é fácil de memorizar, e facilita a classificação dos indivíduos dentro das distintas classes.
Essa é a principal vantagem, o principal instrumento, de guerra cultural que os comunistas dispõem: uma concepção global de sociedade (mesmo que falsa). A visão clara do ‘inimigo’ – neste caso uma sociedade inteira – é importante na guerra cultural, e só o movimento comunista criou uma imagem de estrutura social global para combater.
O contra-ataque deve ser voltado para o movimento comunista, mas, dada sua natureza, ele é de difícil localização geográfica, concepção e apreensão global. Com isso temos sociedades nacionais inteiras (de mais fácil concepção e apreensão) sendo atacadas por um inimigo que não constitui uma sociedade, não tem uma estrutura identificável, e nem uma personalidade identificável – a primeira regra de Sun Tzu (“conheça o seu inimigo”) já falhou.
Novamente, esta é a grande arma da guerra cultural comunista contra o ocidente: ele só ataca sociedades das quais tem uma visão bastante apurada (isso não quer dizer que a descrição baseada na distinção econômica seja cientificamente válida, ou que ela corresponda à realidade, mas esquematicamente ela é um instrumento que permite imaginativamente apreender o todo, e isso é o que importa neste caso). Ao passo que até hoje não existe uma sociologia do movimento comunista. Ele tem 150 anos, já produziu inúmeras desgraças, já matou mais de 100 milhões de pessoas, tomou e perdeu o poder em vários países, e até hoje nós não sabemos quem é esse personagem. Então, não conseguimos imaginá-lo como um todo.
Toda a sovietologia empreendida pelos americanos pecou ao restringir o panorama a um conflito entre dois países, enquanto o movimento comunista existiam 60 anos antes da URSS e continua existindo depois da reconfiguração deste. Os americanos não perceberam que nenhuma nação ou Estado é agente da história, ele não tem o poder de autorreprodução, como tem, por exemplo, um movimento político. Em todo e qualquer regime comunista o governo oficial está submetido ao partido – acima do governo está o partido (entendido como centro de unidade do movimento). O partido antecede o regime criado, antecede a ascensão e queda de cada governo. E ele continua, os governos passam e o partido continua. O partido por sua vez, não pode ser identificado com um nome, ele pode ter milhares de nomes, pouco interessa. Ele pode atuar através de dezenas de organizações de fachada, sem que se saiba exatamente quem é o comando por trás de tudo isso – que é exatamente o que acontece no Brasil de hoje.
Existe sempre um comando do movimento comunista em cada local. Esse comando pode coincidir ou não com a direção nominal de um partido legal. O partido comunista pode não ter existência legal nenhuma – o Governo Dutra no Brasil suprimiu o partido comunista, mas ele não parou de existir. Faz parte da natureza do partido comunista ter sempre uma fachada legal e um comando estratégico clandestino. De maneira que a parte clandestina sobrevive sempre, e é ela que estabelece a continuidade. O fato é que até hoje, os que querem combater o comunismo não sabem com quem estão brigando.
No Brasil dos últimos anos, foi colocado um foco concentrado no PT, mas o PT surgiu de um arranjo entre o Partido Comunista e a Ação Popular que era outra organização comunista – com a mesma origem do PSDB. Houve nas últimas décadas uma pluralidade de organizações de fachada sem que soubéssemos exatamente onde estava o comando. Quando criaram o Foro de São Paulo a coisa se esclareceu um pouco mais, mas não nas assembleias, e sim, como o próprio Lula descreveu, em encontros entre chefes de Estado e líderes comunistas importantes, onde as principais decisões eram tomadas, à margem das assembleias. Isto quer dizer que o próprio material que é registrado em ata nas assembleias não diz tudo – a necessidade de manter certas decisões ou certas ações em segredo é uma coisa que todo comunista introjeta no coração desde o início.
A medida mais urgente nesta guerra cultural é obrar uma sociologia do movimento comunista – que ninguém fez no mundo. Quem chegou mais próximo disto foi Dostoiévski mostrando como os camaradas se referiam a tudo isso como “o movimento”, isto é, o movimento dos movimentos – um movimento que não para, não se estabiliza em parte alguma, está sempre em movimento; e que representa o padrão de unidade por trás do conjunto. Decorridos quase 170 anos da fundação do movimento comunista (1848), ainda não existe um perfil do movimento e, portanto, não se sabe quem é o agente desta guerra cultural.
Liberais e conservadores se perguntando o porquê de as pessoas aderirem ao comunismo apesar do fracasso de todas as tentativas de implementá-lo, entendo ser esta aderência irracional. Mas esquecem que esse movimento dá as pessoas uma possibilidade de representar a sociedade como um todo, coisa que os outros não dão. Só existe um desenho da sociedade como um todo, é o desenho baseado no modelo das classes sociais criado por Balzac, e recoberto, por assim dizer, de um verniz científico por
Marx – é apenas um “verniz científico” evidentemente, pois a descrição não é científica de maneira alguma, mas ela é integral e é isso que importa.
Ter uma representação imaginativa integral é melhor do que ter representações científicas de milhares de partes inconexas. A teoria da evolução de Charles Darwin é um bom exemplo: sabemos que ela não está provada até hoje, não tem provas nem a favor e nem contra, a discussão continua. Mas ele convence a maioria por dar uma imagem integral do reino animal em todas as suas interconexões – a Teoria da Evolução é uma ficção imaginativa poderosa.
A possibilidade de reação na guerra cultural exige a apreensão do movimento comunista e de todos os seus aliados – incluindo o Islã atualmente – com uma visão abrangente, conhecendo o quê une essas pessoas, e como elas interagem.
O movimento comunista não tem nada a ver com suas respectivas ideologias, pois estão todo o tempo trocando-as. O próprio Marx considerava que ideologia é um vestido de ideias colocado em cima de um conjunto de interesses e ações reais – ideologia é um pretexto. Discurso que não expressa os que as pessoas vão fazer de fato, mas apenas a explicação que o agente oferece, ou aos seus adeptos, ou aos seus inimigos, como uma espécie de “carteira de identidade”. A ideologia concebida pelo próprio Karl Marx, cujo resumo está no Manifesto Comunista, fornece o modelo condensado da sociedade como luta de classes, mas esse modelo foi mudado inúmeras vezes.
O Comunismo é um movimento mundial que alega como objetivo, como pretexto, como justificativa, a criação de um certo tipo de sociedade, mas que ele não a descreve, pelo menos não em detalhes. Nesse sentido, o movimento explica que a criação dessa sociedade encontra resistências terríveis e que essas têm de ser removidas antes, durante e depois da tomada do poder. Mas, tomada do poder onde? Só tem uma resposta: no mundo inteiro. Pois se eles tomam o poder num país, eles terão resistência externa.
O fundamento do movimento comunista é o constante movimento de luta de poder sobre a humanidade. O primeiro projeto global foi a URSS – a ideia de governo global é inerente ao comunismo. Mas isto não é defendido como ideologia. Distinguir entre um ideal e a situação real, perguntando-se como transformar esse ideal em realidade é o modus operandi típico da técnica e da indústria, não da guerra cultural.
Marx não escreveu trinta linhas sobre como seria a sociedade ideal. Trótski escreveu mais um pouco, mas caiu no ridículo: “na nova sociedade comunista cada varredor de rua seria um novo Michelangelo, um novo Leonardo Da Vinci” – quanto mais os comunistas descrevem a sociedade futura, mais ridículos parecem. O movimento comunista não fala mais de ideais, concentrando-se no trabalho do negativo, da destruição da presente sociedade, porque no curso desse processo (práxis), o movimento redefinirá os seus objetivos mil vezes se necessário – o movimento comunista é infinitamente plástico e mutável. O padrão de unidade do movimento comunista é o desenho imaginativo do seu inimigo e, portanto, a função e o destino histórico do próprio movimento comunista no decorrer da história.
O socialismo/comunismo é visto como um determinismo histórico, uma meta inevitável, e não um ideal a ser realizado – a culminação inexorável do próprio processo histórico. Com isso todos os meios empregados são aceitáveis, até a prática do que chamam de capitalismo dizendo estarem explorando suas “contradições internas”. O Ocidente teve um raciocínio pseudo-marxista quando nos anos 1990 decidiu investir na China acreditando que a liberalização econômica libertaria o resto do país – engoliram o engodo comunista. A liberdade como puro exercício da razão não leva em conta valores do mundo real, porque a razão não é determinada pelo mundo natural, a razão é individual. Hegel já dizia que a pura liberdade de escolha, considerada fora de um contexto de valores, é apenas uma abstração nula e vazia, não há entre o quê escolher; e que essa
liberdade abstrata levará necessariamente a destruição e somente a destruição, e.g. o sujeito que pensa poder escolher o próprio sexo.
A grande força do movimento comunista é a unidade imaginativa que ele traçou do monstro a ser destruído. E para cuja destruição valem todos os meios, inclusive mais monstruosos do que ele. A primeira coisa que um movimento anticomunista tem de produzir é o padrão imaginativo, a “imagem de fantasia” sobre o próprio movimento comunista, de modo que o apreenda em uma unidade de maneira dialética e conflitiva, evidentemente, e não mecânica.
Notas:
Olavo de Carvalho (1947-2022) nasceu em Campinas, Brasil.
Filósofo, analista político e polemista, tem extensa obra registrada em livros e aulas gravadas.
O seminário Guerra Cultural foi ministrado em 4 aulas entre os dias 20 de setembro e 11 de outubro de 2016.
No filme Que é isso, companheiro?, de Luiz Carlos Barreto (1928- ), um guerrilheiro vendo a esquerda revolucionária reduzida ao completo isolamento, apega-se pateticamente a esperança de que um certo disco de música popular tocado ao contrário, espalhe a mensagem de Carlos Marighela, ao que seu colega responde com realismo cruel: “mas companheiro ninguém ouve disco ao contrário.”
O tema de “nós, a minoria, somos a consciência nacional, portanto nós somos o povo”, baseia-se na doutrina do Georg Lukács, da consciência possível. Quer dizer, o partido não expressa a consciência do proletariado, mas a sua consciência possível, aquela que ele virá a ter se o partido tomar o poder e o esclarecer. Então, não é um povo, é um povo virtual. Esse tema ressurgiria nas análises que a esquerda fez a respeito do impeachment da Dilma
O governo militar não chegou a censurar cinco livros. Um desses era do jornalista australiano Wilfred Burchett, que ensinava a fazer bombas. E as notícias proibidas raramente eram de teor político, mas geralmente notícias relativas a atentados terroristas, que o governo entendia que poderiam atrapalhar as investigações. Censura de opiniões praticamente não houve.
No há movimento intelectual de direita no Brasil desde os anos cinquenta. Só quem conseguiu criar um movimento intelectual de direita foi a Igreja Católica no Centro Dom Vital, que começa nos anos 20 com Jackson de Figueiredo Martins (1891-1928), e depois com o Alceu Amoroso Lima (1893-1983), que conseguem criar uma certa geração de escritores conservadores católicos. Mas, isso nunca chegou a ser um movimento, nem mesmo um movimento literário autoconsciente. E nos anos sessenta eles todos começaram a ser banidos, foram todos tirados de circulação.
O general comunista Nelson Werneck Sodré (1911-1999) escreveu o livro A Fúria de Caliban onde supunha uma repressão da vida intelectual brasileira pelos militares que nunca ouve – no máximo demitiram alguns “camaradas” de algumas universidades federais, que em seguida imediatamente obtinham financiamento particular e arrumavam empregos muito melhores do que na universidade. O próprio Sodré ao falar da perseguição e da extinção da vida cultural no Brasil, ingenuamente confessa que naqueles anos, entre 64 e 65, ele ganhou diversos prêmios literários, publicou várias resenhas a favor dos livros dele no Estadão, na Folha, no Globo, etc., e no fim recebeu uma homenagem no Instituto Brasileiro de História e Geografia Militar em uma cerimônia sob a presidência do Marechal Castelo Branco. Seu livro tem esse efeito cômico, ele próprio é uma demonstração de que o que está escrito nele é falso.
A missa católica se opera numa sequência de operações (uma liturgia) criada na Idade Média – uma obra de arte, a suprema obra literária da Idade Média. A liturgia tem uma série de textos, de gestos, e de atos, formando uma espécie de espetáculo teatral, que não é feita para a assistirmos, mas para participarmos dela – todos atores no drama da paixão e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Este espetáculo tem uma importância central na história de todo o mundo cristão, o imaginário humano foi impregnado com esta liturgia. Quando perdemos isto de vista já não entendemos mais de onde as coisas saíram, dando-se o fenômeno descrito por G. K. Chesterton (1874-1936): ideias cristãs enlouquecidas espalhadas uma aqui, outra ali, e que acabam se integrando em inúmeros contextos improvisados, e.g. hoje em dia é possível ver argumentos ou pretextos cristãos sendo usados para legitimar o casamento gay – um elemento cristão desconectado do seu conjunto e enquadrado num outro conjunto improvisado, para fins políticos do momento.
A substituição das figuras históricas por animais nas cédulas brasileiras visava a dissolução da cultura nacionalista e a introdução da cultura ecológica.
Otto Pötzl (1877-1962), médico e psiquiatra austríaco, usou um taquistoscópio, um dispositivo que emite estímulos visuais rapidamente, para expor os sujeitos a imagens por períodos extremamente breves (frações de segundo). Isso lhe permitiu estudar como o cérebro processava a informação visual, demonstrando que ele pode captar informações visuais não percebidas conscientemente.
Ao longo de toda a história temos esta constante: um poder central se alia ao povo mais pobre para destruir os poderes intermediários; naturalmente, o poder central se torna mais poderoso e controla cada vez mais o conjunto; e o povo pobre que apostou nisso para ser beneficiado, é claro, termina se dando muito mal – é sempre assim.
Sentidos de ‘cultura’ abordados no seminário: (a) sentido historiográfico geral que é associado à ideia de nacionalidade, uma unidade ética, por assim dizer; (b) sentido legal como aquele consagrado na constituição brasileira, que é o conjunto dos elementos materiais que dão testemunho do nosso modo de ser; e (c) sentido pedagógico, isto é, a cultura como cultivo da inteligência humana, da consciência humana etc.
Militantes revolucionários são arregimentados individualmente, com o sentido de fazer o indivíduo se integrar numa totalidade secreta ou discreta, que para ele representa o próprio futuro da humanidade, a matriz da história futura, que está sendo elaborada ali por eles: a elite ultrassecreta que sabe coisas que o resto da humanidade não sabe – é como se o sujeito entrasse numa sociedade secreta mesmo. Há uma série de procedimentos quase que ‘rituais’ para fazer o indivíduo se sentir integrado nisso.
O Conselho Nacional de Igrejas, Teologia da Libertação, Conselho Mundial das Igrejas, CNBB, etc. São organizações revolucionárias e antirreligiosas.
Apresentar as outras civilizações como portadoras de uma sabedoria superior é uma empulhação. Não se encontra nada de valor em nenhuma das outras culturas que não tenha sido melhorado na civilização ocidental. Livros como Para Compreender o Islã de Frithjof Schoun 1904-1998), ou The Sacred Pipe de Joseph Epes Brown (1920-2000) são engôdos deste tipo.
Georg Lukács e seu discípulo francês Lucien Goldmann, afirmam que a estrutura do romance é sempre uma revolta degradada, contra um mundo degradado. O herói está contra a sociedade, mas ele mesmo é tão corrompido quanto ela – é através dessa personagem maligna que o mal na sociedade transparece, e.g. as personagens centrais de Ulrike Woytich (1923) de Jakob Wassermann, de Angústia (1936) de Graciliano Ramos, de Crime e Castigo (1866) de Fiódor Dostoiévski, de O Processo Maurizius (1928) de Jakob Wassermann, e de O Vermelho e Negro (1830) de Stendhal. Luckás e seu discípulo viam estas revoltas como individuais e anárquicas, revoltas degradadas que só teriam valor caso se integrassem ao movimento comunista – a teoria é verdadeira (quase uma tipologia da revolta), mas a consequência absolutamente falsa. De positivo temos a mensagem de que toda revolta contra o estado de coisas (querer mudar o mundo – revolta metafísica - prometeico) traz uma ambição demoníaca – ironicamente é exatamente o que o movimento comunista busca. Lucien Goldmann em um debate com Eric Voegelin, disse que o socialismo para ele era uma experiência religiosa, ou seja, investido de uma missão profética em nome da qual pode-se rouba e matar. Quanto mais o comunista se deifica, mais crimes e maldades ele vai fazer – está é a revolta degradada.
Na peça Processo e Morte di Stalin (1962) de Eugenio Corti (1921-2014) vemos o tirano demonstrar por um processo lógico-dedutivo que tudo o que ele fez foi na mais estrita fidelidade ao marxismo-leninismo. A natureza comunista é assassina.
O político comunista elevado ao governo numa nação democrática ocidental por meio de eleições não vai implementar o socialismo enquanto não concentrar um poder ditatorial em suas mãos – precisa primeiro mudar o regime político, para depois mudar o sistema econômico. O processo de concentração de poder se dá pela infiltração e corrupção das instituições, e,g, sistema judiciário e forças armadas. Em paralelo a isso ele vai introduzir mudanças culturais que fomentem a destruição da sociedade, e.g. via setores do ensino e do entretenimento. E faz tudo isso imbuído de estar agindo de acordo com o seu dever. Transferir recursos da sociedade para o partido é também um de seus deveres – Lula e Dilma fizeram exatamente o que deles se esperava, são heróis do partido, do movimento comunista. São pessoas corrompidas até o fundo da alma.
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) dizia que o sujeito que tivesse visto mais figurinhas, ainda que totalmente fictícias, saberia mais do que os outros, porque teriam uma imaginação mais ampla.
Os romances Under Western Eyes (1911) e The Secret Agent (1907) de Joseph Conrad (1857-1924) apresentam personagens agentes comunistas dentro de uma sociedade representada segundo o esquema marxista das classes sociais, demonstrando o falta de especificidade do fenômeno. Pois o movimento comunista internacional tem mais amplitude de ação e poder do que muitos governos em função de um padrão de unidade diferente daquele que Balzac e Marx viram na sociedade.
A Grande Conspiração de Michael Sayers e Albert Kahn fantasia a conspiração das potências ocidentais para derrubar o recém-nascido regime soviético. Mas fato é que as potências ocidentais praticamente nada fizeram além de se boicotarem umas às outras e boicotar a própria resistência antissoviética.
Ao ler Ideologia Alemã de Karl Marx, Witness de Whittaker Chambers, e Hope Against Hope de Nadezhda Mandelstam, é preciso buscar a conexão entre as ideias abstratas, o discurso ideológico, a vivência efetiva de seus agentes, e também das suas vítimas. Não há como entender o movimento comunista se não for capaz de ver esta conexão.
O romance do Antônio Callado, Quarup, quase dá uma noção da inteireza do movimento comunista do Brasil.
A obra do José Geraldo Vieira busca articular diferentes dimensões sociais em um conjunto harmonioso. Em um de seus romances um menino, chamado Jaiminho, ao fugir de sua casa no interior para São Paulo deixa o seguinte recado: “mamãe, fugi para São Paulo, eu sinto em mim o borbulhar do gênio” – é um pequeno Lucien de Rubempré. Ele vai para a cidade tentar conquistá-la, e lá faz amizade com um coitado preto e um marinheiro inglês, e o José Geraldo consegue unir esses três em suas aventuras.
A guerra cultural começa na literatura, a propaganda é só um subproduto da literatura. O escritor austríaco Hugo von Hofmannsthal (1874-1929) disse que “nada está na política de um país que não esteja primeiro na sua literatura”, e o prazo de passagem de uma para a outra pode ser de cinquenta anos.
A filósofa americana Susanne K. Langer dizia que todo e qualquer conhecimento começa com uma analogia. Balzac forneceu a analogia do capitalismo para Marx fantasiar suas teorias.
Komen