
Personagens Principais Thomas Stockmann – médico e cientista, brâmane Peter Stockmann – prefeito da cidade, irmão de Thomas, xátria Morten Kill – sogro de Thomas, tipo vingativo e pouco apreciado na cidade, vaixá Hovstad – editor do Mensageiro do Povo, politizado, ambiciona o poder Billing – sub-editor do Mensageiro do Povo, dissimulado, interesseiro Aslaksen – líder dos pequenos empresários (pequeno burguês), medíocre, volúvel
Personagens Secundárias Petra Stockmann – filha de Thomas, indignada cívica, modernizante, semente revolucionária Mrs. Stockmann – esposa de Thomas, natural preocupação com a família
Interpretação Esta peça engana na sua aparência. Muitos veem nela um libelo contra a tirania econômica, outros uma apologia à honestidade, ou ainda o conflito entre o indivíduo e o coletivo. Mas há algo mais profundo nesta história.
Tem-se um dilema ético de difícil solução. E esta é a natureza do dilema ético, pois os resultados só serão conhecidos no futuro, por vezes bem distantes do momento de decisão entre as opções em mãos – um dilema moral com benefícios e prejuízos qualquer que seja a decisão final.
Neste embate temos um principal representante de cada opção (revelar a contaminação e fechar o balneário ou ocultar a contaminação enquanto busca-se uma solução intermediária):
Thomas Stockmann: Idealista, sincero, jovial (predileção pela juventude), sociável, narcisista, arrogante e radical. Alegra-se ao confirmar a contaminação, celebrando o fato. Em nenhum momento demonstra haver uma dúvida moral sobre que direção tomar. Nunca demonstra compaixão com seus conterrâneos, nem quando o futuro de sua família está envolvido.
Peter Stockmann: Antípoda do irmão em vários aspectos: conservador, antissocial, preconceituoso. Mas também é honesto e sincero. Demostra ter uma genuína preocupação com o que pode acontecer com aquela coletividade. Emprega meios legítimos na defesa de sua posição, mesmo que esta esteja equivocada.
A contaminação das águas foi uma tragédia. Como lidar com esta situação contraditória? Quem tem razão entre os dois irmãos?
Mais que saber quem tem razão o interessante é observar o comportamento de Thomas. Ele coloca-se acima do bem e do mal, não sofre moralmente, não se preocupa se pode destruir a si e sua família para produzir o resultado que almeja (o irmão ao menos buscava uma alternativa intermediária). Soberbo, vê na sua ação (“revelar a verdade”) um valor em si próprio. Mas qualquer valor humano quando isolado em si mesmo, despegado do conjunto e do universo cristão, é enlouquecedor (G. K. Chesterton).
Guardadas as proporções, Sócrates também tinha razão e estava só, e, mesmo sendo quem era, teve uma atitude compassiva para com seus semelhantes. Diferentemente de Thomas, Sócrates afirmava apenas saber que nada sabia, e considerou ter cumprido seu dever ensinado a sociedade ateniense, e que júri fizesse como achassem melhor. Sócrates é o modelo de tensão entre o indivíduo e o coletivo, não Thomas.
Thomas Stockmann fica cada vez pior quando se vê isolado, revelando-se uma personagem nietzschiana. No imperativo de valer sua vontade acredita-se um deus que não será tolerante como Aquele que disse “perdoai-los, eles não sabem o que fazem”, mas que a “todos exterminará”. A personagem representa o revolucionário prometeico que tantos desastres sociais já trouxe e continuará trazendo ao mundo. Sem nenhuma compaixão com seus semelhantes ele quer produzir um novo mundo, um novo homem (quer educar os jovens). Thomas traz em si todo potencial totalitário.
Ibsen estaria assim nos mostrando como funciona a mentalidade messiânica usando como pano de fundo um dilema ético com toda sua ambiguidade.
Mas não seria Ibsen também um ser potencialmente messiânico? O historiador Paul Johnson inclui o dramaturgo norueguês no seu rol de intelectuais prometeicos. Nunca saberemos se Ibsen aprovava ou desaprovava a conduta de Thomas Stockmann.
Notas
Henrik Ibsen (1828-1906) é considerado por Otto Maria Carpeaux como o maior dramaturgo do século XIX.
Norueguês, Ibsen faz parte de um pequeno grupo de grandes literatos escandinavos, incluindo August Strindberg e Knut Hamsu.
Entre as peças de Ibsen também se destacam: Quando Nós, os Mortos, Despertamos (1889 – autobiográfico segundo Monir), O Pato Selvagem (1884), Peer Gynt (1867) e Casa de Bonecas(1879).
O título da peça foi retirado de Coriolano de Shakespeare. Um Inimigo do Povo foi escrita em 1882.
Ibsen saiu de moda com a banalização dos temas antes considerados polêmicos como feminismo (Casa de Bonecas), doenças venéreas (Espectros) ou revolução (Um Inimigo do Povo). Porém Ibsen considerava-se poeta e não crítico social. Sob a superfície narrativa Ibsen aborda questões metafísicas.
A peça apresenta a mesma fabulação do filme Tubarão de Steven Spielberg e também lembra o mito de Cassandra. Há poucas temáticas realmente inéditas na literatura e artes cênicas. Aquele que consegue mostrar pela primeira vez um aspecto da condição humana torna-se um clássico.