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Morte em Veneza de Thomas Mann


Ao final da tarde o seguia, sem qualquer sentimento de vergonha, pelas ruas estreitas da cidade (...), nestas horas tinha a impressão de que a lei moral se anulara e só o monstruoso e perverso oferecia uma esperança.” O rompimento da fronteira entre imaginação e realidade passa pela anulação da moral

Personagens Principais Gustav Aschenbach – 70 anos, famoso e respeitado escritor Personagens Secundárias Estranho cerca do cemitério – viajante de aspecto belicoso, provocação dionisíaca Velho peralta – velho ridículo passageiro no barco, duplo, face abismal de Gustav Tadzio – adolescente hospedado no mesmo hotel em Veneza onde está Gustav


Interpretação Nietzsche, em A Origem da Tragédia, resgatou o debate sobre a contraposição entre Apolo e Dionísio. Enquanto o primeiro representa a perfeição formal, as proporções perfeitas (medidas apolínias), enfim o Cosmos (Ordem), o segundo exprime a entrega aos desejos, a falta de limites, o desregramento, ou seja, o Caos (Desordem). Para Nietzsche o apolínio, a ordem, era mera aparência sobre um mar de caos que invariavelmente emergia.


Seguindo esta linha nietzschiana, Gustav Aschenbach vivia dentro de uma perspectiva apolínia até a emersão dionisíaca provocada pela aparição do homem na saída do cemitério, quebrando a segurança da sua rotina – uma provocação do caos. Causado o desconforto Gustav busca Veneza onde depara com a hostilidade do ambiente – mudou o contexto da sua vida – sente-se ameaçado, tenta fugir – mas o desejo de explorar limites o mantem na cidade. Desejo pela beleza em si – cada vez mais incapaz de controlar-se a ponto de transformar-se no velho peralta, e mesmo com o perigo eminente (contaminação) ele é incapaz de reagir:


“... pois a paixão paralisa o senso crítico e se envolve a sério em encantos, que a sobriedade aceitaria apenas humoristicamente ou rejeitaria com irritação.”


“Quem consegue a essência e a peculiaridade de uma alma de artista? Quem pode entender a profunda fusão dos instintos de disciplina e devassidão que lhe serve de fundamento!”


“Pois é preciso que saibas que nós, poetas, não podemos percorrer o caminho da beleza sem que Eros se interponha, arvorando-se em nosso guia.”


Após o sonho orgiástico, Gustav percebe-se prisioneiro dos seus sentidos e, incapaz de resistir, entrega-se a destruição e morte – a admiração pela beleza transformara-se em paixão.


Mas o autor não parece falar apenas da alma do artista. Ele aparenta descrever o momento vivido na Alemanha, na Europa que se entregava artística e filosoficamente aos devaneios dionisíacos. Maravilhado com os avanços tecnológicos e acreditando-se onipotente o homem entregou-se as paixões, rompeu com a ordem e produziu a miséria de duas grandes guerras e da matança ideológica do comunismo e do nazismo.


A história de Gustav Aschenbach é a história do século XX e do mundo contemporâneo.


 

O conceito de Cosmo e Caos de Nietzsche é equivocado. As forças tensionais que se contrapõe entre cosmos e caos (ordem e desordem) são condições naturais e intrínsecas ao ser humano. Tensão entre os nossos polos luminoso e abismal. Não há vida sem equilíbrio entre os polos. Os extremos são inviáveis. Mesmo uma vida totalmente apolínia tende a esgarçar e provocar desastres – meden agan.


 

Notas

  • Thomas Mann (1875-1955) nasceu em Lübeck, Alemanha.

  • Principais obras são: A Montanha Mágica (1924), Doutor Fausto (1947), A Morte em Veneza (1913), José e Seus Irmãos (1933-1943), Buddenbrooks (1901) e Tonio Kröger (1903).

  • Escrito em 1913, Morte em Veneza foi publicada apenas em 1922.

  • Thomas Mann é o maior representa da onda de romancistas que usavam a narrativa para filosofar. Outros representantes são Robert Musil e Hermann Broch.

  • A dupla origem familiar de Gustav indica alguma contradição – “sangue mais agitado e sensual”.

  • Tadzio é Tadeu em polonês.

  • Gustav bebe suco de romã – relação com a inviabilidade de Perséfone deixar o Hades depois de comer uma romã. Mito de Perséfone - sístole e diástole.

  • Paixão – submetido ao império dos desejos, algo externo que o aprisiona/controla (paixão tem a mesma origem de passividade, sofrimento – passio).

  • O Conflito entre Apolo e Dionísio é resgatado inicialmente por Friedrich Nietzsche em A Origem da Tragédia. Posteriormente Ruth Benedict transforma o tema em normal geral da cultura em Padrões da Cultura. E, finalmente, Camille Paglia defende que a história da arte se dá na oposição entre os dois deuses no livro Sexual Personae.

  • Para Nietzsche a filosofia, advinda com Sócrates (racionalidade), impossibilitou a imersão no caos e levou ao fim da tragédia.

  • Os elementos dionisíacos levaram a Europa a IGG (ver A Sagração da Primavera de Modris Eksteins). Conjunto de atividades artísticas de caráter dionisíacas que antecedem a IGG (e depois também característico da República de Weimar e do Terceiro Reich) produziu os desastres do século XX.

  • O embate entre Cosmo e Caos já se expressava na Teogonia (Caos – Gaia/Urano) e no Gênesis (Trevas – Luz). No caso de Apolo e Dionísio há uma inversão na sequencia de nascimento, pois Apolo surge antes de Dionísio.

  • A história da arte seria uma alternância entre Apolo e Dionísio. As escolas artísticas seriam uma sucessão de tendências ora de um lado ora de outro. Artistas caminham todo o tempo à beira do abismo.

  • A psicanalise freudiana é nietzschiana – a aparente consciência sobre o mar do inconsciente – vida assombrada por elementos inconsciente que o psicanalista tentaria fazer emergir e então ordenar. Mas Freud estava certo ao afirmar que “civilização é repressão” – o domínio das paixões, a temperança, o “nada em excesso” (meden agan) expresso no templo do oráculo de Delfos.

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