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Doutor Fausto de Thomas Mann


Personagens Principais Adrian Leverkühn – luterano, compositor Serenus Zeitblom – católico, professor de filosofia, narrador

Personagens Secundárias Jonathan Leverkühn – pai de Adrian, envolvido em alquimia e magia Elsbeth Leverkühn – mãe de Adrian, muito bonita Wendell Kretzschmer – mestre de Adrian, crê que a cultura não está subordinada a religião Prof. Kumpf – professor de teologia, destila ideias de Goethe Prof. Schlepfuss – professor de teologia, o “coxo”, ainda mais radical que Kumpf “Esmeralda” – prostituta seguida por Adrian até a Hungria Senhora von Tolna – patrona húngara de Adrian, o Diabo Rüdiger Schildknapp – tradutor, amigo de Adrian Rudolf Schwerdtfeger – violinista, amigo de Adrian Sixtus Kridwiss – em cuja casa se discutia a cultura em tom niilista Nepomuk Schneidewein – sobrinho de Adrian, filho de Ursula Leverkühn Senhora Rodde – locadora de Adrian, filhas chamadas Clarissa e Inês Família Scheingstill – senhorios de Adrian, empregada chama-se Walpúria Marie Godeau – cenógrafa pela qual Adrian se apaixona


Interpretação Thomas Mann foi um discípulo de Goethe e abraçava ideias de Nietzsche, ou seja, um adepto do esteticismo alemão e defensor da germanidade (conceito que evoca a superioridade do povo alemão e sua cultura). Felizmente ele era dotado de grande honestidade intelectual e já dava em Morte em Veneza e A Montanha Mágica sinais de contrariedade aos princípios daqueles pensamentos filosóficos. Mas é no outono de sua vida, depois de dar-se conta do grande mal criado por aquele ideário, que ele rompe claramente com aqueles pensadores. Este rompimento, quase em forma de denúncia, está em Doutor Fausto.


O autor retoma o tema da principal obra de Goethe, dando-lhe um desfecho diametralmente diferente, se Goethe era apologético do homem fáustico, Mann o condena impiedosamente. Sua personagem principal, Adrian Leverkühn, é calcada em Nietzsche, como fica evidenciado pelas torturantes dores de cabeça e o contágio da sífilis, mas também remete a Lutero através do seu local de nascimento (o berço da revolta protestante) e sua universidade (a primeira a abraçar o luteranismo).


Cronologicamente Mann está relacionando as raízes do mal que levaram as duas grandes guerras: o protestantismo, o esteticismo alemão e o niilismo. Sementes que produziram a experiência narcisista alemã que a empurra para a IGG, e que somada à decadência econômica e onda de liberalismo resultante desta, parirá o nazismo. A narrativa de Doutor Fausto, cobrindo o período desde o fim do século XIX até o final da IIGG, nos dá um panorama destes fatores que levaram o povo alemão a cometer tamanhas atrocidades e pagarem um alto preço por isso.


Alegoricamente Adrian é a própria Alemanha, sua saga é a mesma do seu povo. Logo na infância é exposto ao ocultismo por seu pai, cuja Bíblia era simbolicamente encapada com couro de porco – animal que vive com a cabeça voltada para o chão, nunca olha para cima. Com o mestre Kretzschmer vai adquirir o conceito de que a arte, a cultura não está subordinada a religião, criando uma dicotomia. Mais tarde depara-se com o teólogo liberal Kumpf, seguidor de Goethe e Schiller, que lhe transmite o conceito do Mal como motor da história tão bem descrito na dialética hegeliana e incorporado pelo Mefistófeles goethiano. Este conceito que será levado às últimas consequências nas aulas do Prof. Schlepfuss, ensinando que o Bem e o Mal se equivalem e que o pecador é perdoado ao final por Deus tê-lo permitido pecar. O protestantismo de Adrian incorpora o conceito calvinista da predestinação, dissociando as obras humanas da salvação, ou pelo menos do comportamento moral coerente com a vontade divina na ação humana, pois independente do que você faça sua absolvição ou condenação já estava definida.


Estão aí os elementos formadores da juventude alemã que a levou ao desvario narcisista. Partindo de sua própria grandeza e capacidade, acreditaram ter poder de vida e morte sobre os demais, uma ilusão de independência de tudo e a capacidade de reconstruir o mundo.


Adrian faz aquilo que Nietzsche dizia para todos fazerem – não se subordinar a ninguém, assumir e tomar o poder dialeticamente fazendo o contrário do que pregava a moral platônica e cristã. Adrian é uma personagem nietzschiana.


Adrian começa a enlouquecer a partir do momento que acredita que seu pai pode capturar os mistérios da natureza, quando acredita que o homem pode produzir a própria história no sentido de valores humanos. Quando coloca a música no lugar da religião ele se sataniza. Tomar o poder enlouquece porque o louco é o sujeito que perdeu tudo menos a razão. A racionalidade estúpida é a loucura, um louco justifica qualquer coisa. Uma racionalidade tão férrea que nada pode ser entendido fora daquele pequeno círculo. Prisioneiro da própria mente. Nossa existência flutua num oceano de mistérios, mas o louco tem certeza que pode explicar tudo.


Com este comportamento Adrian estava pronto para o pacto fáustico onde duas cláusulas imperam: (a) a impossibilidade de voltar atrás e (b) a proibição de amar. Ou seja, a proibição de praticar os valores cristãos, um comando para ser indiferente com o próximo.


Porém do Mal só brota o Mal – conclusão que vai diretamente contra a frase com a qual Mefistófeles se apresenta no Fausto de Goethe – e Adrian Leverkühn (e a Alemanha) sofrerão duro golpe por seu arrombo de vaidade. Esta é a maior história escrita sobre a vaidade humana, e sobre o erro de colocar a cultura sob as paixões humanas mais baixas, paixão pela matéria e pelo sucesso. E Thomas Mann explica como ninguém a raiz espiritual do totalitarismo. Uma quebra que começa com Reforma Protestante e finda com Hitler, dando uma unidade a este processo.


Mas atenção, o mundo atual apresenta a mesma configuração que precedeu a IIGG: esgotamento do modelo socialdemocrata, eliminação da lei da escassez (moeda fiduciária) e homens desinteressados em produzir preferindo exigir que o estado lhes proveja estão gerando uma crise política e econômica crescente. A alta cultura desaparece afundada num imanentismo abjeto e atropelada pela cultura de massa (indústria de entretenimento) voltada para reengenharia social. E o nazismo nasceu no ambiente mais liberal da Europa onde estavam as sementes do feminismo, homossexualismo, liberalidade sexual e associações ocultistas, tal qual vivemos agora.


Será que, como Zeitblom, ficaremos adorando os avanços tecnológicos e arroubos dionisíacos do processo ignorando uma vez mais o ovo da serpente?


 

Mann considera a tradição da música tonal tanto como um elemento significativo da nossa civilização, como um símbolo do seu último sentido. A música é a arte fáustiaca por excelência, a afirmação desafiadora da voz humana num cosmos de silêncio incognoscível. Mann, portanto, relaciona a morte da antiga linguagem musical com a morte da civilização europeia. E ele identifica a invenção do serialismo dodecafônico como uma espécie de resposta demoníaca ao sentimento de perda da transcendência. A música deve ser aniquilada, refeita como a negação de si mesma. O compositor Adrian Leverkühn, dominado pela possessão demoníaca, pretende “recuperar a 'Nona Sinfonia'”. Tal é a tarefa que Mann propõe ao seu compositor possuído pelo demônio, e não precisamos procurar muito para ver que existem compositores por aí hoje que assumiram esta tarefa como sua.



 


Notas

  • Thomas Mann (1875 – 1955), maior escritor alemão depois de Goethe, adorava música. Romance escrito entre 1943 e 1946 – GGII ocorria simultaneamente com a escrita fictícia da biografia do compositor Adrian Leverkühn. Escreveu O Romance de Um Romance: a Gênese do Doutor Fausto, crônica do processo de escrita desta obra.

  • Thomas Mann – Uma Biografia de Donald A. Prater é sua melhor fonte histórica.

  • Filho de mãe brasileira (Júlia da Silva Bruhns, filha de portugueses da região de Angra dos Reis) que casou com um alemão. Seu irmão mais velho, Heinrich Mann, escreveu Der Untertan (O Súdito) e Professor Unrat (transformado no filme O Anjo Azul).

  • Elisabeth Mann Borgese, quinta filha do autor, foi uma das fundadoras do Club de Roma. O ecologismo, como instrumento visando o governo mundial, foi uma derivação lógica do esteticismo. Pode-se dizer que ela traiu a mensagem final do pai.

  • Considerado mestiço (por causa de sua mãe) e casado com uma judia, Thomas Mann naturalmente não adere ao nazismo. Nos EUA vai também presenciar as virtudes daquela sociedade multirracial e acaba rompendo com o esteticismo.

  • Esteticismo é uma corrente filosófica, fundamentalmente alemã, que se propunha a verdade revelada, substituindo a Revelação pelo Belo. Nietzsche é o apogeu do Esteticismo ao declarar a morte de Deus, a morte da Metafísica.

  • Os nomes têm significados, e.g. Leverkühn (viver audaciosamente), Zeitblom (florescimento do tempo), Scheimgstill (calo em silêncio), Nepomuk (mártir húngaro).

  • Para Mann burguesia tem uma conotação específica. Ela é fruto da revolução protestante, são aqueles comerciantes protestantes que se opuseram e venceram a aristocracia e a igreja católica.

  • O Conselho Mundial de Igrejas reúne a esquerda protestante, assim como a Teologia da Libertação faz no catolicismo. Ambas criações da KGB.

  • O protestante é mais fácil de errar pela sua liberdade de interpretar os textos sagrados. No catolicismo há pouca área de manobra doutrinal, pois tudo foi discutido na escolástica. Por isso o protestantismo é capaz de gerar muitas dissidências.

  • Os interesses de Adrian Leverkühn, filosofia, matemática e música, remetem ao pitagorismo.

  • Mefistófeles aparece em diferentes formas: Prof. Schlepfuss, carregador de malas, Esmeralda, cão Suso, Senhora von Tolda, entre outros.

  • Número 34: está na gravura de Dürer (Melancolia) onde todas as somas dão o número 34 (também foi o número do quarto na Montanha Mágica) – elemento empírico de que a vida do homem está relacionada aos astros – confirmando a tese da predestinação (daí o gosto destes homens pela astrologia). Mas o mapa astral não conta o aspecto moral (decisão humana) e a intervenção divina.

  • Nota-se o elemento feminino é portador da mensagem demoníaca: voz musical da mãe, canto da empregada da infância, prostituta que lhe transmiti sífilis. Mudança do papel feminino na sociedade, daquele que santifica para aquele que demoniza. A mulher foi aqui usada no sentido bíblico.

  • A escolha da música como substituta da religião não foi aleatória, pois ela é uma característica humana não encontrada na natureza. É um domínio do ser humano, não tem modelo natural.

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