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Berlim Alexanderplatz de Alfred Döblin

  • Foto do escritor: Cultura Animi
    Cultura Animi
  • 19 de dez.
  • 7 min de leitura
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Wach sein. Dem Menschen ist gegeben die Vernunft, die Ochsen bilden statt dessen eine Zunft." (Vigiai. Ao homem foi dada a razão, os bois, em vez disso, formam uma corporação.) – o homem moderno despido da razão, e presa da ideologia coletivista



Personagens Principais Franz Biberkopf – protagonista central, ex-presidiário, forte e ingênuo Reinhold – criminoso manipulador e sedutor compulsivo Lina – polonesa, namorada inicial de Franz após a saída da prisão. Mieze (Mitzi / Mizzi) – jovem prostituta, grande amor de Franz Eva – amiga e ex-namorada de Franz, prostituta Herbert Wischow – cafetão de Eva, amigo de Franz


Personagens Secundárias Ida – ex-namoradade Franz, morta por ele antes do início da história Emilie (Minna) – irmã de Ida, estuprada por Franz Eliseu e Nahum – judeus que narram a história de Zannovich a Franz Cilly (Fränze) – uma das mulheres que Reinhold oferece a Franz Pums – líder de uma gangue de ladrões, recruta Franz para roubos Meck – membro da gangue de Pums, envolvido em crimes com Franz Otto Lüder – vigarista, oportunista urbanoFrau Bast – dona de um bar frequentado pelos personagens



Interpretação O livro é uma crítica mordaz à modernidade e ajuda-nos a entender o surgimento do nazismo, o estopim da Segunda Grande Guerra e a gênesis do totalitarismo.


O autor apresenta um mundo sem transcendência religiosa, com a experiência de sentido cada vez mais imanente e fragmentada; onde a ordem moral se esfacela em face da massificação e da lógica impessoal. Em suma, vemos uma Berlim onde o sentido de transcendência está ausente, com a sociedade fragmentada psíquica e culturalmente, onde as ordens simbólicas tradicionais de dissolveram, e onde o indivíduo não mais consegue encontrar um centro moral ou espiritual. Döblin fez uma anatomia moral da modernidade, onde os homens já não sabe o que significa ser bom – um mundo onde as condições mínimas para a ética já estão destruídas.


Toda ordem social e psíquica saudável depende de uma experiência viva da transcendência (Deus, o Bem, o fundamento do ser). Quando essa experiência se perde, se fecha no mundo, se reduz ao imanente, temos a doença espiritual da modernidade. Em Berlim Alexanderplatz a sociedade já perdeu a experiência da transcendência, e por isso não consegue mais ordenar o humano.


A Berlim do romance apresenta uma ordem imanentizada (mecânica e cruel), onde forças mundanas assumem funções antes reservadas à transcendência. Uma Berlim onipresente, que organiza o destino, julga e pune, destrói e reconfigura. A cidade funciona como: um “Deus negativo”, sem a Graça e sem sentido.Franz Biberkopf é um homem espiritualmente mutilado. Sua consciência foi deformada, reduzida. Ele perdeu a abertura a sua tensão existência (metaxy), vive preso ao imediato, e substituiu sentido por sobrevivência. Franz não pergunta pelo sentido do sofrimento, não se dirige ao transcendente, não formula culpa metafísica. É um homem sem participação no fundamento do ser. Ele não é um rebelde contra Deus — ele é um homem para quem Deus já não é uma experiência possível. É um homem formado apenas por forças materiais, sociais e instintivas, não pela transcendência.


Franz nunca sente culpa pela morte de Ida ou o estupro de Minna. Esta ausência de culpa impossibilita uma conversão, pois a culpa verdadeira surge da experiência da transcendência violada. Ele sente dor, humilhação, e perda. Mas nunca culpa diante do ser, ruptura com o fundamento. Sem culpa metafísica, não há conversão. Isso explica porque Franz nunca busca Deus, pois seu sofrimento não o redime, pois não há catarse espiritual.

Franz busca redenção no corpo, não na alma. Sempre que Franz tenta melhorar, ele buscatrabalho físico, relação amorosa (Mieze), e obediência prática (“vou ser decente”).


Quando tudo isso falha, ele: enlouquece, adoece, quebra. O corpo colapsa antes que a alma desperte. Deus não é um recurso disponível no universo mental de Franz.

Ao final, a nova identidade Franz “Karl” Biberkopf é sua reinscrição administrativa e funcional. Ele não é mais um indivíduo, mas uma peça da engrenagem. Ele não apreendeu o Bem, mas apenas o que não fazer segundo aquele estado de coisas: que a força o destrói, que a lealdade cega mata, que o excesso o aniquila, que a cidade vence sempre. É aprendizado por amputação, literal e simbólica. Franz não evolui, apenas sobreviveu aos escombros de si mesmo. 


Se Franz é um homem confuso, Reinhold apresenta uma consciência fechada, espiritualmente fechada. Ele não busca sentido, não se angustia, não se pergunta. Ele age com frieza funcional. Reinhold tem a consciência enrijecida, incapaz de abertura ao fundamento. Por isso ele não sofre como Franz. Enquanto Franz tem a consciência mutilada, sem abertura ao fundamento, Reinhold tem consciência cerrada, é um niilista funcional.


A colagem textual usada por Döblin (jornais, anúncios, vozes, estatísticas) não é apenas um artifício estético. Ela expressa a consciência fragmentada, sem centro simbólico, sem hierarquia de sentido, onde a linguagem perde sua função de mediação do ser. A palavra já não revela, orienta, e eleva. Ela apenas informa, repete, e distrai – típico de uma ordem cultural espiritualmente desintegrada.


Quando a transcendência se perde, resta apenas a ordem mínima pragmática, contenção do caos, administração da desordem. O final de Berlim Alexanderplatz mostra exatamente isso: Franz não é salvo, mas é estabilizado; não é redimido, mas é neutralizado. É uma ordem substitutiva, não a verdadeira ordem – ela impede o colapso total, mas não reconcilia o homem com o ser.


Berlim Alexanderplatz não é apenas um romance, é também um documento espiritual – um diagnóstico da consciência moderna desordenada, um retrato de uma sociedade que perdeu Deus, mas não ganhou sentido algum em troca. Döblin mostra o que acontece quando a transcendência desaparece. Berlim Alexanderplatz é um romance exemplar da crise espiritual moderna.



A maioria dos alemães apoiaram a Segunda Grande Guerra, pois parecia-lhe a única saída para o vazio, a humilhação e a miséria das últimas duas décadas. A guerra prometia sentido, força, vingança, comunidade – tudo o que Franz Biberkopf nunca conseguiu na paz. O entusiasmo bélico foi plantado na alma de milhões de homens esmagados espiritual e moralmente, e regado durante anos pela crise, pelo medo e pela propaganda. Quando rufaram os tambores em 1939 o povo marchou sem questionar, exatamente como Döblin previu dez anos antes.


Em 1914 o povo foi à guerra ainda mais entusiasmado – havia uma euforia festiva nas ruas, com estudantes, operários e burgueses caminhando abraçados. A Alemanha ainda vivia a ilusão da guerra como uma aventura de curta duração, que podia trazer glória nacional e prestígio social. Não havia memória coletiva de derrota total e da miséria, o entusiasmo pelo conflito era enorme (ver A Sagração da Primavera de Modris Eksteins).


Mas em 1939 o apoio foi cansado, resignado, defensivo – o suporte de quem já tinha sido destruído uma vez e agora acreditava que só a força bruta impediria que acontecesse de novo. Berlin Alexanderplatz prevê esse estado de espírito: o homem alemão de 1939 não marcha cantando por glória, ele marcha em busca de sentido.



Tal ambiente degenerado espiritual, moral e intelectualmente é fértil para ideologias coletivistas e totalitárias como o nazismo e o comunismo. Como agravante, a República de Weimar deixou milhões de pessoas na miséria, sem esperança, sem pertencimento ou futuro. Quando alguém ofereceu ordem, trabalho, força e um bode expiatório, essas pessoas, como Franz Biberkopf, embarcaram em suas ideias. O romance é um poderoso, mas ignorado, alerta sobre como nasce o totalitarismo: não com tanques na rua, mas com o esmagamento lento e diário do sentido de transcendência, da moral tradicional, da linguagem e da individualidade do homem.


A similaridade com os dias atuais é avassaladora.





Notas



  • Alfred Döblin (1878-1957) nasceu em Stettin no Império Alemão (atual Szczecin na Polônia).

  • Escritor, ensaísta e médico de origem judaica,é considerado uma das figuras mais relevantes do modernismo literário alemão e do movimento expressionista.

  • Sua origem judaica e visões socialistas o obrigaram a fugir da Alemanha nazista em 1933, exilando-se primeiro na Suíça e França, depois nos Estados Unidos. Em 1941, converteu-se ao catolicismo. Retornou à Europa após a Segunda Guerra Mundial, vivendo na França e na Alemanha Ocidental.

  • Berlim Alexanderplatz, publicado e 1929, é sua obra mais famosa. Romance inovador, utiliza técnicas de montagem (justaposição de fragmentos heterogêneos), monólogo interior e elementos da vida urbana (como anúncios e canções populares), influenciando autores posteriores.

  • Alexanderplaz era um bairro operário, onde Alfred Döblin abriu seu primeiro consultório.

  • O conceito de metaxy (do grego μεταξύ, que significa "entre" ou "no meio") é um dos pilares centrais da filosofia política e da consciência de Eric Voegelin. Ele o toma diretamente de Platão, especificamente do diálogo O Banquete, onde Diotima descreve Eros (o amor) como um daimon que existe entre (metaxy) o divino e o mortal, mediando entre deuses e humanos – condição existencial fundamental do ser humano. O homem não é nem puramente divino nem puramente mortal, nem completamente imanente (preso ao mundo material) nem transcendente (totalmente fundido no divino). Ele vive em uma tensão permanente entre polos opostos: (a) o finito e o infinito, (b) a imanência e a transcendência; (c) a mortalidade e a imortalidade; e (d) o apeiron (o ilimitado) e o nous (a mente divina ou o fundamento do ser). Metaxy é a matriz da condição humana, o lugar luminoso da busca pela ordem verdadeira, onde a filosofia, a história e a religião se encontram na experiência da realidade participativa.

  • Em Hitler e os Alemães, Voegelin explica a ascensão do nazismo como uma migração coletiva para uma segunda realidade. A sociedade alemã, marcada por uma decadência espiritual (perda de substância moral, intelectualismo vazio), tornou-se suscetível a uma visão ilusória onde Hitler representava o salvador em um drama apocalíptico imaginário. Isso permitiu a cumplicidade generalizada com crimes, pois a primeira realidade (horror dos campos de concentração, genocídio) era eclipsada por narrativas ideológicas (e.g. purificação racial como progresso histórico). O romance de Döblin ilustram a perda de substância espiritual que facilita a entrada na segunda realidade.

  • O termo segunda realidade cunhado por Eric Voegelin é uma construção imaginária, uma distorção ou substituição deliberada da primeira realidade (realidade autêntica caracterizada pela tensão existencial). É um mundo ilusório criado pela consciência deformada (o que Voegelin chama de pneumopatologia ou doença espiritual), onde o indivíduo ou a sociedade rejeita a realidade insuportável e a substitui por uma versão idealizada, a-histórica e manipulável. Essa segunda realidade serve para aliviar a tensão existencial, mas ao custo de uma perda de contato com o real.

  • Outros romances que ajudam a entender a deformação espiritual que desencadeou o nazismo e, consequentemente, a Segunda Grande Guerra incluem O Homem Sem Qualidades de Robert Musil e Os Sonâmbulos de Hermann Broch. Musil aborda mais o que acontecia com a consciência intelectual, ao passo que Broch foca mais na perda dos valores éticos. 

  • Döblin escreve sobre homens que sofrem sem saber que Deus poderia estar ausente (consciência mutilada, fechada no imanente), contrastando com homens de Dostoiévski que pecam diante de Deus (consciência aberta ao fundamento do ser). Em Dostoiévski o mundo é dilacerado, mas ainda aberto a Deus – Deus pode ser negado, blasfemado, combatido, odiado, mas está sempre presente como possibilidade real (o sofrimento tem sentido potencial, ele abre). Mas em Döblin vemos o mundo onde Deus não é negado, não é combatido, não é odiado, Ele simplesmente não opera mais (o sofrimento não significa nada, ele fecha). Com a personagem Raskólnikov em Crime e Castigo há arrependimento, renascimento da fé, e horizonte de redenção. Mas para Franz Biberkopf não há ressurreição, ele é apenas absorvido no coletivo. Dostoiévski mostrava o combate espiritual, Döblin mostrou o resultado da derrota.

©2019 by Cultura Animi

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