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Epopeia de Gilgámesh de Sin-léqi-unnínni

Personagens Principais Gilgámesh – rei da cidade-estado Úruk Enkídu – amigo e companheiro de Gilgámesh Uta-napíshti – sobrevivente do Dilúvio


Personagens Secundárias Ninsun – deusa, mãe de Gilgámesh Shámhat – prostituta do templo em Úruk Shámash – deus Sol Humbába – guardião da Floresta de Cedro Íshtar – principal deusa de Úruk Shidúri – deusa (menor) da sabedoria Ur-shanábi – barqueiro de Uta-napíshti


Gilgémesh é estupendo… considero-o entre as melhores coisas que podem suceder a alguém… sinto que está falando de mim… é o épico sobre o medo da morte. – Rainer Marie Rilke (1875-1926), poeta alemão

Interpretação O épico de Gilgámesh, apesar de narrado dez séculos antes do saque de Troia, naturalmente guarda grande semelhança com os mitos gregos, pois os mitos têm significados além da narrativa, provendo fundamentos que nos ajudam a compreender o sentido de nossas vidas, e a natureza humana é atemporal.


No início do épico, Gilgámesh é intemperado e dado a excessos, suas pulsões tirânicas e dionisíacas atormentam seu povo, falta-lhe o equilíbrio do espírito (como em Héracles). E ele enveredará uma jornada de sublimação daqueles desejos ilegítimos, adquirindo a sabedoria necessária para levar uma vida ditosa e reinar justamente.


Os deuses enviam Enkídu, seu duplo, para auxiliá-lo nesta empreitada. Juntos vencerão leões, Humbába e o Touro dos Céus, representantes da tendência dominadora, do desejo titânico e perversão social. É a luta do herói como agente da ordem contra os monstros representantes do caos, da desordem – herói como executor da ordem cósmica. E

Gilgámesh rejeitará o assédio de Ishtar, deusa da guerra e do amor sexual, simbolizando a vitória sobre a irascibilidade e concupiscência.


Mas tais feitos acirram no herói o maior pecado de todos… a húbris (soberba):


Gilgámesh às servas de sua casa estas palavras disse: Quem o melhor entre os moços? Quem ilustre dentre os varões? Gilgámesh o melhor entre os moços, Gilgámesh o ilustre entre os varões!


E os deuses intervêm novamente tirando a vida de Enkídu, recordado Gilgámesh de sua condição de mortal e insuflando o medo da morte em seu coração (para os sumérios a vida após a morte era sinistra, sem possibilidade doParaíso).


Gigámesh inicia sua busca espiritual pela imortalidade, passando pelo túnel de escuridão impenetrável (locais obscuros dentro de nós mesmos, onde buscamos as verdades ainda inconscientes) e cruzando as Águas da Morte – é a descida aos infernos dos processos iniciáticos visando alcançar um patamar mais elevado (“Ele (Gilgámesh) que viu o abismo… ele sábio em tudo” – título original do poema de Sil-léqi-unnínni).


Do encontro com Uta-napíshti e sua esposa, Gilgámesh apreende a inevitabilidade da morte, aprende a viver em paz com a realidade – amadurece. Perseguir a imortalidade é insano, o dever do homem é aceitar a sua mortalidade, entender seu papel e responsabilidade nesta vida (cuidar do seu povo no caso de Gilgámesh – ver Em Busca de Sentido de Viktor Frankl) e saborear os prazeres (legítimos) que ela pode proporcionar:


Tu, Gilgámesh, repleto esteja teu ventre, Dia e noite alegra-te tu, Cada dia estima a alegria, Dia e noite dança e diverte! Estejam tuas vestes limpas, A cabeça lavada, com água estejas banhado! Repara na criança que segura tua mão, Uma esposa alegre-se sempre em teu regaço: Esse o fado da humanidade. (Semelhante ao Eclesiastes 9, 7-9)


São os desejos legítimos, sancionados pelo Espírito, e também a responsabilidade do homem com sua família. A felicidade exige o domínio dos desejos, o controle do prazer perverso e dos gozos fúteis. Desejos espirituais e corporais são naturais e conciliáveis, é a exaltação que os torna contraditórios.


Os grandes mistérios, a morte entre eles, não causam receio uma vez conquistada a certeza espiritual que somente se encontra na verdade (espiritualização) e na harmonia (sublimação) – retorno ao repouso no seio da essência-mistério.


Todos nós, em dado momento, deparamo-nos com a aceitação da finitude de nossas vidas, com o fato de que vamos morrer. Se a vida antes parecia uma infinitude de possíveis futuros, agora entendemos que alguns daqueles cenários já não são mais possíveis, estamos no meio de algo, e o futuro é um caminho cada vez mais estreito. A perspectiva da morte ilumina aquilo que mais prezamos, remove as ilusões, e nos apura a perspectiva. A inevitabilidade da morte nos alivia do peso do potencial ilimitado – somos o que somos, fazemos o que podemos, nos aceitamos melhor e amamos mais facilmente os outros mortais como nós. A aceitação da morte é indispensável para o amadurecimento emocional e intelectual, pois sem ela o autoconhecimento é impossível.


Ao final Gilgámesh retorna a Úruk um homem transformado, mais sábio. Não encontrou a imortalidade ou fórmula da rejuvenescência, mas está reconciliado com sua natureza humana (sem revolta metafísica) – a maturidade foi alcançada através de sucessos e fracassos. Ele agora tem a humildade necessária para conhecer seu lugar no universo (emblema de maturidade) – ele aproxima-se do seu povo, com o qual comparte a mesma fatalidade ontológica.Gilgámesh viverá o resto de sua vida sabendo que morrerá, e que o que realmente importa é a reputação e realizações que deixará para a prosperidade. Gilgámesh aprendeu a mesma lição de Aquiles: o que realmente conta é o que alcançamos nesta vida, não o quanto tempo vivemos – é o nome e não o corpo que alcança a imortalidade (ao final do poema o herói enaltece as muralhas de Úruk, seu legado).


 


Notas


  • Gilgámesh, personagem histórica, comandou a cidade-estado de Úruk na Suméria c. 2700-2650 a.C.. Entre outros feitos Gilgámesh construiu as muralhas da cidade.

  • Úrik era a maior cidade no tempo de Gilgámesh (entre 50,000 e 80.000 habitantes).

  • As primeiras narrativas escritas sobre Gilgámesh, já em forma mitológica, surgem c. 2100 a.C.. Originalmente contadas em sumério, as narrativas foram transcritas para o acádio, e foram absorvidas por babilônios e assírios (todos estes povos chegaram a dominar, cada um a seu turno, a Mesopotâmia).

  • Sín-léqi-unnínni (c. 1300-1000 a.C.), estudioso babilônico, copilou a narrativa em 12 tabuinhas em acádio. Descoberto em 1850-53 durante as escavações na biblioteca real do rei Assurbanípal (reinou c. 668-627 a.C.) em Nínive, o texto foi adotado como texto padrão da epopeia (como em toda mitologia grega, há significativas variações entre os diversos textos épicos de Gilgámesh).

  • Ao dar ênfase na humanidade de Gilgámesh a despeito de seus grandes feitos, Sin-léqi-unnínni criou o modelo da subsequente literatura heroica.

  • Gilgámesh não é o único herói sumério, tendo sido precedido por Enmercar (fundador de Úruk) e Lugalbando (o pastor, rei de Úruk) – seria a primeira Era Heróica, precursora das análogas grega, indiana e teutônica (ver History Begins at Sumer de Samuel Noah Kramer).

  • O tema da imortalidade e destino do homem também é central na Ilíada de Homero. Também há grande similaridades entre os politeísmos mesopotâmico e grego.

  • O povo de Úruk, insatisfeito com os excessos de Gilgámesh pediam aos deuses por um novo e poderoso rei – diferentemente dos gregos, os sumérios não consideravam a ideia de regerem a si mesmos.

  • Não devemos imaginar que todos queiram a liberdade no seu sentido amplo (liberdade nacional, política e individual), pois muito trocam a liberdade pela sensação de segurança e ausência de responsabilidade de cuidar de si mesmo – correndo o risco de ficar sem a liberdade e a segurança.

  • As grandes civilizações passadas – Índia, China, Grécia, Roma, Mesopotâmia e Egito – não acreditavam na dicotomia entre o sagrado e o secular – não havia separação entre a igreja e estado. Toda civilização começa sem está separação cuja ruptura representa o início de seu longo processo de extinção.

  • Desde os primórdios o ser humano é um “contador de histórias”: (1) explorando questões sobre o significado de ser humano; (2) buscando respostas as perguntas de sempre: O que nos separa dos animais? O que estou fazendo aqui? Por que morremos?; (3) e, como em toda grande literatura, Gilgámesh não dá as respostas, mas apenas ajuda em conhecer quais são as perguntas. A arte (literatura) tem o poder de imortalizar pessoas, povos e feitos.

  • O poema demonstra o poder premonitório então atribuído aos sonhos.

  • O dilúvio narrado no poema apresenta várias semelhanças com a Bíblia, e é um dos muitos dilúvios mitológicos dos quais temos notícia – simbolizando os ciclos civilizacionais e aspectos escatológicos de resgate do melhor da civilização agonizante como semente da futura.

  • Vários aspectos daquela civilização florescente sobressaem no poema: (a) a importância da madeira trazida do norte, (b) pão e cerveja, roupas limpas e asseio pessoal como símbolos civilizacionais, (c) o impacto da vela para navegação e do mergulho na busca de corais, (d) cavar oásis no deserto, (e) técnica de matar touros selvagens, e (f) sexo como um emblema de cultura (talvez no seu aspecto sagrado de formação familiar).

  • O processo histórico de formação das cidades (i.e. (a) família, (b) agregado familiar em torno do patriarca, (c) aldeia e (d) cidade) é demarcada pelo processo envolvendo a culturalização de Enkídu.

  • Nota-se a busca por explicações de fenômenos naturais na associação da troca de pele da cobra com o destino da planta de rejuvenescimento.

  • A relação entre Ur-shánabi, barqueiro das Águas da Morte, e Caronte, barqueiro do Hades, é apenas um dos muitos pontos de contato entre os mitos de diferentes lugares e épocas.

  • O envio de Enkídu para auxiliar o autoconhecimento de Gilgámesh assemelha-se ao envio dos ajudantes para K. em O Castelo de Kafka. O duplo permite ao herói reagir a suas próprias deficiências – sua morte (do duplo) tira o herói do mundo de negação por ele criado, atirando-o na escuridão que precisa iluminar para encontrar a verdade.

  • Para Carl Jung (1875-1961) Enkídu representaria a Sombra, ou seja, o desconhecimento de nós mesmos que habita o nosso inconsciente.

  • O número sete (7) está presente na narrativa em diversas ocasiões. No pitagorismo, o sete tende, como significabilidade, a apontar a graduação qualitativa do ser finito – salto qualitativo-formal, novo modo de ser (o Sétimo Dia como símbolo).

  • O número doze (12), também recorrente, coincide com o sistema duodecimal predominante na Mesopotâmia (assim como na Índia e Egito de então).

  • O poema foi material didático para as futuras gerações de reis – “conselhos reais”.

  • Atrahasis, outro poema épico escrito em acádio datado do século XVII a.C., também apresenta uma versão do Dilúvio, e narra a criação da humanidade para servir os deuses, aliviando-os do trabalho duro. A principal tarefa humana envolvia a irrigação dos campos, a agricultura e pastoreio visando oferendas aos deuses – elementos-chave na viabilização das concentrações humanas. O ser humano foi criado da lama e sangue dos deuses. O elemento divino explica a superioridade do homem frente aos demais animais. Porém, o sangue era de um deus rebelde, causando a irreversível falha da rebelião no coração humano.

  • Uta-napíshti faz o papel quintessencial do sábio que conhece os segredos do cosmos, neste caso o sentido da vida. Seu conhecimento, único entre os homens, será o fim da longa e árdua jornada de Gilgámesh.

  • O sono era visto como o irmão mais novo da morte – daí o desafio de Uta-napíshti a Gilgámesh de tentar não dormir.

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