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Zorba, o grego de Nikos Kazantzakis

Personagens Principais Narrador – intelectual, 35 anos Alexis Zorba – aventureiro, 65 anos

Personagens Secundárias Stavridaki – amigo do narrador, homem de ação, “Agir: não há outra salvação.” Viúva – bela e sedutora jovem viúva Madame Hortênsia – hospedeira, cortesã no passado, idade avançada Pavli – enamorado da viúva, filho de Mavrandoni Zaharia (José) – monge, alega ter dupla personalidade Anagnosti e Mavrandoni – ancião e notável da vila próxima da mina Karayanis – africano, colega de escola do narrador


Só tu existes, ó Terra! Brandei no meu foro íntimo. – Narrador abraçando o mundo material

Interpretação A perda do sentido da vida apresentada pelo narrador tem as características do existencialismo tão em voga no período que o livro foi escrito, e expressa-se diversas vezes ao longo do romance: “A vida é insípida e miserável, indigna do homem.”, “As perguntas eternas, inúteis, insensatas: Por quê? Para quê? Vêm ainda uma vez envenenar-nos o coração.”, ou ainda, “O que é este mundo (…) qual a sua finalidade?”


Ao ser definido por Stavridaki como um “camundongo comedor de papiros” o narrador questiona sua vida ascética (“há anos desprezava as alegrias da carne”), estetizante (“a arte nos liberta”) e voltada aos livros, sentindo que distanciava-se do mundo real e concreto. De fato, seu antigo sonho de viver em uma comunidade espiritual de artistas e intelectuais propondo-se “grandes questões e demolindo velhas respostas”remete a fictícia Castália e o conflito entre as ordens passiva e ativa (ver O Jogo das Contas de Vidro de Herman Hesse).


A personagem objeta a vida excessivamente apolínea levada até então (“encarnou-se todo o meu desprezo pela vida que levara”) e viaja a Creta, onde alugara uma mina de linhita, na busca de ação e sensações (“Até agora, minha Alma, dizia comigo mesmo, tu não vias senão a sombra e tu te alegravas; agora eu te conduzirei à carne.”) – recordando aqui a personagem Gustav Aschenbach eseu embate interno nietzschiano entre Cosmo e Caos (ver Morte em Veneza de Thomas Mann).


É neste estado de espírito que o narrador encontra o ebuliente e dionisíaco Zorba que o acompanha a Creta. Imediatamente há uma atração mútua entre estes dois opostos extremos, insinuando que seriam os respectivos duplos complementares. Ao longo desta convivência o narrador busca o equilíbrio entre o plano espiritual e mundano (entre discernimento e vontade, entre inteligência e existência), resgatar sua capacidade de intuição em diminuindo a “intervenção deformante da razão”, e compreender o ser humano em toda sua dimensão – construindo, ao longo do processo, uma bela amizade de comunhão de almas com Zorba.


 

Menos compassivamente, e considerando a ideologia do autor, podemos ver o narrador como um intelectual messiânico ainda preso ao sonho adolescente de “alcançar, de uma vez só, a vida terrestre e o reino dos céus”, um brâmane que perdeu o sentido de transcendência (“esta vida é a única para o homem, não há nenhuma outra, e tudo o que pudermos desfrutar, será aqui mesmo”) e que, decaindo na matéria, procura substituir o peso dos valores espirituais de sua casta pela corporalidade dos sudras encarnado em Zorba.


Esta interpretação é reforçada pelo gratuito e hiperbólico ataque desfechado a religião no romance, chegando ao ponto de Zorba orquestrar e regozijar-se de um incêndio criminoso em um mosteiro: “Dinheiro, orgulho e frescura, é a Santa Trindade deles.”, ”Depois que o arcanjo passou, o ar cheirava a enxofre.”, e “O mosteiro estava todo negro, como o inferno”. Algumas conversas entre as duas principais personagens revelam uma revolta metafísica, e.g. “Por que é que a gente morre?” pergunta Zorba, “Não sei!” responde o narrador.


Tal posição antagonista a religião coincide com o afastamento espiritual do narrador e a profunda materialidade de Zorba, bem como alinha-se ao posicionamento ideológico comunista destilado pelo autor através da dionisíaca personagem: “A religião é o ópio do povo.”, “Ah, as mulheres eslavas! Que liberdade!”, “Enquanto tiver pátrias, o homem continua um animal feroz…”, e “Ao Diabo o capital e os juros.”. A mais infame colocação também vem através da boca de Zorba: “Tudo em abundância lá na Rússia, patrão! Tudo sobrando: escolha e leve!” – aqui o autor, na mais abjeta postura do “intelectual engajado” cospe nos milhões de cadáveres do Holodomor (ocorrido uma década antes do livro ser escrito).


No antepenúltimo capítulo do livro, o narrador descreve sua visão das quatro castas: “há (...) homens (...) que têm como objetivo de vida — como dizem eles — comer, beber, amar, enriquecer, ficar célebre (esboça aqui os sudras, vaixás e xátrias). Depois há aqueles que têm por objetivo não só a sua própria existência, mas a de todos os homens (referindo-se aos brâmanes).” Na sequência é proposta uma quinta casta: “Enfim, há aqueles cujo objetivo é viver a vida do universo inteiro: todos nós, homens, animais, plantas, astros, somos um só, somos apenas uma mesma substância que trava a mesma luta terrível. Que luta? Transformar a matéria em espírito.” – será este o “novo homem” proposto por Kazantzakis, o “panteísta de ação” da “nova religião”?


 

Notas


  • Nikos Kazantzakis (1885-1957) nasceu Iráklion, Creta (então parte do império Otomano).

  • Cosmopolita, foi diplomata e ministro, participando de vários movimentos revolucionários que se refletem em sua obra. Seus guias foram Nietzsche, Buda, São Francisco e Lênin. Nomeado nove vezes ao Prêmio Nobel, mas nunca venceu.

  • Sua obra contem ensaios filosóficos, romances, épico, tragédias e livros de viagem. Destacam-se: A Última Viagem de Ulisses (épico – 1924-1938), A Última Tentação de Cristo (romance – 1955), e Relatório ao Greco (memórias – póstumo 1961).

  • Segundo Peter Bien (professor de literatura), Kazantzakis via na Grécia a missão de reconciliar o instinto oriental com a razão ocidental, tema recorrente em sua obra.

  • Zorba, o grego foi publicado em 1946. A narrativa se desenvolve em Creta, começando, aparentemente, no final da década de 1910.

  • A personagem Zorba é inspirada em Georgios Zorbas (1865-1941), amigo do autor com o quem trabalhou nas minas de Prastova (Stoupa na Grécia). Kazantzakis dedicou-lhe as seguintes palavras: "... Zorba ensinou-me a amar a vida e não temer a morte".

  • “E se ele (Deus) existe… tudo é possível?” - Zorba inverte a lógica de Ivan Karamazóv.

  • “A juventude é um animal feroz que não entende nada.” – Zorba descreve o predomínio da alma sensitiva nos jovens (Aristóteles)

  • “Você compreende! — gritou (Zorba), como se bruscamente ficasse com raiva, — você compreende e é isso que vai lhe perder! Se não compreendesse, você era feliz. Que é que lhe falta? É jovem, inteligente, tem a grana, uma boa saúde, é um bom sujeito; não lhe falta nada, que Diabo! Só falta uma coisa, a loucura. E isto, quando a gente não tem, patrão… Balançou a cabeçorra e calou-se novamente. Faltou pouco para que eu caísse no choro. Tudo o que Zorba dizia era justo. Em criança, eu era cheios de impulsos loucos, desejos que ultrapassam o homem, e o mundo não podia me conter. Pouco a pouco, com o tempo, tornei-me mais ajuizado. Estabelecia limites, separava o possível do impossível, o humano do divino, segurava firme a minha pipa para que não fugisse.” – fala de Zorba e reflexão do narrador quando estão próximos da despedida.

  • A casta do homem é a “lei”, é neste sentido que o Mânava-Dharma-Shâstra diz: “Mais vale cumprir suas próprias funções de uma maneira defeituosa do que realizar perfeitamente as dos outros; pois aquele que vive no cumprimento dos deveres de outra casta perde imediatamente a sua.” (X - 97)

  • Kazantzakis fala da existência, na Rússia, de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos milhões de crianças para instruir como bem entendia. Esse exército, continua o cretense, tinha seu Evangelho, O Capital, seu profeta, Lênin, e seus apóstolos fanatizados que pregavam a Boa Nova através do mundo. Esse exército possuía também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, hierarquia, liturgia e mesmo a excomunhão: “somos contemporâneos deste grande momento em que nasce uma nova religião”.

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