Personagens Principais Isaías Caminha – 18 anos, estudante e ressentido social Personagens Secundárias Dona Ester – professora de Isaías Valentim – tio de Isaías Coronel Belmiro – fazendeiro mais relevante da região onde morava Isaías Deputado Castro – político no Rio, originário da região de Isaías Laje da Silva – padeiro originário de Itaporonga Raul Gusmão – jovem e prepotente jornalista Ivã Gregoróvitch Rostóloff – 50 anos, viajado jornalista Ricardo Loberant – diretor/dono do jornal O Globo Pacheco Rabelo (Aires D’Ávila) – redator chefe de O Globo Veiga Filho – grande romancista, bem relacionado com O Globo Frederico Lourenço do Couto (Floc) – jornalista, crítico literário
Interpretação “Mon coeur profond ressemble à ces voûtes d’église, oú le moindre bruit s’enfle en une immense voix.” – versos de um filósofo, Guyau
Lima Barreto não é um grande escritor: seus enredos são forçados (e.g. a morte de Floc para desencadear o clímax do romance) e lhe falta beleza e lirismo na construção de suas frases. Porém tem importância como um sátiro da sociedade brasileira de sua época, sendo que muitas de suas observações reverberam, por vezes intactas, até o presente.
Lima Barreto disse que esperava “escandalizar e desagradar” com esta obra, e também demonstrar que o preconceito pode destruir as ambições de alguém como Isaías, i.e. mulato. De fato o autor ataca o governo, os costume e, particularmente, o jornalismo. Entretanto não parece ter escandalizado a sociedade, dada a pequena repercussão do livro em sua época.
A soberba dos jornalistas expressa no romance segue nos nossos dias agravada com ideologias messiânicas. A gravidade disto é patenteada com a manipulação da opinião pública, ação em muito aperfeiçoada com avanços na psicologia e sociologia comportamentais desenvolvidos depois da morte do autor. Barreto demonstra como a mídia adora escândalos, assassinatos e desastres, e não se acanha em fomentá-los.
Outros aspectos culturais abordados incluem o fascínio com o emprego público, já então sinônimo de menos trabalho e melhor salário, e a crença de garantia de sucesso com um diploma na mão. Também transparece claramente o predomínio da sensualidade sobre a espiritualidade – mesmo que esta não tenha sido a intenção do autor.
Lima Barreto falha no objetivo de sensibilizar a sociedade sobre a suposta condição de Isaías como vítima de preconceito. Isaías Caminha não resiste ao contraste do ideal com a realidade. Não entende as circunstâncias impostas pela realidade e o caráter trágico da vida. A vitimização é uma constante em sua interação com o mundo – a culpa sempre é de alguém, mesmo seus erros são produto dos outros.
Demasiado sensível e emocionalmente frágil (ver epígrafe do livro acima), Isaías quase vai às lágrimas ao menor sinal de preconceito, mas é incapaz de entender as inúmeras ocorrências do contrário: (a) a professora “de olhos azuis” que se dedicou a ele, (b) o principal fazendeiro de sua cidade natal que se prontificou em ajudá-lo, (c) Lage da Silva que mal o conhecia e o convida para o teatro, jantar e apresenta-o aos amigos, (d) Ivã que lhe arruma um emprego, (e) o delegado que foi correto e educado com ele, e (f) Loberant que, ao final, o inclui no seu círculo de amizades. Nada disto remete a uma sociedade preconceituosa. Mas um simples safanão no bonde provoca-lhe ódio e “sentimento de opressão da sociedade inteira”. Isaías também se revolta quando perde o pistolão, como se fosse uma obrigação do outro favorecê-lo, e abate-se com facilidade diante do primeiro obstáculo.
Fato é que Isaías tinha exacerbado orgulho de sua educação e cultura, acreditando que isto seria o bastante para garantir-lhe reconhecimento social e sucesso material. Transforma-se em um intelectual ressentido com a não transformação de seus conhecimentos em reconhecimento social e ganho material – um sudra travestido de brâmane que via na sabedoria o caminho para a felicidade social e material.
Apesar de sua confessada “ignorância de viver e falta de experiência” Isaías julga e condena a todos. Todos têm problemas graves, mas ele não admite críticas contra si. Revela-se preconceituoso diante daqueles com os quais trava contato. Vaidoso, finge saber aquilo que não sabe, ou seja, é também um desonesto intelectual.
Isaías não passa de um ressentido social. Patologia típica da pós-modernidade quando cada um acredita-se revestido de todos os direitos e nenhuma responsabilidade, desprovido de sentido trágico, acredita-se vítima do mundo e de um Deus mau.
Notas
Lima Barreto (1881-1922), jornalista e escritor, nasceu no Rio de Janeiro.
Principais romances: Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919) e Os Bruzundangas (1923). Entre seus vários contos destaca-se O homem que sabia javanês e Clara dos Anjos (novela inacabada).
Para Otto Maria Carpeaux, Lima Barreto deve parte de suas qualidades àquilo que foi a desgraça da sua vida: a boêmia. Ele é precursor do modernismo brasileiro que se manifestará em 1922, ano da morte do romancista.
O sinais de real preconceito sentidos por Isaías resultam da sua honestidade num ambiente corrupto – não tem nada que ver com raça.