Péricles de William Shakespeare
- Cultura Animi

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“Thou god of this great vast, rebuke these surges, Which wash both heaven and hell…” – Péricles (Ato III – Cena 1), o mar como caos cósmico
“We have heard your miseries as far as Tyre, And seen the desolation of your streets… But we do see the gods have been merciful.” – Péricles (Ato V – Cena 3), entendendo a ação da Providência
Personagens Principais Péricles – príncipe de Tiro Marina – filha de péricles e Taísa Gower – como coro Helicano e Escanes – nobres de Tiro Simônides – rei de Pentápole Cleão – governador de Tarso Cerimão – nobre de Éfeso
Personagens Secundárias Taísa – filha de Simônides
Antíoco –rei de Antioquia
Lisímaco – governador de Mitilene
Dionisa – esposa de Cleão
Interpretação
Péricles é claramente uma peça sobre a perda da ordem e sua recuperação mediada por uma intervenção divina. É uma das peças onde Shakespeare mais revela sua índole cristã.
Os problemas de Péricles relacionam-se ao mar. O mar simbolizando as adversidades do devir – o caos cósmico. É no mar que suas atribulações têm início, mas é também o mar que lhe trará as alegrias da reconciliação – pois o mar também simboliza lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos.
Água em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte. Na Divina Comédia, Dante Alighieri usa explicitamente o mar como metáfora existencial. O início compara o desvio da alma ao perder-se no mar. O Purgatório é atingido por uma navegação guiada por um anjo. E a vida é uma viagem marítima cujo porto final é o Paraíso.
A aparição da deusa Diana guiando Péricles ao templo em Éfeso propicia o milagroso reencontro. Diana simboliza a Providência, a graça divina que age por trás do aparente absurdo do sofrimento humano. Por um milagre da graça o sofrimento mais profundo pode se transformar em alegria e restauração da ordem natural. A ressurreição de Taisa e a manutenção da pureza de Marina apesar das provações (sequestro, bordel) exemplificam a graça que transforma o sofrimento em milagre.
A peça toda é uma alegoria de morte e ressurreição, literal ainda no devir no caso da família de Péricles, e, simbolicamente, espiritual para a humanidade. Shakespeare está nos dizendo que a vida é um longo e doloroso exílio no mar, mas todos nós, um dia, voltaremos para casa.
A peça também não deixa de ser uma loa à família, tal qual o soneto VIII, também de Shakespeare, dirigido ao homem solteiro – a família como base de toda existência social e humana:
Doce música, por que a ouves tão triste? Doçuras não se atacam; a alegria se rejubila; Por que amas aquilo que não recebes efusivo, Ou com prazer aceitas teu incômodo? Se a harmonia de afinados sons Bem ajustados ofendem o teu ouvido, Docemente te repreendem, tu que confundes As partes do que deverias suportar. Vê como uma corda à outra unida, São tangidas, de cada vez, mutuamente; Assemelhando-se a pai e filho, e à feliz mãe, Que, em uníssono, entoam um doce som; Cujo canto inaudível, sendo muitos, soa como um, Assim cantando para ti: “De nada valerá a tua solidão”.
Notas
William Shakespeare (1564-1616) em Stratford-upon-Avon, Inglaterra. Era católico num mundo protestante.
Shakespeare escrevia, dirigia, produzia e atuava em suas peças. Deixou-nos a maior obra teatral do mundo moderno.
Apesar de serem denominadas como Tragédias, as peças de Shakespeare são Dramas. Pois o que caracteriza a tragédia é a inexistência da malícia humana.
Bons livros para entender Shakespeare: Sobre Shakespeare de Northrop Frye e A Arte Sagrada de Shakespeare de Martin Lings.
Péricles, provavelmente composta em 1608, tem enredo inspirado em um dos contos de John Gower (c. 1330-1408), do livro Confession Amantis, adaptação de um romance de origem grega.
Em diálogos como Fédon e República, Platão usa imagens marítimas para descrever a viagem da alma: a vida terrena é comparada a uma travessia perigosa, cheia de ilusões (como o mar agitado), sendo o filósofo um piloto que guia a alma rumo ao Bem.
O neoplatônico Plotino usa imagens de imersão e emergência: A alma “desce” ao mundo sensível como quem adentra o mar, e a filosofia é o retorno à superfície (a volta ao Uno). O mundo material é comparado a uma profundidade aquática, onde o espírito se mistura a densidades estranhas a ele.
Para os estoicos a vida é um mar tempestuoso onde a virtude é o leme. A alma sábia é um piloto que mantém o curso apesar dos ventos. Sêneca, sobretudo nas Cartas a Lucílio, explora repetidamente essa imagem.
São Agostinho associa o mar à errância da alma antes de encontrar sua “pátria” – “mar tempestuoso” que precede o porto seguro da divindade.


