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John Ford (1894-1973)

Peter Bogdanovich: "Mr. Ford, you made a picture called 3 Bad Men which is a large scale western. You had a quite elaborate land rush in it. How did you shoot that?"

John Ford: "With a camera."


John Ford é único nos anais do cinema. Sua arte é incomparável, construída obstinadamente ao longo de sessenta anos e 112 filmes. Ford cresceu com o cinema americano. Ele desenvolveu seu ofício na década de 1920, alcançou força dramática na década de 1930, inspiração épica na década de 1940 e evocação simbólica na década de 1950. Contador de histórias e poeta de imagens, ele produziu uma obra sem paralelo.


O tema de seus filmes era sua vida e sua época. Imigrante, católico, conservador, ele falou pelas gerações que criaram os Estados Unidos entre a Guerra Civil e as Grandes Guerras. Ford narrou a sociedade daquele meio século, expansionista por concepção, mística e religiosa por convicção, hierárquica por acordo: uma associação de iguais dentro de uma estrutura de comando, com qualidades práticas, patrióticas e devotas.


Por muito tempo Ford retratou a utopia comunitária americana, um valor superior pelo qual valia a pena viver e morrer. Mas com o passar dos anos ele testemunhou o surgimento da geração que não merecia o esforço e sacrifícios de seus antepassados, e seus últimos filmes revelam tal desilusão, especialmente o profético The Man Who Shot Liberty Valance.


Em todo filme da Ford há uma arma atrás da porta, uma convicção por trás da piada, um desafio em cada brinde. Ford pertence à tradição da arte narrativa americana, onde contar uma história e traçar uma moral são aspectos indissociáveis da expressão pública. Ele entendia que vivemos na história e que a história incorpora lições que devemos aprender. Nenhum outro diretor expressou melhor o valor da experiência do passado e a força da tradição.


Ford entendia a condição humana como uma história de pecado, sacrifício e a esperança de redenção. Seus filmes apresentam uma guerra espiritual em jogo, e as pessoas que parecem os piores pecadores muitas vezes não o são; e ninguém se compara a Ford em mostrar como as trevas do coração humano, evidentes no egoísmo, na falta de misericórdia, na avareza e na ambição, podem destruir não apenas o pecador, mas toda uma comunidade. Sua obra é um monumento para ser revisto inúmeras vezes. obra é um monumento para ser revisto inúmeras vezes.


Seguem comentários sobre algum de seus mais proeminentes trabalhos:


The Iron Horse (1924): Depois de testemunhar o assassinato de seu pai quando menino, o adulto Brandon ajuda a realizar o sonho paterno de uma ferrovia transcontinental. Entre as maiores bilheteria da década, o filme fez a fama internacional de Ford. Correlacionando a união do país pela ferrovia com a união das diferentes etnias operando na sua construção, Ford limita o excesso melodramático comum em tantos dramas mudos da época, usando mais ação e movimento para impulsionar a narrativa. Com seus belos cenários, personagens que exibem os padrões de força masculina e beleza feminina, e uma importante narrativa da história americana, pode-se facilmente entender o sucesso desta produção.


3 Bad Men (1926): Três bandidos ajudam uma jovem depois que seu pai é morto. 3 Bad Men mistificou o gênero western criando atributos que se repetem até hoje. Temas épicos enunciados em um prólogo – imigrantes em navios à vela, corrida do ouro em Dakota, aração com tração a bois – são esquecidos, em meio a informalidades, tramas e interlúdios cômicos, até depois da corrida pela terra. Então o slogan de uma carroça quebrada é atualizado (“Busted – by God”) e a esposa declara: “Este solo é mais rico que ouro”. Ao longo da narrativa, o curioso cavalheirismo dos três anti-heróis pontua temas fordianos de amizade e preciosidade da vida. Trios de heróis semelhantes ocorrem frequentemente em Ford (ver Three Godfathers (1948)), sempre associados ao mito dos três reis magos e à redenção através do autossacrifício. O encontro dos três com a protagonista, e a transformação por ela provocada, emula o de Odisseu com Nausícaa na Odisseia de Homero. John Ford mostra sua genialidade com grandes visuais – a cena do incêndio da igreja e a do bebê abandonado na corrida pela terra estão entre as melhores cenas que ele já fez. É um dos melhores filmes mudos de Ford.


The Informer (1935): Um obtuso rebelde irlandês denuncia seu amigo e entra numa espiral de culpa, negação e busca por redenção. John Ford ganhou o primeiro de seus quatro Oscar com esta história de traição, ambientada na Revolução Irlandesa de 1922 – roteiro baseado no romance homônimo de Liam O'Flaherty. Impressionante estudo psicológico de um Judas de sarjeta tendo como cenário o submundo de Dublin durante o terror Black and Tan. É o retrato de uma sociedade sem heróis e moralmente esgarçada. Destaque para o papel feminino redentor na humanidade.


Stagecoach (1939): Ford volta a fazer um western depois de treze anos, resgatando a dignidade do gênero que andava em baixa. O filme também mudou o status de John Wayne em Hollywwod – a primeira aparição de Wayne no filme é icônica. Em meio a personagens arquetípicas, Ford foca na superioridade moral dos marginalizados, reconhecendo o tipo humano que o desbravamento do Oeste exigia, e proporcionando uma representação mítica da aspiração americana por igualdade politica. Notar a impressionante performance do dublê Yakima Canutt substituindo Wayne ao pular da carruagem para dominar os cavalos e, principalmente, como o índio que cai sob as patas dos cavalos e rodas da caruagem.


Young Mr. Lincoln (1939): Relato ficcional da juventude do presidente americano como um advogado iniciante que enfrentava seu primeiro grande processo judicial. Uma das obras mais significativas da década de 1930, o filme foi admirado tanto pelo diretor Sergei Eisenstein, por sua personificação do espírito da época, como pelos críticos franceses dos Cahiers du Cinema pela convergência de ideologia e estilo. Lincoln é o paradigma do herói fordiano: celibatário e sozinho, possuidor de conhecimentos superiores para mediar a intolerância e proclamar um novo testamento, mesmo que por violência ou trapaça.


The Grapes of Wrath (1940): Família de Oklahoma, expulsa da sua quinta pela pobreza e desesperança do Dust Bowl, junta-se à migração para a Califórnia, sofrendo os infortúnios dos desabrigados na Grande Depressão – adaptação do romance homônimo de John Steinbeck lançado com grande sucesso no ano anterior. John Steinbeck, como Jorge Amado no Brasil, era um empregadinho da União Soviética e, ao menos na década de 1930, escrevia o que o Comintern ordenava – a trilogia Dustbowl, que inclui The Grape of Wrath, foi escrita logo após Steinbeck associar-se a League of American Writers criada pelo Communist Party USA em 1935. Assim como no caso de Jorge Amado, muito da popularidade de Steinbeck deve-se a máquina de propaganda comunista.

O melhor comentário sobre o filme foi elaborado pelo ator George O’Brian que trabalhou com Ford em muitos filmes: de acordo com o filho de O’Brien, “it was dad’s opinion that Ford ought never to have made The Grapes of Wrath: in so doing Ford had made himself, however innocently, a purveyor of communist-socialist propaganda. I offered that the film was nevertheless intensely moving and a piece of high cinematic art. My father said that this was just the trouble.” – o comunismo sempre explorou a sensibilidade humana falsamente associando mazelas sociais aos seus inimigos ideológicos. Anos mais tarde, compreensivelmente, Ford tenta defender-se do aspecto revolucionário do filme afirmando estar interessado nas personagens da família – “it’s a study of a family” – mas a fonte, o romance de Steinbeck, não deixa margem para dúvidas. Apesar de lúgubre e panfletário, The Grapes of Wrath rendeu a Ford seu segundo Oscar como melhor diretor.


How Green Was My Valley (1941): Na virada do século XX, em uma vila mineira galesa, os Morgans, ele severo, ela gentil, criam filhos mineiros e esperam que o mais novo encontre uma vida melhor. Baseado no romance homônimo de Richard Llewellyn que fora um best seller em 1939. Talvez escaldado com Grapes of Wrath, Ford despe o romance dos seus aspectos mais panfletários focando em temas que cobrem a vida e a morte, o casamento e o romance, o trabalho árduo e a fé, e o amor à família – uma aula de como encarar os aspectos trágicos que impactam nossas vidas. Assim, o filme segue perene em sua qualidade e valor de entretenimento. O uso de narração em off foi inovador. Rendeu o terceiro Oscar de melhor diretor para Ford, e também levou o de melhor filme batendo Citizen Kane.


They Were Expendable (1945): Comandante da Marinha luta para provar a capacidade de batalha do barco PT (lancha-torpedeiro) no início da Segunda Guerra Mundial. Ford e um dos protagonistas, Robert Montgomery, serviram da Marinha na Segunda Grande Guerra, e o filme é um tributo aos homens que provaram a necessidade destas embarcações no Pacífico durante a guerra – “um documentário com atores” disse John Bulkeley, o herói de guerra representado no filme por Montgomery. Destaque para a cerimônia fúnebre onde a personagem de John Wayne faz um comovente discurso (Requiem de Robert Louis Stevenson) a dois camaradas de armas caídos. O final transmite outra mensagem sóbria e comovente sobre os diferentes tipos de sacrifício que ocorrem em tempos de guerra. Ford lembrava ao público americano de que a vitória no Pacífico foi alcançada com um custo tremendo em vidas humanas. Continua sendo um dos dramas de guerra mais poderosos já feitos.


My Darling Clementine (1946): Depois que seu gado é roubado e seu irmão caçula assassinado, os irmãos Earp têm contas a acertar com a família Clanton. A narrativa segue o núcleo moral do gênero western: o confronto entre a lei e a anarquia, a lei vence e a última cena apresenta a nova professora, representando a chegada da civilização. O fato do título não mencionar Earp ou o O.K. Corral é uma indicação da leveza com que o filme aborda o lendário duelo. Ford embaralha as expectativas do espectador desde o início, evitando rivalidades claras entre os personagens em favor de configurações emocionais e sociais mais complexas. My Darling Clementine era o prenúncio dos melhores westerns que Ford estava por realizar.


The Fugitive (1947): Para sua primeira produção independente Ford escolheu um romance de Graham Greene (The Power and the Glory) abordando a perseguição aos cristãos no México no final da década de 1920. Segundo Ford, The Fugitive “...is really not a sound commercial gamble but my heart and my faith compel me to do it.” E de fato, apesar de ser um dos filmes favoritos de Ford, The Fugitive foi um fracasso de bilheteria. Tal performance no guichê talvez se deva a censura dos aspectos mais fortes do livro, principalmente do fato do padre ser bêbado e promíscuo (o filho de Maria é dele no livro e não do sargento da polícia). A verdadeira fuga do padre não é da polícia, mas sim de suas obrigações como homem e como padre. É uma fuga interior do melhor de si mesmo, e a censura impediu que isto ficasse claro. Ao final ele se redime, é preso e fuzilado, mas morreu livre do seu abismo interior e reconectado com Deus.


Fort Apache (1948): Honrado capitão veterano de guerra entra em conflito com seu novo comandante sedento de glória (personagem vagamente baseada em George Armstrong Custer e seus erros na fatídica batalha de Little Big Horn). Primeiro filme da Trilogia da Cavalaria de John Ford (os outros são She Wore a Yellow Ribbon e Rio Grande) baseada nos contos de James Warner Bellah que ecoam os ideais militares vitorianos de aristocracia, dever, honra e patriotismo. A trilogia também reflete a experiência de Ford na Segunda Grande Guerra e seu fascínio pelo elevado senso de comunidade entre os combatentes. John Wayne e Henry Fonda protagonizam o filme num embate entre o letífero orgulho (Fonda) e sua cura, a humildade (Wayne), reverenciando a necessidade de equilíbrio na ontológica tensão entre o indivíduo e o coletivo.


Three Godfathers (1948): Três bandidos em fuga pelo deserto encontram uma mulher moribunda e seu bebê em uma carroça. Antes de falecer, ela faz os homens prometerem cuidar de seu bebê e levá-lo em segurança de volta à civilização. O filme, repleto de simbolismo da natividade, é paradigmático da temática fordiana: a vida não é uma peregrinação sem sentido, mas uma peregrinação que leva a algum tipo de epifania predestinada ou decretada divinamente – redenção (talvez imolação). A salvação pode exigir grande esforço, mas em última análise é a graça de Deus que salva, excedendo a compreensão através do milagre. Aqui Ford associa o Natal à chegada da graça – redenção universal.


She Wore a Yellow Ribbon (1949): O capitão Nathan Brittles (interpretado por John Wayne), às vésperas de se aposentar, realiza uma última patrulha para impedir um iminente ataque indígena – um estudo psicológico e social do soldado profissional que sobrevive ao seu serviço e está prestes a encerrar o serviço militar. Grande modelo de liderança, compassiva mas dura, exercida pelo exemplo. Um filme sobre honra, coragem, camaradagem, dever e paz (“Old men should stop wars.”). E também sobre a função existencial da culpa em amparar os sobreviventes, sustentar a lealdade aos mortos mantendo-os sempre presentes no pensamento. A fotografia de Winton Hoch é lendária – particularmente na famosa sequência de tempestade. Notar como a cor do laço amarelo da protagonista vai ganhando vida conforme ela abandona seu excesso de individualismo em prol da fraternidade comunitária do Forte Starke. Segundo filme da Trilogia da Cavalaria.


Wagon Master (1950): Dois cowboys guiam uma caravana mórmon até o Vale de San Juan, deparando-se no caminho com bandidos, índios, e desafios geográficos e morais. O roteiro foi escrito pelo próprio Ford, inspirado pelas histórias de um grupo de extras mórmons com os quais conversou durante as filmagens de She Wore a Yellow Ribbon. O diretor afirmou que “Wagon Master came closest to what I had hoped to achieve… the purest and simplest western I have made.” Ao final da jornada o paraíso é conquistado, com as “serpentes” sendo mortas pelas mãos da “resposta a uma oração”. O filme também não deixa de ser uma merecida homenagem ao desbravamento realizado pelos mórmons.


Rio Grande (1950): Oficial de cavalaria (interpretado por John Wayne) é confrontado com ataques assassinos dos apaches, um filho recruta temerário, e sua esposa, de quem está separado há muitos anos. O mote do filme é reconciliação: a concórdia entre o norte e o sul recém-saídos da Guerra de Sucessão (1861-1865), e a re-união da família da personagem de John Wayne. Primeira vez que Maureen O’Hara contracena com John Wayne. Eles protagonizaram juntos mais quatro filmes e se tornaram um dos mais impactantes casais de Hollywood na tela. Ninguém filmou Maureen O’Hara melhor que Ford, e ela nunca pareceu tão bela como neste filme, sua personagem em Rio Grande é um venerável paradigma de mulher.


The Quiet Man (1952): Boxeador americano (John Wayne) aposentado retorna à vila onde nasceu na Irlanda dos anos 1920, e se apaixona por uma ruiva espirituosa (Maureen O’Hara) cujo irmão não aprova o relacionamento. Este vencedor do Oscar (melhor filme e melhor diretor em 1952 – o quarto de Ford) é uma homenagem a uma Irlanda que existe apenas na imaginação de compositores e poetas como Ford – uma canção de amor do diretor para sua mítica Irlanda de adulações embriagadas e moças impudentes. Maravilhosa apresentação do necessário dar e receber para o sucesso de um matrimônio. O filme ainda transborda em valores sobre masculinidade, romance, comunidade e família.


The Sun Shines Bright (1953): William Pittman Priest tem que usar toda sua astúcia para manter sua posição como juiz em sua cidade natal no Kentucky, enquanto continua a ser uma voz da justiça para todos – o enredo aborda três contos com esta personagem criada por Irvin S. Cobb (1876-1944). Uma entretida amostra da política no interior do sul americano no início do século XX, com generosa dose de lições morais. Ford citou como seu filme favorito em entrevista concedida em 1968, apesar da mutilação pela qual o filme passou nas mãos do estúdio.


The Long Gray Line (1955): Em 1898, o imigrante irlandês Martin Maher (interpretado por Tyrone Power) é contratado como funcionário civil em West Point onde, durante uma carreira de 50 anos, ascende ao posto de sargento e instrutor. Baseado na autobiografia de Martin Maher intitulada Bringing Up the Brass (1951). Este filme deveria ser exibido nas escolas como exemplo de ética. A humilde integridade dos cadetes de West Point e a dedicação e devoção de Marty para com cada um deles ao longo de seus 50 anos de serviço no Exército dos EUA retratam o que a humanidade tem de melhor – uma obra que vibra em ternura e emoção.


The Searchers (1956): Veterano da Guerra Civil Americana embarca em uma jornada de anos para resgatar sua sobrinha dos Comanches depois que o resto da família de seu irmão é massacrado em um ataque à fazenda deles no Texas. Um dos melhores westerns de todos os tempos, com John Wayne em seu melhor desempenho e uma cinematografia de tirar o fôlego. O ódio sentido pelo protagonista o impulsiona na busca pela sobrinha, mas também corrói sua alma. Ao final ele permanece fiel ao que realmente importa (família e compaixão), mas suas cicatrizes anímicas o desconectam dos demais e ele termina só. Segundo Ford, The Searchers é “the tragedy of a loner, of a man who could never be really part of a family.” Steven Spielberg, Martin Scorsese, George Lucas, Jean-Luc Godard, Quentin Tarantino, John Milius e Paul Schrader consideram este um dos filmes que mais os influenciaram, e todos lhe prestaram alguma forma de homenagem em seus trabalhos. David Lean assistiu The Searchers repetidamente em busca de ideias para filmar paisagens enquanto se preparava para dirigir Lawrence da Arábia (1962).


Two Rode Together (1961): Xerife cínico é pressionado por seu amigo idealista do exército a negociar a libertação dos prisioneiros brancos dos Comanches capturados anos atrás, quando ainda eram crianças, mas a reintegração dos libertos na sociedade terá as suas consequências. Ford nunca gostou deste projeto, e a reação da crítica e público foi morna. O filme é sombrio, abordando a selvageria comanche e a intolerância que a difícil conquista do Oeste incutiu na sociedade. Mas o filme funciona como uma anacrônica analogia do sequestro da atual juventude pelos projetos de reengenharia social (destilados pela indústria de entretenimento e nos bancos das escolas ideologizadas) que a afastam de sua humanidade. Tal qual aquelas crianças não conseguiria mais se inserir na civilização, teme-se que as próximas gerações nunca alcançem seu potencial humano.


The Man Who Shot Liberty Valance (1962): Senador retorna a uma cidade do oeste para o funeral de um velho amigo e conta a história de suas origens. Ford reitera a mensagem Shane (1953), dirigido por George Stevens, mostrando o embate de dois mundos que demarca uma mudança dos tempos, deixando a audiência com um sentimento melancólico sobre o que perdemos do mundo anterior – o herói foi tolhido pelo destino. Temas fordianos ganham ambiguidade. O mal ainda está associado ao caos e o bem à ordem. Mas sem caos não há liberdade, pois a ordem pode inibir a liberdade, ossificar a esperança e destruir a beleza selvagem e heroica do homem. O dever tornou-se inteiramente imanente e pessoal. A memória não é menos vital que a experiência presente, como nos primeiros filmes de Ford, mas agora conta demasiadas mentiras, e cada mentira, tal como cada ação, reverbera através da história. O herói foi para o exílio e foi esquecido; os Maydew (personagem política negativa de The Sun Shines Bright) herdaram a terra. Ford sustenta que os ideais que formam a sociedade são mais importantes do que os burocratas da sociedade, mesmo reconhecendo a decadência da sociedade americana – a utopia da comunidade cristã deu lugar aos burocratas que se abstraem de tudo para se ater à sua responsabilidade funcional. Cinematograficamente, por razões orçamentárias, Ford filmou em P&B e substitui os cenários externos espetaculares de seus outros westerns por espaços restritos, silêncio e palavras – a beleza em The Man Who Shot Liberty Valance é sutil. A lamentar apenas a avançada idade de John Wayne e James Steward para representar seus papéis, ambos já passavam dos 50 anos e encarnavam personagens que poderiam ser seus filhos.


Cheyenne Autumn (1964): Os Cheyennes, cansados ​​das promessas não cumpridas do governo dos EUA, dirigem-se às suas terras ancestrais, e um empático oficial de cavalaria é encarregado de trazê-los de volta à sua reserva. O filme baseia-se no evento histórico conhecido como Northern Cheyenne Exodus ocorrido no final da década de 1870 quando aquila tribo deixou a reserva designada em Oklahoma e rumou para a terra natal em Montana. A guerra entre índios e os colonos já terminara, mas, ao menos nesta instância, o governo americano não demonstrou a exigida magnanimidade dos vencedores. Em meio aos espetaculares cenários de Monument Valley e da Teton Range somos convidados a refletir sobre a diferença entre os indígenas americanos (do norte ao sul) e os lusos, gauleses e bretões que também ocupavam suas terras muito antes da chegada dos “colonos” romanos: aqueles últimos não rejeitaram a nova cultura como um estupro, mas a aceitaram e a absorveram como um dom salvador e se tornaram, até com mais legitimidade do que os romanos, seus representantes e portadores. O episódio de Dodge City com Wyatt Earp (interpretado por James Stewart) só faz sentido quando sabemos que Ford o inseriu como interlúdio neste longa-metragem. E novamente o diretor mostra grande respeito pelos grupos religiosos que construíram os EUA, desta vez reverenciando os Quakers na figura da professora Debora Wright (interpretada por Carroll Baker). É o último western de Ford e sua despedida de Monument Valley, só isto já vale assistir ao filme (obrigatoriamente em widescreen).


Seven Women (1965): China de 1935, sete missionárias dedicadas tentam proteger-se dos avanços de um bárbaro senhor da guerra mongol e do seu cruel bando de guerreiros. Apesar do fracasso de público e crítica, o filme é a culminação do método de vinhetas de Ford, onde cada gesto, cada palavra, cada objeto ressoa simbolismo. Cada uma de suas personagens contém mundos, cada uma de suas ações permite múltiplas interpretações, cada uma delas se relaciona com as outras em níveis tão diversos que convidam a uma dissecação praticamente infinita – cada momento nos confronta com um virtuosismo inigualável e uma profundidade insuperável de humanismo.

A personagem mais marcante (e detestável) é a chefe da missão (Agatha Andrews interpretada por Margaret Leighton) que encarna a figura mítica grega de Équidna (metade mulher (desejo), metade serpente (espírito) – desejo (mulher), a exaltação sentimental e vaidosa dos desejos evolutivos em relação ao espírito, uma exaltação desarmônica dos desejos levados pela ilusão de perfeição. E Deus se manifesta na narrativa de forma inusitada: através da complexa personagem da médica. A chegada da Dra. Cartwright (interpretada por Anne Bancroft) montada em um burrico enquanto as crianças cantavam “Yes, Jesus loves me” não poderia ser mais explícita: é a cena de Cristo entrando em Jerusalém, a chegada da salvação daquelas mulheres e da criança que estava por nascer. Este foi o último filme de John Ford, um digno réquiem ao mestre.

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