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Introdução à Filosofia de Eric Voegelin (Seminário Olavo de Carvalho)

The order of history is the history of order.”– Eric Voegelin



Todo o conjunto de temas a que Eric Voegelin dedicou seis décadas de estudo e meditação vieram da sua experiência pessoal ante a eclosão dos movimentos ideológicos de massa no século XX. O grande objetivo da sua vida foi não apenas explicar as origens intelectuais e espirituais desses fenômenos sangrentos, mas apreender a sua significação no quadro geral da existência humana. Para isso ele teve de desenvolver toda uma antropologia filosófica, partindo das fontes clássicas do pensamento ocidental, especialmente o Banquete de Platão, onde o ser humano aparece como uma criatura intermediária e hesitante, vivendo na fronteira entre dois mundos: o transcendente e o imanente, o infinito e o finito. A esse espaço entre os mundos Platão dava o nome de metaxy, “entremeio”. É da experiência direta aí colhida que surgem os símbolos com que o ser humano procura dar alguma inteligibilidade ao processo existencial que ele não pode observar de fora e de cima, porque o processo o envolve em todos os instantes e sob todos os aspectos.


Da universalidade da metaxy como condição permanente da vida, Voegelin conclui que os polos da existência são inseparáveis e nenhum deles pode ser concebido como objeto: Deus e o homem, o eu e o outro, consciência e objeto, natureza e sociedade só existem como oposições internas dentro da metaxy. Não há um posto de observação privilegiado desde o qual possamos captar a unidade do processo e constituir os seus elementos como "objetos". É o processo mesmo que, em nós, busca a expressão da sua inteligibilidade possível a cada momento. Isso não quer dizer que o conhecimento gire em círculos. Ele tem um certo sentido acumulativo e progressivo, na medida em que as sucessivas simbolizações vão se esclarecendo umas às outras numa escala que vai do mais compacto para o mais diferenciado. Os símbolos da existência formam sucessivas imagens da "ordem", e a sucessão das ordens no tempo é ela própria a "Ordem da História". A eclosão dos movimentos ideológicos de massa é uma etapa dessa sucessão e pode ser, até certo ponto, compreendida.


A ideia deste presente seminário foi reconstituir a “ordem” sucessiva das descobertas de Voegelin pelo mesmo método que ele aplicou à investigação da “Ordem da História”: a análise de uma biografia intelectual deve resultar no esclarecimento da unidade interna e da “estrutura”, sempre móvel, mas reconhecível, do ensinamento de Voegelin. Como exigência desse mesmo método, dedicou-se especial atenção às partes mais problemáticas da obra de Voegelin, o que não significa necessariamente as mais frágeis, porém aquelas que deixam em aberto questões que já não podem ser resolvidas pelo método voegeliano, exigindo antes a sua extensão e complementação. A leitura preliminar das Reflexões Autobiográficas de Eric Voegelin é exigência indispensável para seguir o seminário.


 

A cronologia da vida do Eric Voegelin, o conhecimento da sua biografia intelectual, é importante para compreender sua obra, constituída em grande parte de fragmentos reunidos posteriormente na Collected Works.


  • 1901: nasceu em 03 de janeiro em Colônia, Alemanha.

  • 1910: sua família mudou-se para a Viena, Áustria.

  • 1919-1922: estudou na Faculdade de Direito da Universidade de Viena, com pequena interrupção para uma viagem a Oxford, onde estudou inglês.

  • 1922: recebe o doutorado sobre orientação de Hans Kelsen (1881-1973) e Othmar Spann (1878-1950).

  • 1922-1923: estudou em Berlim, onde assistiu aulas de Eduard Meyer (1855-1930) sobre história grega.

  • 1924: publicou seu primeiro ensaio acadêmico, intitulado Teoria Puro do Direito e Teoria do Estado.

  • 1924-1926: fez estudos pós-doutorais nos Estados Unidos com a bolsa da Fundação Rockefeller.

  • 1927: estudou literatura francesa em Paris,

  • 1928: começou a lecionar teoria política e sociologia na Universidade de Viena e publicou seu primeiro livro intitulado On the Form of the American Mind.

  • 1929: estudou na Universidade de Heidelberg, onde assistiu a um curso de Alfred Weber (1868-1958) sobre sociologia da cultura.

  • 1933: redigiu os livros Raça e Estado e A Ideia de Raça na História do Espírito.

  • 1933-1936: estudou neotomismo nas obras de Antonin Sertillanges (1863-1948), Jacques Maritain (1882-1973), Étienne Gilson (1884-1978) e também de alguns jesuítas agostinianos como Hans Urs von Balthasar (1905-1988) e Henri de Lubach (1896-1991)

  • 1934: impactado pela guerra civil na Áustria.

  • 1936: publicou O Estado Autoritário.

  • 1936-1938: serve como secretário do comitê para a cooperação intelectual da Liga das Nações.

  • 1938: demitido após a incorporação da Áustria pela Alemanha, foge para os EUA onde publica The Political Religions.

  • 1939-1954: trabalhou na redação da História das Ideias Políticas (8 volumes).

  • 1942-1958: lecionou no Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual da Louisiana.

  • 1944: tornou-se cidadão americano.

  • 1952: publicou The New Science of Politics pela University of Chicago Press.

  • 1956: publicou o primeiro volume de Order and History.

  • 1957: publicou o segundo e terceiro volume de Order and History; começou a redação de The Nature of the Law que permaneceu inédito até a publicação do volume 27 das Collected Works.

  • 1958: voltou à Alemanha, aceitando a Cátedra Max Weber de Ciência Política na Universidade Ludwigo-Maximilians de Munique, e ali fundou o Instituto de Ciência Política.

  • 1959: publicou em alemão o livro Ciência Política e Gnosticismo baseado em palestra proferida no ano anterior.

  • 1963: escreveu o ensaio What is History?.

  • 1964: ministrou curso depois reunido no livro Hitler e os Alemães publicado postumamente nas Collected Works.

  • 1966: publicou em alemão o livro Anamnesis.

  • 1967: publicou a conferência Drama of Humanity.

  • 1968: escreveu o ensaio Anxiety and Reason.

  • 1969: voltou aos EUA para lecionar em Stanford, e tornou-se membro da Hoover Institution.

  • 1973: ditou a Ellis Sandoz (1931-2023) suas reflexões autobiográficas, publicadas em 1989.

  • 1974: publicou o quarto volume de Order and History.

  • 1975: publicou From Enlightenment to Revolution, uma seleção de textos inéditos originariamente escritos para o História das Ideias Políticas.

  • 1977: completou o ensaio The Beginning and the Beyond.

  • 1985: morreu aos 84 anos de idade.

  • 1987: publicou-se o quinto volume de Order and History.


A abordagem biográfica faz-se necessária porque Voegelin não é um pensador sistemático empenhado em construir um sistema explicativo. Ele não se dedicou a construir nenhuma filosofia, mas a investigar uma série de questões concretas colocadas pela circunstância histórica e cultural do momento – quase todas suas investigações visam encontrar uma explicação de porque algo está acontecendo, a índole de sua obra é iminentemente histórica desde o início.


Na busca da explicação de acontecimentos históricos ele se defronta com problemas teóricos, i.e. conceitos explicativos inadequados que demandam uma investigação teórica para o devido enquadramento. Esta necessidade se sucedeu várias vezes e a busca de soluções originou sua filosofia, pois a verdadeira vocação de Voegelin era de cientista político-social e de historiador, e não propriamente uma vocação teórica ou filosófica.


O começo da vida intelectual Voegelin se dá em Viena, quando estudou com Hans Kelsen (1881-1973) e Othmar Spann (1878-1950), dois notáveis professores. Kelsen, refletindo uma tendência da época, buscava esclarecer os limites entre as várias disciplinas que compõem o campo das ciências humanas – não somente os limites entre as disciplinas, mas evidentemente os limites entre os objetos correspondentes, os limites da realidade, os limites ontológicos, para então definir limites metodológicos e disciplinares. Daí surge a ideia da teoria pura do direito, i.e. definir o direito como um território distinto de outros que estavam antes mesclados, como, particularmente, a sociologia e a moral.


Todos os livros de direito publicados até esta época mesclavam temas ligados à filosofia moral, sociologia, além de temas próprios do ambiente jurídico. Hans Kelsen propõe que o direito se constitui essencialmente de uma lógica normativa: o direito se constitui de uma estrutura de normas, na qual normas posteriores devem ser deduzidas de anteriores. Esta ordem dedutiva, deve partir de um axioma, que não faz parte da ordem lógica – o axioma funda a ordem lógica (a lógica pode tirar conclusões a partir de premissas, mas não pode encontrar as premissas). O ponto de partida no direito, a norma fundamental, seria a constituição do país – norma fundamental em relação aos demais códigos como o penal, civil, comercial, etc. Sendo que dentro da constituição há alguns princípios fundamentais que são a norma fundamental em relação ao restante da constituição. E destes princípios fundamentais existe uma decisão inicial que é a própria decisão de que tem que haver a constituição, e que ela tem que ser deste jeito. Esta norma fundamental das normas fundamentais é arbitrada, uma decisão do governante, não podendo ser justificada juridicamente, pois o território propriamente jurídico começa a partir deste instante.


A obra de Kelsen permite o aperfeiçoamento formal e lógico do direito. Porém, a ciência do direito fica colocada fora das considerações de ordem política, sociológica e moral – caso as primeiras decisões forem de ordem imoral, não há como você argumentar juridicamente contra elas (muito mais tarde o próprio Hans Kelsen fez várias revisões dessa sua teoria).


A investigação da teoria do puro direito de Kelsen, levou Voegelin a investigar sobre a natureza da sociedade política – a insuficiência da teoria de Kelsen exigia a reinserção do direito dentro da noção geral da sociedade política, explicando do que esta se consistia. Esses estudos geraram a tese Interação e Comunidade Espiritual (1922) onde afirma não ser possível reduzir as nações como entidades geograficamente limitadas e juridicamente definidas, tendo seu primeiro contado com a questão da homonoia – as nações existem na medida em que há valores e símbolos comuns conscientes na população, sendo utilizados como princípio legitimador das políticas e das as várias atividades da vida social.


O filósofo social Othmar Spann era exatamente o contrário de Hans Kelsen. Sua ideia fundamental constituía em ver a sociedade como substância unitária (substância orgânica), apelando a metáforas biológicas para apreender o conjunto da sociedade como uma estrutura vivente. Sendo assim afastado das preocupações puramente formais de Kelsen – a preocupação de Kelsen era a estrutura lógica e a de Spann a realidade vivente da sociedade (irredutível aos esquemas jurídicos formais).


Voegelin sofre a influência direta desses dois professores brilhantes, percebendo que ambos se moviam no terreno da verdade, apesar da simples existência simultânea dessas duas escolas de pensamento impediram a unidade das ciências sociais.


Ao longo dos anos Voegelin fez um reexame crítico da obra de Kelsen, empreendimento fortalecido pela influência que recebe do grande historiador alemão Eduard Meyer (1855-1960). Meyer desenvolvera uma nova técnica de desenterrar o significado histórico dos fatos a partir do significado que os personagens envolvidos davam às suas próprias ações e aquilo que eles percebiam em torno – construía a história como se fosse uma peça de teatro no qual a interpretação da situação e consequente ação dos vários agentes envolvidos montam o quadro geral no qual o historiador se colocará. Isto supõe, evidentemente, que por trás de todas as ações humanas, existe uma ação interna do espírito humano, que está percebendo, imaginando, julgando e decidindo.


Naturalmente nem sempre os documentos nos fornecem os dados sobre o que os personagens pensaram. Mas, através das próprias ações e decisões, pode-se reconstruir o entendimento que os agentes históricos tinham da situação. Esta metodologia marcou a mente de Voegelin, e ele se manterá praticamente fiel a esse método até o fim da sua vida.


Outro fato que marcou sua vida intelectual foi a viagem aos Estados Unidos com a bolsa da Fundação Rockefeller. Impactou-lhe o fato de que o conjunto das leis em vigor no país refletiam uma espécie de consenso vigente no campo do senso comum, i.e. as leis expressava diretamente os valores reais nos quais a sociedade acreditava (um fenômeno que ele não observara Europa).


Lendo os pensadores políticos americanos, como William James (1842-1910), George Santayana (1863-1952) e John Dewey (1859-1952), Voegelin nota que eles tinham uma noção muito clara do fator unificante da sociedade americana. E esse fator não era, um governo, nem um conjunto de instituições, mas sim era uma espécie de afinidade espiritual (homonoia, aquele antigo conceito grego que se refere à ideia de ordem e unidade, como uma só mente ou união de corações). A sociedade americana podia se dividir em pontos específicos, como no caso da Guerra Civil (1861-1865), mas mesmo estes se davam em torno de valores comuns diferentemente aplicados à situação concreta por diferentes grupos – nem mesmo naquele conflito houve um abismo espiritual, uma incompreensão múltipla.


A ideia da homonoia também vai se impregnar no espírito de Voegelin, porque mesmo quando esse fundo de amizade não existe, ele continua sendo o fundamento da sociedade. As várias sociedades podem ser estudadas conforme a dose maior ou menor de homonoia presente nelas – sem nenhum traço de homonoia não é mais uma sociedade, e sim apenas um grupamento heterogêneo de pessoas unidas por um fator externo como uma legislação, poder de Estado, instituições, forças armadas, etc. Esta homonoia se torna uma base ideal pretérita, uma referência a uma idade ouro, que pode ser totalmente mítica, que seria a explicação da existência daquela sociedade.


A observação deste contraste entre a experiência americana e a europeia demonstrou para Voegelin a insuficiência da teoria do Hans Kelsen, pois era este fundo espiritual da sociedade que determinava a índole da norma fundamental.


Essa diferença americana se reflete no livro On the Form of the American Mind, onde ele estabelece o preceito metodológico para captar a forma da unidade de uma sociedade, da sua homonoia: (1) qualquer interpretação de uma situação histórica tem que começar com a apresentação dos materiais, dos documentos nos quais se basearão as interpretações; (2) o método de interpretação do material tem que ser dado pelo próprio material (conceito aprendido com Eduard Meyer); (3) só utilizar materiais onde a autointerpretação seja evidente (e.g. excluem-se as obras de arte, de arquitetura, pois demandam escavar a interpretação).


Naturalmente esse método pode ser ampliado, podendo-se usar muito mais materiais. Muitas das interpretações de Voegelin encontram confirmação nas artes e no enorme campo de documentação sociológica, mas para simplificar e reduzir erros de interpretação ele adere a documentação com o mínimo de controvérsia. Dada a dificuldade do tema e risco da proposta, Voegelin limita-se aos materiais que não geram margem para discussão – daí ele usar obras de James, Santayana e outros, e discursos como os de John R. Commons (1862-1945), pois eles estão interpretando a situação com uma série de linhas comuns (linhas comuns que revelam a forma da mente).


Ao voltar para a Alemanha, Voegelin usou esse mesmo método para estudar o fenômeno da raça, tema então premente com a proliferação de discursos racistas. Ele nota que praticamente a totalidade das discussões públicas partem de conceitos que já estão estabilizados, sem que haja uma investigação sobre a origem desses conceitos, sem que se saiba qual é a referência fática deles. Conceitos não aparecem do nada, são frutos da experiência humana – por trás das ideias existe uma experiência humana.


A discussão sobre a existência de superioridade racial em termos biológicos era a aplicação de um conceito a um estado de fato. E em vez de discutir o conceito em si mesmo, Voegelin rastreou a origem do conceito de raça, recordando que pensar nos grupos humanos como raças só foi possível depois do século XVIII quando a biologia se constituiu como ciência. Antes se podia identificar grupos humanos, podendo até usar a palavra raça, mas esta significava um aglomerado de diferenças físicas, culturais, religiosas, morais, etc – isso não é raça no sentido moderno. Tomando o sentido pré-biológico de raça, é evidente que existem raças superiores – há grupos humanos que produziram culturas infinitamente superiores a outros. O sentido moderno de raça, construído após a constituição da biologia como ciência, é a abstração de um traço específico (idealmente identificável pela biologia) de todo o conjunto de fatores que concretamente produz o ser humano, partido daí a classificação de seres humanos de acordo com esta diferença – o racismo é filho da modernidade.


Na Idade Média, por exemplo, não tinha como conceber a ideia de superioridade racial, porque não havia a ideia de raça no sentido biológico. Dois indivíduos que anatomicamente compartissem as mesmas características biológicas poderiam ser representantes de “raças” diferentes. Por exemplo, judeu não era raça, judeu era uma religião que abrangia os descendentes de Abel, Isaac e Jacó e os demais indivíduos que tivessem aderido ou se convertido à religião no meio do caminho, independentemente de seus traços biológicos.


Voegelin assim percebeu que a ideia de raça era uma transposição ideológica de uma hipótese biológica jamais confirmada. Até hoje não sabemos se é possível identificar os grupos no sentido racial biológico, pois em todas as raças se encontram genes de outras raças. Toda aquela discussão racial era resultado do uso de um pretexto biológico para simbolizar o senso de unidade de um grupo social – a substituição de uma homonoia por uma metáfora biológica. Estes estudos resultaram em dois livros: Race and State, e The History of the Race Idea (leitura obrigatória) – ambos confiscados na gráfica pelo regime nazista.


Nesse estudo sobre a raça, Voegelin tem a oportunidade de esclarecer para si próprio a diferença entre os debates públicos fundados em conceitos e aqueles que refletem a realidade da experiência – conhecer as experiências fundamentais de onde foram elaborados os conceitos, impedindo que eles se tornam unidades autônomas que passam a ser discutido em si mesmas.


Em 1936 Voegelin publica The Authoritarian State defendendo a constituição autoritária do chanceler Engelbert Dollfuss (1892-1934) publicada para estancar a guerra civil provocada por grupos nazistas e comunistas que tentavam derrubar o governo e tomar o poder – formação de um governo autoritário para evitar um governo totalitário (solução que funcionou até a invasão alemã). A necessidade de uma intervenção estatal mais enérgica para resolver uma situação emergencial será um tema recorrente na obra de Voegelin.


Voegelin define o estado autoritário como aquele que é legitimado pelo seu próprio ato de fundação. Nesse sentido, o estado americano seria autoritário porque é legitimado pelos founding fathers – a partir do momento em que o estado é fundado e aceito como tal, os pontos fundamentais que define a orientação de seu modo de existência não pode mais ser discutido (noção de constituição). Voegelin vai além da constituição (definida por Kelsen como norma fundamental no sentido lógico), enfatizando o ato de fundação com uma decisão política fundamentada na afinidade entre os espíritos.


Um novo horizonte se abra a Voegelin quando ele se aprofunda no estudo dos neoplatonistas, escolásticos e outros autores católicos. Causou-lhe profunda impressão o livro The Drama of the Atheist Humanism (1944 – leitura obrigatória) escrito pelo jesuíta francês Henri de Lubac (1896-1991) no qual é estudado o fenômeno da inveja do Cristo, i.e o espírito revolucionário se baseia em grande parte na inveja que o revolucionário tem da pessoa de Jesus Cristo – o desejo de antecipar o juízo final, não quando terminar o mundo, mas dentro da história (instauração da justiça, separação dos carneiros dos bodes). Lubac identifica este desejo de assumir o lugar de Cristo principalmente em Marx, Comte, Feuerbach e Nietzsche. Ele também foi muito influenciado pelo livro Prometheus: Studien zur Geschichte des Deutschen Idealismus (1947) de Hans von Balthasar que explora o mesmo tema de Lubac na cultura alemã.


Nos autores neotomistas e escolásticos Voegelin encontra aquilo que chamou de realismo espiritual: o realista espiritual é capaz de raciocinar sobre a ordem da sociedade levando em conta todos os fatores em vez de considerar abstrativamente apenas uma parte deles – o indivíduo que não se deixa iludir pelos seus próprios pressupostos doutrinários, mas que raciocina de maneira próxima à experiência real.


Ao chegar nos EUA, fugindo da Gestapo, Voegelin é contratado para escrever uma história das ideias políticas, sendo um acontecimento fundamental em sua vida. O projeto inicial visava três volumes, mas ao chegar no oitavo (História das Ideias Políticas), Voegelin observa que mesmo colocando todas as doutrinas políticas em ordem cronológica não era possível identificar como uma tinha saído da outra (e.g. comparar o pensamento político medieval com o de Nicolau Maquiavel).


Voegelin nota que o elemento de continuidade faltante não está no mundo das ideias, mas sim na própria realidade política. Ele vê que a história das ideias é impossível (uma disciplina então em formação), a história das ideias emerge da história da experiência – é preciso analisar qual era a situação política e histórica real dentro da qual surgiram aquelas ideias. Algumas ideias podem ter surgido de ideias anteriores, mas não todas. E mesmo quando surgem de ideias anteriores, elas são filtradas através da interpretação que os agentes fazem da situação política real e da experiência existencial como um todo.


Frente a este achado, Voegelin desiste da história das ideias políticas, e inaugura uma nova linha de investigações completamente diferente, buscando não a história das ideias (doutrinas políticas), mas a história das ordens políticas reais que existiram no mundo. Afinal, uma doutrina política (concepção da ordem política) sempre parte de uma ordem política efetivamente existente.


Em The New Science of Politics, Voegelin aponta e existência de inúmeros livros e estudos sobre o fenômeno político da representação (i.e. umas pessoas representam outras). A ordem política é impossível sem a representação – a população inteira não pode exercer o poder de maneira direta, seja através do voto, através do simples reconhecimento, ou através da obediência passiva, as pessoas reconhecem que outros as representam.


Essa representação pessoal exige legitimidade do representante, que por sua vez é baseada num corpo de valores e crenças que este indivíduo idealmente personifica. E se ele não personificar, será eventualmente rejeitado pela sociedade. Assim, problema da representação não pode ser estudado diretamente nos indivíduos, pois a representação, no sentido político formal se baseia numa outra representação mais profunda: a representação do próprio sistema, da própria ordem.


Essa ordem do sistema como um todo também tem que ser representativa e aceita como tal. Porém, essa ordem mais profunda, legitimadora da representação no segundo plano, não precisa ser totalmente consciente ou totalmente expressa. Pode ser uma ordem constitucional, uma ordem baseada nos costumes, e que os indivíduos nem são capazes de enunciar todos os princípios em que ela se baseia, mas seguem aqueles princípios sem jamais tê-los expressado verbalmente.


Mesmo que essa ordem seja de difícil expressão existem documentos que a atestam, sendo assim necessário pesquisar os documentos que atestam os vários tipos de ordem que existiram no mundo, entendendo como essas ordens se justificavam e por que elas eram aceitas como representativas, i.e. entender os princípios fundamentais de legitimidade (credibilidade) da representação da ordem por trás da representação no sentido democrático atual. E Voegelin descobre que as várias ordens que existiram no mundo são aceitas como legítimas porque elas pareciam, às pessoas envolvidas, a tradução da verdade. Em última análise, a verdade se identifica para os vários grupos sociais como sendo a própria ordem social. E quanto mais se recua no tempo, mais ela é direta e franca. E a distância que observamos da atual (des)ordem social da expressão da verdade é uma confirmação de que a ordem é a verdade, i.e se ela não é a verdade, ela não é uma verdadeira ordem.


Nas civilizações primitivas a concepção de uma verdade objetiva acessível à inteligência individual estava presente na ordem social, ou seja, a verdade estava totalmente identificada com a ordem social – estar fora da ordem social era estar na mentira ou no erro (e.g. Egito Antigo). Hoje idealmente admitimos que pode existir uma verdade objetiva que a sociedade desconheça, mas na prática da vida social raciocinamos como um egípcio antigo – a verdade seria a crença comum. Quando o indivíduo recusa acreditar em algo que o establishment e a grande mídia negam ele está raciocinando como um egípcio antigo, sendo uma identificação confusa entre verdade e ordem social.


Voegelin percebe que a consciência de um possível hiato entre a verdade e a ordem social é algo muito tardio na história humana, tendo sido ignorado durante milênios – identificação de verdade e ordem social era literal, direta, total e indiscutível (e.g. civilizações chinesa e egípcia). Ele define estas civilizações antigas como cosmológicas, pois a identificação plena da ordem social com a verdade implica a não há nada fora dela, sendo a ordem social identificada com o próprio cosmos existente – a ordem social abrange o visível e o invisível.


Ordem Social ↔ Verdade ↔ Realidade ↔ Universo


Naturalmente havia crises constantes, gerando confusão e demandando ajustes cada vez que uma civilização entrasse em contato com outra, pois não pode haver dois universos – a novidade deve ser destruída ou incorporada, como aconteceu nas sucessivas reformas religiosas no Egito quando da incorporação de novas tribos, e na expansão do Império Romano que a cada conquista de novos povos incorporava novos deuses ao seu panteão. Ademais, a pretensão de um cosmos fechado é irreal, fazendo com que as civilizações cósmicas fossem permanentemente desafiadas.


Porém, é importante observar que, apesar de viver em crise permanente, um fundo de estabilidade predominava e muitas destas civilizações cósmicas perduraram séculos (algo que não se explica por um simples sistema de crenças). Há uma correspondência entre a ordem social e a ordem cósmica desconhecida por nós. Voegelin não avançou neste estudo, permanecendo um dos grandes enigmas da humanidade – o diálogo entre a ordem humana e cósmica são identificáveis historicamente: (a) os fenômenos astrológicos – a ordem dos astros é refletida na ordem social que por sua vez a reflete; (b) o sistema de adivinhações também é um legado da civilização cosmológica; (c) realizações técnicas inexplicáveis (e.g. pirâmides egípcias) – há pontos de contato entre os símbolos naturais e os culturais que escapam o conhecimento atual. 


Esta ordem cosmológica é provocada por dois eventos relativamente contemporâneos e independentes entre si: a revelação mosaica (surgimento de Israel) e o advento da filosofia na Grécia – acontecimentos que criam um hiato entre a inteligência individual e a sociedade, permitindo que surja na mente humana a ideia de que possa haver uma verdade objetiva que a ordem social não reconhece.


No mundo judaico emerge a consciência de uma divindade única que está para além do universo – ela não é a totalidade do universo, mas é o fundamento, a origem, a causa do universo. E essa divindade se comunica não com a ordem social, mas com os profetas: indivíduos que surgem como elementos corretores da ordem social a partir de uma autoridade divina que lhes foi conferida pelo fenômeno da revelação – a abertura de um espírito humano para uma dimensão que transcende o código. A dimensão do infinito (supra-cósmica) estando infinitamente acima do mundo social, civilizacional, aproxima-se do indivíduo, pois este passa a ter acesso ao transcendente – o indivíduo pode ter a percepção de falar com Deus. Ele se torna o portador de uma nova ordem que transcende a ordem social e que pode se impor a ela – a autoridade profética transcendeu a autoridade dos governantes.


O surgimento da revelação israelita rompe a unidade daquele universo cosmológico, com uma ordem sobrenatural sobrepondo-se a ordem natural e, portanto, também a ordem social – dando início a um longo processo de dessacralização da sociedade (mais tarde Voegelin estudaria diferentes processos de ressacralização da sociedade através dos movimentos revolucionários).


Quase simultaneamente com a revelação israelita emerge a filosofia na Grécia: a iniciativa individual ou de pequenos grupos de indivíduos que buscam captar algo da ordem universal através do uso da razão. Quanto a esta razão humana, Voegelin diz que toda experiência humana real é transcendente por natureza. Ou seja, que nós nos vemos sempre colocados como partes integrantes, como participantes de uma realidade que nos aparece com várias ordens entrecruzadas que percebemos de alguma forma. E esta experiência não tem um limite, ela sempre parte de uma certa distância e desaparece dentro de um ilimitado que sabemos estar presente. A razão é a tendência do ser humano ao fundamento da realidade, a tendência à ordem profunda.


Este entendimento da razão difere da psicologia do século XIX e da primeira metade do século XX, que atrelava a razão ao que denominavam dados dos sentidos – estaríamos num universo constituído de dados dos sentidos e tudo que supomos para além deles seria uma criação mental. Porém, isto é impossível, pois se nós tomássemos os dados dos sentidos como elementos primários e tudo que está para além dos sentidos fosse apenas uma especulação, cada um de nós teria que acreditar como mundo real somente naquilo que está ao alcance do seu sentido.


Noções como de lugar e de tempo são a estrutura real da experiência, na qual a percepção sensível é recorte para fins mais imediatos. A única certeza não é a percepção sensível, e.g. não vejo o interior do meu corpo mas sei que ele não é oco. O universo que chega à nossa percepção é imensamente rico e presente, impondo-se para o homem que só pode se perceber como parte integrante daquele – existe todo um universo do não percebido que contamos como presente. Isto é o conhecimento por presença (não é objeto da percepção, nem questão de fé), e.g. o recém-nascido que estica a mão para pegar a chupeta no berço já sabe instintivamente que a chupeta não faz parte do berço – o conhecimento por presença antecede qualquer percepção visual e é a base da percepção, distinguindo-se também das construções mentais. Platão estabeleceu o conceito metaxy (compartilhar, participar; literalmente: ter junto, entremeio), chave para o conhecimento por presença, e que será muito utilizado por Voegelin – a realidade não está diante de nós, não está fora de nós, nem dentro nós, mas nós estamos no entremeio, participando da realidade.


A revelação israelita e o advento da filosofia provocam uma mudança no polo da ordem. As civilizações cosmológicas falavam em nome do cosmos – a ordem social expressa a ordem cósmica e tem autoridade inerente à ordem cósmica. Enquanto o profeta em Israel e o filósofo na Grécia estão falando de uma ordem transcendente que não se identifica com uma ordem social e que naquele momento só é acessível a quem a percebeu, i.e. o próprio filósofo ou profeta. Isto implicam que o princípio da ordem já não pode ser o cosmos, porque há uma ordem acima do cosmos. E o indivíduo que a percebe não é um representante da sociedade, ele a percebe como um indivíduo – não há mais uma ordem cósmica corporificada na sociedade, mas há uma ordem supra-cósmica que se revela ao indivíduo que ao tomar conhecimento dessa ordem supra-cósmica passa a ordenar a sua vida a partir dela, se orienta a partir, não do que a sociedade lhe diz, mas daquilo que ele sabe (ele agora sabe algo que a sociedade não sabe). O novo princípio da ordem é a alma desse indivíduo, a alma do profeta, a alma do filósofo.


Após reexaminar-se sob a luz desta nova ordem, o profeta e o filósofo podem examinar e julgar a ordem social e podem até condená-la. A percepção da ordem supra-cósmica como um elemento realmente transcendente, ilumina o fato de que a ordem social pode ser não uma ordem, mas um caos disfarçado quando surge um hiato entre a ordem supra-cósmica e a ordem social – a ordem social expressando a ordem cósmica deficientemente (a ordem social não abrange a totalidade da ordem cósmica, e, portanto, não traduz diretamente a ordem divina).


Este hiato aparece, por exemplo, na Grécia com o teatro grego: Antígona de Sófocles contrapondo as leis vigentes na cidade com as leis não escritas (leis divinas que a sociedade desconhece, mas as quais ela deve obedecer) – ruptura que depois será trabalhada pela filosofia. Os profetas hebraicos também fizeram sucessivas condenações da ordem social vigente.


Todo esse processo dessacraliza a sociedade, ela deixa de ser sagrada – existe uma ordem sagrada que está acima da sociedade. Surgia na história do mundo a possibilidade da ação política desde fora do governo.


 

A partir do estudo sobre as raças e observações da evolução dos acontecimentos políticos na Áustria, Voegelin tem a sua atenção atraída para o fenômeno das ideologias de massa. Publica em 1938 seu primeiro livro dedicado a este tema: The Political Religions, onde interpreta o fenômeno das ideologias como de ordem religiosa ou pseudorreligiosa (religião substitutiva) – teoria que mais tarde Voegelin impugnaria ao identificar certas diferenças específicas entre as ideologias de massas e as religiões (Voegelin identificaria que as ideologias de massa constituem um modelo de ordem que surge em certos momentos da história).


Como visto acima, nas civilizações cosmológicas o princípio legitimador é o fato de que não existe realidade legítima fora da sociedade constituída – a sociedade constituída é a própria ordem cósmica que incorpora em si a ordem divina e, portanto, não é concebível nenhum tipo de veracidade fora dessa referência social. Exemplo: império mongol considerava que o mundo se dividia em duas partes, o império mongol e a região do caos (algo disso aparece na presente concepção islâmica com a “casa da paz” (Dar es Salaam) na região islâmica e “casa da guerra” (Dar al-Harb) no restante). 


Um segundo princípio legitimador aparece com a revelação israelita e a razão filosófica, com o indivíduo tendo acesso direto a componentes da lei divina e ordenando a sua alma de forma transcendente a ordem ou desordem vigente – aquele indivíduo se torna o modelo desde o qual essa ordem será julgada. Isso não quer dizer que esse indivíduo conseguirá necessariamente destruir a ordem antiga e implantar uma nova, podendo viver em permanente conflito em seu meio.


Admite-se então a existência da sociedade em estado de crise permanente – ela em parte se inspira na ordem, mas em parte ela rejeita a ordem. O exemplo da biografia de Platão é característico: sua primeira inspiração na carreira foi colocar alguma ordem na pólis, mas quando o movimento político que apoiava cria um estado de corrupção e violência, ele passa o resto da sua vida especulando sobre os verdadeiros fundamentos da sociedade, sem chegar a uma conclusão. República é uma especulação de modelo da sociedade, muito aperfeiçoada em Leis (que também não é conclusivo). O filósofo primeiro ordena sua alma, e antes de ordenar a sociedade (algo do qual ele não está nada seguro que conseguirá) ele desenvolve uma espécie do modelo ideal que pode ser transmitido por gerações seguintes.


Assim, tem-se de lado a ruptura entre ordem social e ordem de vida, e por outro lado a ruptura entre, de forma simplificada, o real e o ideal. Se não há este abismo entre o real e o ideal todo o pensamento humano individual é absorvido dentro da ordem social existente – o fato da ordem existente não mais corresponder com a ordem divina é a verdadeira origem da liberdade de pensamento (a liberdade de expressão é um evento tardio na linha histórica – se não existe ordem divina a ser conhecida, também não faz sentido falar da liberdade de pensamento, porque a única ordem concebível será a da sociedade). A ressacralização da sociedade implicaria a supressão da liberdade de pensamento – isto coincide com a terrestrialização de tudo da qual falava Antonio Gramsci, para quem o que está fora desta ordem social terrestrializada seria uma “aberração”).


Junto com a dissolvimento da civilização cosmológica frente o advento da revelação e da razão, desaparece toda a tecnologia de integração da vida social na ordem cósmica, substituída pelos novos preceitos do judaísmo, do cristianismo, ou ainda preceitos racionais filosóficos. Isto gera problemas como o desaparecimento do simbolismo da natureza, tornando o diálogo que existia entre a sociedade e cosmos físico incompreensível. É a passagem dos símbolos compactados para os símbolos analiticamente diferenciados – ao longo da história existe algum progresso na compreensão analítica dos fatores em jogo, mas este progresso é compensado pela perda de modalidade de apreensão compactas que já não podem ser recuperadas no nível analítico. (Voegelin não tratou deste assunto em sua filosofia)


A revelação israelita, que se consolida no cristianismo, paralelamente à filosofia propuseram uma ligação direta à ordem divina sem passar pela mediação das formas cósmicas, resultando na criação da ciência matematizante moderna e na desaparição completa da dimensão simbólica da natureza. Mais trade, uma das razões da emergência das ideologias modernas de ordem gnóstica é uma nostalgia dessa a compreensão simbólica da natureza, mas sem que haja qualquer vestígio de uma recuperação efetiva (outra razão daquela emergência foi o protesto daquilo que Max Weber chamava de “desencantamento do mundo”).


O  indivíduo só pode realmente se sentir integrado na sociedade se esta por sua vez estiver integrada no ambiente físico. A simples homonoia não basta para constituir a sociedade porque o conjunto dos valores e e símbolos tem que permitir uma integração efetiva da sociedade no meio físico – uma espécie de funcionalidade existencial onde indivíduo acredita entender o seu ambiente.


O advento da revelação e da razão traz a dessacralização da natureza, criando uma série de hiato: (a) entre ordem social e ordem sobrenatural, (b) entre a alma individual e a ordem social, e (c) entre o conjunto da ordem social e da alma individual com a ordem cósmica. Uma combinação de crises das quais a humanidade jamais se recuperou. Sucessivas tentativas de reintegrar simbolismo da natureza fracassaram, refletindo que o desajuste do homem em relação a natureza é elemento fundamental do cristianismo e da filosofia. E mesmo nas civilizações cosmológicas esta integração era algo ilusória, pois é da natureza o homem conhecer a transcendência.


Voegelin abandona suas explicações do livro The Political Religion, porque os elementos que aparecem nas ideologias de massa não podem ser definidos como religiões pois são anteriores à religião israelita, i.e. não são fenômenos da mesma espécie – assim como não pode-se definir a ordem cosmológica egípcia como religião egípcia, não tem a distinção da religião como uma dimensão autônoma da sociedade. Na civilização cósmica não há diferença entre religião, política, moral, economia, geografia, tudo formando uma unidade indiferenciada. Só pode-se falar realmente de religião a partir do surgimento do judaísmo.


Aquele conjunto de rupturas é um dos fatores que mais tarde levam ao surgimento de movimentos que tentam de alguma maneira restaurar o senso de integração do homem primeiro na sociedade e depois o cosmos. A tecnologia simbólica (que supõe o conhecimento da totalidade – não haveria nada para ser conhecido) que suportava aquele senso de integração na sociedade cosmológica seria substituído pela mente cosmológica, a mento do sábio que deteria o conhecimento universal, representando a ordem social legítima. Este não é o caso do filósofo que ordena a sua alma de acordo com seu conhecimento, tendo consciência de suas imperfeições. Já o sábio gnóstico diz incorporar a sabedoria divina e a ordem cósmica – falsa personificação da sabedoria divina e da tecnologia cósmica.


A aspiração humana em integrar-se totalmente ao cosmos é psicologicamente compreensível, mas uma presunção incongruente com a realidade. Uma busca do impossível que pode tomar a forma invertida de uma total rejeição do cosmos, produzindo a ideia gnóstica de que o mundo foi criado por uma divindade má que desobedeceu uma divindade puramente espiritual superior – é a presunção da tecnologia cosmológica total que confrontada com a sua impotência se inverte, com o cosmo passando a ser mal e absurdo (a tentativa de integrar tudo resulta na total desintegração).


Há diversos fenômenos diferentes que atende pelo nome de gnosticismo, sendo que não há um núcleo doutrinal comum. Não há documentos que expressem a unidade do pensamento gnóstico que só aparece de forma fragmentada e incoerente. O que está no fundo de todo movimento gnóstico não é uma doutrina, mas uma experiência da realidade. Experiência que não pode ser expressa como tal, pois se autodestruiria no mesmo instante – a perda da integração de sociedade e natureza que trazia junto a integração de indivíduos e sociedade é irreversível.


Na própria civilização cosmológica, a integração do homem na natureza já era altamente deficiente. E que somente se dava através de uma tecnologia simbólica altamente complexa, que até hoje não entendemos direito. Esta deficiência é bem indicada no livro Abstration and Empathy do historiador da arte alemão Wilhem Worringer (1881-1965) que demonstra como nas culturas mais primitivas não havia uma arte naturalista (cópia das formas da natureza), mas sim arte abstrata e geometrizante que buscava refúgio contra os perigos e caos do mundo físico circundante – apenas na civilização urbana, quando o meio natural já se encontra dominado, é que a natureza se torna objeto de contemplação estética. A simples existência daquela tecnologia simbólica demonstra a enorme complexidade da integração do homem na natureza.


Há um fio condutor que parte desde as primeiras tentativas de ordenação do cosmo, seguindo com surgimento da razão e os primeiros esforço de racionalização da ordem, e que, junto com a revelação, adquire uma autonomia que com Immanuel Kant (1724-1804) chegaria ao cúmulo de ver a razão como legislador do mundo exterior. 


A perfeita integração homem-natureza é utópica, mas algum nível de integração é necessária e será uma busca humana permanente – o sonho da ciência integral perfeita, da perfeita integração da realidade, é fruto desta ambição ontológica. E quanto mais presunçosa é esta busca, mais ela tende a se transformar no seu contrário, i.e. a imagem do domínio total sobre o conjunto da realidade se transforma na imagem terrorífica do universo persecutório criado por um deus arbitrário e incompreensível.


A experiência gnóstica é uma dimensão da existência humana, manifestando-se em diferentes graus – o gnosticismo é a expressão da condição humana sobre a terra, refletida na frase "o eterno silêncio do espaço infinito me apavora” de Blaise Pascal (1623-1662).


Esta mutação do sonho da ciência universal para terror universal surge inicialmente no próprio plano doutrinal – certas tentativas de recuperação da antiga tradição religiosa perdida pelo judaísmo e cristianismo, resultam em heresia. No mundo moderno esta conversão não se dá no plano doutrinal, mas no plano dos acontecimentos históricos, nas ideologias revolucionárias que pretendem conhecer o curso inteiro da história, transformando-se em ação política com do domínio total sobre a realidade, mas que resultam na total impotência de milhões de pessoas que terminam em Auschwitz ou no Gulag – o paraíso do conhecimento universal resulta em realidade infernal. Qualquer presunção de domínio total sobre a realidade sempre termina no descontrole total da situação, pois a presunção do conhecimento total é incompatível com os limites do homem – os limites do conhecimento humano não é uma falha ontológica, mas faz parte da estrutura da realidade (e.g. eu não posso ser conhecido na minha totalidade porque eu não existo na minha totalidade, eu só existo com sucessão do tempo – Tel qu'en lui-même enfin l'éternité le change (Mallarmé)).


Mário Ferreira dos Santos ensinava a valorização dos elementos de desconhecimento – o que é preciso desconhecer para se conhecer alguma coisa. Desconhecimento que não representa ignorância, mas a admissão da estrutura da realidade que comporta elementos incognoscíveis na sua própria estrutura, uma limitação que constitui a própria realidade. O homem precisa de um modo de se relacionar com o desconhecido, porém esta ponte com o desconhecido é suprimida no mundo moderno no instante em que a classe científica passa a personificar o guiamento da sociedade em lugar da religião – na concepção, por exemplo, do cristianismo há lugar para o desconhecido permanentemente presente e de algum modo dialoga com ele, mas na insanidade do mundo científico o desconhecido só pode ser visto como deficiência provisória que deve ser erradicada (a ciência moderna é uma fuga da realidade).


Esta ignorância do desconhecido, a recusa de aceitar o desconhecido como elemento positivo presente, afeta a concepção científica como todo mas não as investigações particulares, pois estas são feitas dentro de terrenos rigidamente delimitados, descontados dos fatores externos – a insanidade cientificista pode não pesar na prática da investigação científica, mas afasta-se da realidade quando tenta criar uma concepção científica desta realidade. A ciência moderna não poder criar uma concepção integral da realidade pois estuda apenas recortes desta.


Ao rastrear a sucessão das ordens visando entender a origem das ideologias modernas, Voegelin acaba descobrindo que a ordem moderna é de fundo gnóstico. Isso não quer dizer que as figuras representativas desses movimentos ideológicos fossem conscientemente gnósticas, mas indica que no fundo de todos eles está latente a presunção do conhecimento do curso da história, i.e. a presunção do conhecimento universal. O curso da história nos atrai para uma analogia com a vida do indivíduo, porém a vida humana tem uma duração previsível, e a história ninguém sabe quando vai terminar – conhecer o curso inteiro da história é uma expressão sem sentido porque pressupõe que a história tem fim e que o ideólogo não só o conhece como raciocina agora em função do pressuposto depois.


Voegelin mostra em On Hegel: A Study in Sorcery que Hegel não era propriamente um filósofo, mas foi um sábio gnóstico que pretendia saber tudo o que vai acontecer. Esta mesma presunção de conhecer e, portanto, controlar em algum modo o fluxo da história, encontra-se entre os teóricos da revolução francesa, nos marxistas, nos positivistas, na ideologia científica, na ideologia ecológica, em qualquer ideologia. E, como já observado, a conversão da presunção total em desespero total não ocorrerá no terreno doutrinário, mas será factual.


Voegelin está correto na identificação do elemento gnóstico nessas ideologias, porém este elemento por si só não seria suficiente para desencadear movimentos de massa – embora ao longo da história algumas heresias gnósticas tenham alcançado enorme sucesso, elas nunca foram capazes de alcançar uma organização mundial como se tem hoje, por exemplo, no movimento comunista.


Voegelin descobre, já nos últimos dias de sua vida, que é a fusão do elemento gnóstico com o elemento messiânico que viabilizaria a massividade do movimento. O messianismo surge já nos primeiros séculos cristãos quando se especula sobre a volta do Cristo. A Igreja se pronunciaria contra essas expectativas de retomo iminente, aceitando a sua própria existência como fator histórico permanente. A igreja tem uma missão a cumprir neste mundo até o advento de Cristo, advento que se dará não como acontecimento histórico, mas como o fim da história, o fim da humanidade – acontecimento da ordem eterna e não da ordem histórica.


A conformidade com a existência histórica terrestre é elemento fundamental da doutrina católica, deve-se aceitar a existência na sua plenitude sem esperar uma transfiguração mágica futura que só acontecerá quando acabar a humanidade. Porém, nem todos aceitam esta doutrina, e a medida que o tempo passa, a impaciência com expectativa do advento do Cristo se traduz no surgimento das revoltas messiânicas, onde vários indivíduos e grupos acreditaram que tinham obrigação de implantar o reino da justiça para precipitar o advento de Cristo – esta ideia se dissemina pela Europa a partir do século XV e XVI havendo uma eclosão de revoltas messiânicas.


A Reforma Protestante, apesar de iniciar-se apenas como um protesto moral contra a corrupção na Igreja e os abusos do Papa, acaba se convertendo num movimento revolucionário a despeito das intenções iniciais de Martinho Lutero (1483-1546). Em reposta a condenação de suas teses no Concílio de Trento, Lutero radicaliza em sua defesa argumentando teologicamente por suas teses, dando origem a uma teologia luterana na qual ele acaba negando dogmas fundamentais da Igreja como, por exemplo, o dogma da transubstanciação (negando a própria Missa), ficando cada vez mais contra a Igreja. Os movimentos messiânicos independentes que já existiam na Alemanha, estimulados pela iniciativa de Lutero, decidem implantar imediatamente o reino da justiça e matar todos os pecadores usando argumentos luteranos. Horrorizado com esta consequência, Lutero faz acordo com a aristocracia alemã para sufocar aquelas rebeliões, repetindo em escala alemã a associação dos poderes eclesiástico e secular que vigorara entre a Igreja o Império durante a Idade Média. Assim o luteranismo se torna a ideologia formadora da nação alemã com carácter revolucionário – a proposta de criar uma nova estrutura social excluindo a igreja católica.


Paralelamente, na Suíça, Ulrico Zuínglio (1484-1531) tentava outra reforma protestante que desde o início se caracterizava como um movimento revolucionário, criando uma nova religião que deveria se impor a toda a sociedade como regulamento civil – não havia distinção entre autoridade espiritual e poder temporal, sendo exercida sobre todos os aspectos da vida social, em todos momentos da vida do indivíduo – a invenção do estado totalitário moderno.


Ao mesmo tempo no contexto suíço-francês, emerge João Calvino (1509-1564) que tinha ideias semelhantes às de Zuínglio, e elabora todos os instrumentos de ação política que mais tarde seriam usados pelos movimentos revolucionários, e.g. Calvino é o criador da ideia da militância como organização da população civil para a ação política dirigida, das assembleias, das passeatas e das manifestações públicas.


A estrutura do movimento revolucionário foi criada pelos messiânicos, e não pelos gnósticos. E o movimento revolucionário acontece dentro da igreja com as heresias cristãs, posteriormente havendo uma fusão da ideologia gnóstica com os modelos de organização e ação revolucionários advindo dos movimentos messiânicos.


Ao mesmo tempo na Inglaterra, surge ruptura entre Henrique VIII (1491-1547) e a Igreja, fortalecendo a ideia da religião nacional. Inicialmente esta religião anglicana só se distingue do catolicismo tradicional pelo comando do rei no lugar do papa, mas os sucessores de Henrique VIII radicalizaram desapropriando os bens da igreja, proibindo a missa, e perseguindo e assassinando quarenta mil católicos – transcendendo em um só país, no curso de não mais de dois anos, o que a inquisição espanhola fez em mais de três séculos (e até hoje protestantes falam com o horror da Inquisição).


Novos ritos foram impostos pelo Estado mediante o derramamento de sangue – com elementos revolucionários como a ideia de criar uma nova sociedade onde cessariam as injustiças, como a opressão estatal, e como o conceito de militância – formados dentro do contexto cristão sem a mais mínima contribuição gnóstica, que vão finalmente se fundir apenas no século XVIII na medida que a divisão do cristianismo mais o advento da ideologia científica moderna e do humanismo enfraquecem o fundo cristão dos movimentos messiânicos, até que estes se converta em movimentos revolucionários sem mais fundo cristão algum (fundo que só voltaria no século XX com a Teologia da Libertação engendrada pela KGB).


Assim surgem os movimentos revolucionários modernos que escapam do controle das igrejas protestantes, voltando-se inclusive contra elas conforme se tornavam completamente independentes. Os movimentos de ideológico de massa depois do século XVIII atuam messianicamente com ideologia gnóstica, e esta mutação no movimento revolucionário não está esclarecido até hoje.


Voegelin enfatizou apenas os movimentos gnósticos (somente no final da vida observado o messianismo) em função da limitação metodológica de só trabalhar com documentos auto-expressivos de natureza teorética (autointerpretações racionais oferecidas pelos vários personagens envolvidos), sendo que não há documentação desta natureza na transformação dos movimentos messiânicos em movimentos revolucionários – esse não foi um processo intelectualmente elaborado. Seria necessário uma investigação utilizando elementos muito mais toscos, quase uma investigação psicológica (ver a apostila Problemas de Método nas Ciências Humanas que abrange o uso de uma documentação muito mais ampla, inspirada na metodologia de Gilberto Freyre).


Durante suas investigações Voegelin leu A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental de Edmund Husserl (1859-1938) onde identifica as raízes da crise ocidental no surgimento do modelo matematizante das ciências que gradativamente substituía os objetos de experiência por modelos matemáticos.


Voegelin percebe algo de gnosticismo na crença de Husserl na possibilidade de organizar a filosofia como uma ciência acadêmica coletiva e organizada, a partir da qual chegar-se-ia a uma ciência universal embasada no método fenomenológico: a mesma ilusão de ciência universal que levou àquela matematização repete-se nesta ambição de constituir a fenomenologia como a ciência universal. E Voegelin acredita que esta falha vem de um equívoco de Husserl na concepção da consciência, definada, por Husserl, apenas como intencionalidade, ou seja, como a direção do interesse do indivíduo para o objeto, i.e. a consciência não existe em si, mas apenas como tendência ao objeto – consciência definida na relação entre sujeito e objeto, sendo o objeto, encarado nem como real, nem como pensado, mas apenas como objeto de consciência (a distinção entre o real e o irreal ficaria para depois).


Voegelin estranha esta definição e investiga a filosofia da consciência através do método anamnético (produzindo o livro Anamnese) baseado sobretudo em experiências da infância, onde ele investiga como surgiu sua própria consciência. Desta investigação ele infere que a consciência não tem nada a ver com a relação entre sujeito e objeto, mas sim com a participação na realidade (conceito de presença total acima comentado) – o problema da consciência já havia sido resolvido pelo filósofo francês Louis Lavelle (1883-1951).


A consciência forma-se na medida em que ela se aceita como participante, i.e. a aceitação da realidade e de sua participação na realidade é condicionante para o surgimento da consciência. A consciência só existe, e só persiste na existência, na medida em que ela aceita, não só, a presença do objeto mas a sua própria presença ao objeto, entendendo que ela mesma e o objeto estão dentro da presença total, presença do ser. Só assim a consciência se forma e persiste como uma espécie de luz que se intensifica, e na qual o próprio ser se ilusida para si mesmo. E essa será a definição de consciência adotada por Voegelin: consciência é a participação num processo que é auto-elucidante, a experiência é por sua própria natureza auto-interpretativa e auto-elucidante. E Voegelin decide estudar a história como um processo que se elucida, pois se a história não for auto-elucidante os acontecimentos se passariam na obscuridade, seriam esquecidos, e não se integrariam em nenhuma estrutura inteligível – não haveria história propriamente dita.


A história se realiza primeiro na mente do historiador, porém o historiador também faz parte da história e a auto-elucidação dos fatos na mente do historiador se integra na sequência dos fatos – jogo sutil da metaxy.


Todo o vocabulário da filosofia moderna é feito na base do sujeito observando o objeto colocado fora dele (sujeito), como se todos pudessem enxergá-lo do mesmo modo – processo que faz abstração da própria participação do sujeito observador na constituição do objeto.


A ciência consiste em recortar certo campo da realidade que se acredita ser regido por uma constante, e depois observar os objetos dentro desse campo à luz dessa constante. Naturalmente, há uma boa probabilidade da hipótese ser confirmada, dado que os objetos foram selecionados por sua adequação àquela constante hipotética. Tomar este esquema simplista como modelo de todo o conhecimento humano é de uma pobreza miserável. Só podemos entender o objeto em evidência se entendermos o processo pelo qual ele foi recortado da realidade, pois o objeto tal como definido pela ciência não existe, o que existe é objeto inserido na realidade e que foi recortado por alguém em determinadas circunstâncias – não há nenhum objeto concreto que esteja acessível à observação científica, só objeto abstrato recortado segundo o recorte administrativo definido no ato da fundação de dada ciência (mecanismo circular). Não há conhecimento da realidade sem o retorno às condições de experiência que determinaram o rumo da investigação levada a cabo, sendo este permanente retorno o que caracterizaria cada vez mais o método do Voegelin. Método perfeito somente limitado pelo tipo de documentos que ele definiu que entrariam na investigação para que a mesma não fosse eterna no tempo – deixando para as gerações futuras um enorme campo de estudos, incluindo o desenvolvimento de novos métodos para acessar fatos não cobertos pela documentação disponível.


 

Voegelin começa a série de livros de Orden and History pretendendo traçar uma linha de desenvolvimento que iniciar-se-ia com as civilizações cósmicas, passando pela revelação israelita, pela filosofia grega, pelo cristianismo, até chegar na ordem gnóstica. Porém em meio ao processo ele descobre que as ordens não são sucessivas, com fenômenos destintos ocorrendo simultaneamente em diversos lugares, i.e. não há uma sucessão de ordens, mas há uma simultaneidade dos modelos de ordem. Voegelin reflete isto mo quarto volume da série: A Era Ecumênica.


Em The New Science of Politics, Voegelin refere-se ao problema do gnosticismo como padrão de ordem que caracteriza a modernidade.


(enxerto do capítulo 4: Gnosticismo – A Natureza da Modernidade)

“O confronto entre os vários tipos de verdade no Império Romano terminou com a vitória do Cristianismo. A consequência fatal dessa vitória foi a desdivinização da esfera temporal do poder, tendo-se sugerido que os problemas especi­ficamente modernos da representação teriam algo a ver com a redivinização do homem e da sociedade. Essas duas expressões precisam ser melhor definidas, sobretudo porque o conceito de modernidade, e com ele a periodização da his­tória, dependem do significado da palavra redivinização. Assim, entender-se-á por desdivinização o processo histórico pelo qual a cultura do politeísmo morreu de atrofia experiencial e a existência humana na sociedade foi reordenada mediante a experiência do destino do homem, pela graça de Deus que transcende o mundo, rumo à vida eterna numa visão beatífica.”


A atrofia experiencial do politeísmo significa a perda de correspondência dos símbolos da da religião greco-romana com a experiência real dos homens, com consequente perda de credibilidade, perda de força sugestiva. Entrando o novo elemento de ordenação na ideia da salvação por um deus transcendente.


(segue leitura)

“Por redivinização, contudo, não se entenderá uma revivescência da cultura politeísta no sentido greco-romano. [...] A redivinização moderna, ao contrário, tem suas raízes no próprio Cristianismo, a partir de componentes que foram suprimidos como heréticos pela igreja universal.”


A redivinização da sociedade de que fala Voegelin é o retorno ao elemento greco-romano, escapando da ordem determinada pela ideia da salvação individual por Deus transcendente, para uma outra ordem na qual o senso da verdade seria dado pela integração do homem na sociedade, já não construído com elementos da religião greco-romana, mas sim com elementos das heresias cristãs. 


Porém, mais recentemente, movimentos como o ecologismo (culto de Gaia) assemelham-se mais ao culto greco-romano. No atual processo revolucionário todas correntes anticristãs (gnosticismo, cultos orientais, Gaia, demonismo) estão sendo aplicadas na busca de uma nova formatação (domínio) da sociedade – incluindo a proposta de uma religião global numa nova ordem mundial. A vastidão de frentes e rapidez do processo atual torna impossível encontrar documentos auto-reflexivos de seus agentes.


(segue leitura)

“A natureza dessa tensão cristã interna, portanto, terá de ser determinada mais claramente (existe uma tensão entre os elementos internos considerados heréticos e os elementos ortodoxos). Essa tensão apareceu com a origem da cristandade como movimento messiânico judaico. A vida das primeiras comunidades cristãs, não estava fixada experiencialmente, mas oscilava entre a expectativa escatológica da Parusia que traria o reino de Deus e a compreensão da igreja como Apocalipse do Cristo na história. Desde que a Parusia não aconteceu, a Igreja de fato realmente evoluiu do reino da escatologia na história para a escatologia como uma perfeição transistórica sobrenatural.”


"Paralelo concreta do destino espiritual, tem paralelo no império romano como representação histórica concreta da temporalidade humana. Daí a compreensão do império medieval como continuação de Roma, que era parte duma concepção da história na qual o fim de Roma significaria o fim do mundo. A sociedade cristã ocidental, portanto foi articulada nas ordens espiritual e temporal, com o Papa e o Imperador como supremo representantes, tanto no sentido existencial quanto no sentido transcendental. Desta sociedade com o seu sistema estabelecido de símbolos, emergem os problemas especificamente modernos da representação, com a ressurgência da escatologia do reino. O desejo de uma redivinização da sociedade produziu simbolismo definido somente por volta do século XII. O primeiro desses símbolos é a concepção da história como uma sequência de três eras (Trindade). O segundo símbolo, é o símbolo do líder, que tinha a sua eficácia imediata no movimento dos espirituais franciscanos que viam em São Francisco a realização da profecia de Joaquim de Fiori. E a sua efetividade foi reforçada pela especulação de Dante, sobre o duque condutor da nova era espiritual. Essa figura pode ser rastreada nas figuras paraplécticas, os homens espirituais ou homens novos, da idade média, da renascença e da reforma. O terceiro símbolo é o do profeta da nova era. Para dar validade e convicção à ideia de terceiro reino final, o curso da história como todo inteligível e significativo deve ser assumido como acessível ao conhecimento humano (i.e. a história tem uma estrutura previamente determinada que é acessível à inteligência humana, seja através da revelação direta ou através duma gnose especulativa). Portanto, o profeta agnóstico ou nos estágios posteriores da secularização, o intelectual agnóstico se torna característico da civilização moderna (Joaquim, de Fiori aparece como o primeiro representante desta espécie, o profeta que que capta o rumo da história e indica o caminho da nova era). E o quarto símbolo é o da fraternidade das pessoas autônomas, os membros do novo reino sem mediação sacramental da Graça. Na terceira era a Igreja cessará de existir (porque você tem a comunidade já dos homens perfeitos)."


Estes quatro elementos (as três eras, o líder, o profeta e a comunidade dos santos) estarão presentes em todos os movimentos revolucionário desde aquela época até hoje. Quando Lula em Roma diz não precisar confessar pois não tem pecados, ele está se colocando como o líder que está trazendo a nova era, e, por pertencer à comunidade do santo, não tem pecados.


A transformação dos movimentos messiânicos, que eram heresias cristãs, em revoluções até ateísticas materialistas ocorrido no século XVIII é um problema de difícil compreensão. E acontece mediante a fusão de ideologias gnósticas com movimentos messiânicos organizados, que por sua vez surgem apenas com Calvino (inventor da organização política revolucionária). Depois de Calvino, o próximo passo na organização revolucionária da sociedade civil foi dado por François-Noël Babeuf (1760-1797) no período da Revolução Francesa, onde ele vai criar praticamente toda a estrutura do Partido Comunista (e.g. a estrutura em células).


(segue leitura)

"Daí, no simbolismo cristão, podem-se distinguir o movimento, como seu componente teleológico, desde um estado de valor máximo, como seu componente axiológico. Os dois componentes res­surgem nas variantes da imanentização, podendo, por conseguinte, ser classificados como variantes que, em seu simbolismo, acentuam seja o componente teleológico, seja o componente axiológico, ou ainda combinam ambos. No primeiro caso, quando a ênfase recai fortemente sobre o movimento, sem que haja clareza acerca da perfeição final, o resultado será a interpretação progressivista da história. O objetivo não precisa ser esclarecido porque os pensadores progressivistas, homens como Diderot ou D'Alembert, presumem a seleção de fatores desejáveis como pa­drão e interpretam o progresso como um aumento qualitativo e quantitativo do bem presente — o “maior e melhor” do slogan simplificador. Essa é um a atitude conservadora, a qual se pode tornar reacionária a menos que o padrão original se­ja ajustado à situação histórica em fluxo. No segundo caso, quando a ênfase é pos­ta incisivamente sobre o estado de perfeição, sem nitidez acerca dos meios necessá­rios para sua realização, o resultado será o utopismo. Ele pode tomar a forma de um m undo de sonho axiológico, tal como na utopia de Thomas More, quando o pensador ainda se mantém consciente de que o sonho é irrealizável e das razões porque o é; ou, como fruto de um crescente analfabetismo teórico, pode assumir a forma de vários idealismos sociais, tais como a abolição da guerra, da distribuição desigual da propriedade, do medo e da necessidade (símbolos que dão energia, dão vitalidade ao movimento). E, finalmente, a imanentização pode-se estender à totalidade do símbolo cristão. O resultado será então o misticismo ativo de um estado de perfeição, a ser atingido através da transfiguração revolucionária da natureza do homem, tal como, por exemplo, no marxismo."


Este discurso é típico: “temos que abolir a miséria” – algo impossível por definição, pois miséria não é a falta dos elementos para sobrevivência física, mas a falta dos elementos que dão aos outros meios de ação que um não tem. Existem padrões de miséria criados pelo próprio progresso, i.e. à medida que certas necessidades básicas foram atendidas surgem outras necessidades e os meios de atendê-las não são igualmente distribuídos. Um americano vivendo num trailer atrelado a um carro velho se sente tão miserável e injustiçado como um africano morrendo de fome – os movimentos políticos apelam a esta miséria da falta de meios comparativos.


Os slogans revolucionários são como a inatingível cenoura do burro. O elemento utópico não é estático e imaginário, constituindo-se numa das grandes forças do movimento. Uma das características do movimento revolucionário é nunca ser cobrado por suas promessas, pois estas sempre estão em movimento ao futuro – a ação humana tem necessariamente uma estrutura limitada no tempo.


(segue leitura)

“A tentativa de construir um eidos da história conduzirá à imanentização falaciosa do eschaton cristão. No entanto, a compreensão da tentativa como falaciosa suscita questões desconcertantes com respeito ao tipo de homem que se deixa por ela enganar. A falácia parece bas­tante óbvia. Ê possível presumir que os pensadores que empreenderam a tentativa não eram suficientemente inteligentes para discerni-la? Ou a discerniram, mas não deixaram de propagá-la por alguma obscura e malévola razão? A simples formula­ção dessas perguntas indica que a resposta é negativa. Sem dúvida, não se pode explicar sete séculos de história intelectual em termos de ignorância ou desonestidade (mas pode-se pela loucura). Por isso, cumpre presumir que alguma força agia na alma desses homens, impedindo-os de ver a falácia.”


"A natureza dessa força não pode ser apreendida submetendo-se a estrutura da falácia a uma análise mais profunda. Pelo contrário, a atenção deve concentrar-se no que tais pensadores conseguiram com sua construção falaciosa. Sobre isso não cabem dúvidas. Eles obtiveram uma certeza sobre o significado da história, e seu próprio lugar na história, que de outro modo jamais teriam. Ora, existe sempre uma demanda pelas certezas, a fim de vencer as incertezas e seu séquito de ansie­dades. A questão seguinte seria: que incerteza específica era tão perturbadora que se fazia mister superá-la mediante o recurso duvidoso à imanentização falaciosa? Não é preciso ir longe para encontrar a resposta, A incerteza é a própria essência do Cristianismo. A sensação de segurança num "mundo repleto de deuses” desapa­rece com os próprios deuses; quando o mundo é desdivinizado, as comunicações com o Deus que transcende o mundo ficam reduzidas ao tênue vínculo da fé, no sentido dado em Hebreus 11:1, como a substância daquilo que se espera e a de­monstração do que não se vê. Ontologicamente, a substância das coisas desejadas só pode ser encontrada na própria fé; e, epistemologicamente, a única prova das coisas invisíveis está também na própria fé. O vínculo é verdadeiramente tênue, e pode ser rompido com facilidade. A vida da alma aberta a Deus, a espera, os pe­ríodos de aridez e enfado, culpa e desespero, desamparo e esperança quando já não há esperança, o frêmito silencioso do amor e da graça, o tremor diante de uma certeza que, se conquistada, é perda — a própria leveza desse tecido pode-se cons­tituir num manto por demais pesado para os homens que anseiam por uma expe­riência maciçamente possessiva. O risco de um colapso da fé em grau socialmente significativo aumenta na medida em que o Cristianismo se converte em êxito temporal, isto é, cresce quando o Cristianismo penetra inteiramente numa área civilizacional, com o apoio de pressões institucionais, e, ao mesmo tempo, sofre um processo interno de espiritualização, de realização mais plena de sua essência. Quanto mais pessoas são atraídas para a órbita cristã, de m oto próprio ou sob pressão, maior será o número daqueles que não possuem a força espiritual exigida para a heroica aventura da alma que é o Cristianismo. A probabilidade da perda de fé aumenta também na medida em que o progresso civilizacional da educação, da alfabetização e do debate intelectual faz com que toda a seriedade do Cristianismo seja compreendida por um número crescente de pessoas. Esses dois processos ca­racterizaram o apogeu da Idade Média. Os pormenores históricos não vêm ao caso; basta mencionar o crescimento das sociedades urbanas, com sua intensa cul­tura espiritual, como centros primários a partir dos quais o perigo se irradiou a toda a sociedade ocidental."


"Se o problema da perda da fé no sentido cristão ocorre como um fenômeno de massa, as consequências dependerão do conteúdo do meio civilizacional em que estejam caindo os agnósticos. Um homem não pode cair dentro de si próprio, em sentido absoluto, pois, se o tentasse, muito cedo descobriria haver tombado no abismo de seu desespero e de sua insignificância; assim, ele terá de recorrer a uma cultura menos diferenciada de experiência espiritual. As condições prevalecentes na civilização do século XII impediam que recorresse ao politeísmo greco-romano, o qual desaparecera como cultura viva da sociedade; seus vestígios atrofiados difi­cilmente poderiam ser revividos, pois haviam perdido o encanto justamente para os homens que provaram do Cristianismo. Á queda só podia ser evitada por alter­nativas experienciais, suficientemente próximas à experiência da fé para que ape­nas um olhar muito penetrante pudesse distinguir a diferença, mas dela afastadas o bastante para aliviar a incerteza da fé em senso estrito. Tais experiências alterna­tivas estavam disponíveis na gnose que acompanha o Cristianismo desde suas mais remotas origens."


A partir do momento em que se rompe a unidade cristã e as heresias gnósticas e ocultismos começam a florescer novamente, no período da Renascença, temos a passagem do discurso dialético dominante para o discurso retórico dos humanistas – significativa queda da racionalidade do disputatio escolástico para os discursos como o de Erasmo de Roterdã e René Descartes. E a ciência moderna aparecerá como sucedâneo compensatório a maior irracionalidade em relação ao mundo escolástico.


(segue texo)

"Naquele época, a gnose constituía uma cultura religiosa viva, à qual os homens podiam recorrer. A tentativa de imanentizar o significado da existência é basica­mente um esforço para obter um dom ínio sobre nosso conhecimento da transcendência maior do que o propiciado pela cognitio fidei, a cognição da fé; e as experiên­cias gnósticas oferecem esse maior domínio na medida em que constituem uma expansão da alma até o ponto em que Deus é trazido para dentro da existência do homem. Tal expansão envolverá as diferentes faculdades humanas, razão pela qual é possível distinguir diversas variedades gnósticas de acordo com a faculdade que predomina no esforço de obter esse maior controle sobre Deus. A gnose pode ser primacialmente intelectual e assumir a forma de uma penetração especulativa nos mistérios da criação e da existência, como o foram, por exemplo, as gnoses contemplativas de Hegel ou Schelling. Ou pode ser basicamente emocional, to­m ando a forma de uma presença da substância divina na alma humana, como, por exemplo, nos líderes sectários paracléticos. Pode ser ainda principalmente volitiva, tomando a forma de uma redenção ativista do homem e da sociedade, tal como representada por ativistas revolucionários como Comte, Marx ou Hitler. Essas experiências gnósticas, em toda sua variedade, constituem o núcleo da redivinização da sociedade, pois os homens que recorrem a essas experiências divinizam-se ao substituir a fé, no sentido cristão, por formas mais concretas de partici­pação na essência divina."


"É essencial a nítida compreensão de que essas experiências constituem o núcleo ativo da escatologia imanentista, pois de outro m odo se tolda a lógica interna do desenvolvimento político ocidental a partir do imanentismo medieval até chegar ao marxismo, passando pelo humanismo, iluminismo, progressivismo, liberalismo e positivismo. Os símbolos intelectuais elaborados pelos vários tipos de imanentistas frequentemente são conflitantes, assim como os vários tipos de gnósticos se opõem uns aos outros. É fácil imaginar a indignação de um liberal huma­nista se lhe dissermos que seu particular de imanentismo é um passo na estrada que leva ao marxismo. Não é supérfluo, portanto, recordar o princípio de que a substância da história é encontrada ao nível das experiências, e não das ideias. O secularismo poderia ser definido como uma radicalização das formas anteriores de imanentização paraclética, pois a divinização experiencial do homem é mais extremada no caso secularista. Feuerbach e Marx, por exemplo, interpretaram o Deus transcendental como uma projeção do que há de melhor no homem num além hipostático; para eles, portanto, o m omento decisivo da história ocorreria tornasse consciente de que ele próprio é Deus, transfigurando-se, em consequência, num super-homem . Essa transfiguração marxiana, na realidade, conduz a seu extremo um a experiência medieval menos radical, que trazia ao homem o espírito de Deus, enquanto deixava o próprio Deus em sua transcendência. O su­per-homem marca o fim de uma estrada ao longo da qual encontramos figuras tais como o “homem com Deus” dos místicos da Reforma inglesa. Essas conside­rações, ademais, explicam e justificam a advertência anterior no sentido de que não se devem caracterizar os movimentos políticos modernos como neopagãos. As experiências gnósticas determinam um a estrutura da realidade política que é sui generis. O gnosticismo medieval está ligado ao gnosticismo contemporâneo por uma linha de transformação gradual. E, na verdade, a transformação é tão gra­dual que seria difícil decidir se os fenômenos contemporâneos devem ser classifi­cados como cristãos, já que derivam claramente das heresias cristãs da Idade Média, ou se os fenômenos medievais devem ser classificados com anticristãos, por serem claramente a origem do anticristianismo moderno. O melhor é deixar de lado tais questões e reconhecer a essência da modernidade como o crescimento do gnosticismo (o culto a Gaia promovido pela ONU já é a passagem do gnosticismo para o neopaganismo)."


"A gnose acompanhou o Cristianismo desde suas origens, dela se encontrando vestígios em S. Paulo e S. João. A heresia gnóstica foi o grande oponente do Cristianismo nos primeiros séculos. Ireneu relacionou e criticou suas muitas va­riantes na obra Adversus Haereses (por volta de 180) — tratado que ainda pode ser consultado com proveito pelo estudante que deseje conhecer as ideias e os movimentos políticos modernos. Ademais, além da gnose cristã, havia ainda uma gnose judaica, um a gnose pagã e uma gnose muçulmana. Muito provavelmente, a origem comum de todos esses ramos de gnose deva ser buscada no tipo experiencial bási­co que prevaleceu na área pré-cristã da civilização siríaca. No entanto, somente no apogeu da Idade Média a gnose assumiu a forma de uma especulação sobre o significado da história imanente. A gnose não conduz, por necessidade interna, à construção falaciosa da história que caracteriza a modernidade desde Joaquim. Por conseguinte, na busca da certeza deve haver um componente adicional que orienta a gnose especificamente rumo à especulação histórica. Este componente adicional é a expansividade civilizacional da sociedade ocidental no apogeu da Ida­de Média. Ê o atingimento da maioridade na busca de seu significado, um crescimento consciente que não toleraria ser interpretado como envelhecimento. E, de fato, a auto-atribuição de um significado para a civilização ocidental seguiu de per­to a expansão e a diferenciação ocorridas na realidade. O crescimento espiritual do Ocidente através das ordens, desde Cluny, foi expresso na especulação de Joaquim acerca de idéia de um Terceiro Reino dos monges (a concepção histórica do Cristianismo é emulada no gnosticismo)."


"A concepção de uma idade moderna que se se­guiria à Idade Média é, por si própria, um dos símbolos criados pelo movimento gnóstico, pertencendo à classe dos símbolos do Terceiro Reino. Desde que, no sé­culo XV, Biondo tratou o milênio que decorreu entre a queda de Roma em 410 e o ano 1410 como uma era encerrada do passado, o símbolo de uma nova idade, a idade moderna, tem sido usado por ondas sucessivas de intelectuais humanísticos, protestantes e iluministas a fim de exprimir sua consciência de serem os repre­sentantes de uma nova verdade. Entretanto, justam ente porque o m undo, sob a

orientação dos gnósticos, vem sendo renovado a intervalos frequentes, é impossível chegar a uma periodização justificável do ponto de vista crítico tom ando em conta as reivindicações desses grupos. Pela lógica imanente de seu próprio simbolismo teológico, cada uma das ondas gnósticas tem uma justificativa tão boa quanto qualquer das outras para se considerar a grande onda do futuro. Não há por que um período moderno se deva iniciar com o humanismo e não com a Reforma, ou com o iluminismo e não com o marxismo. Consequentemente, o problema não poder ser resolvido ao nível do simbolismo gnóstico. É necessário descer ao nível da representação existencial a fim de encontrar um motivo para a periodização, pois de fato estaria caracterizada uma época se, na luta pela representação existencial (a sociedade constituída representando a forma da verdade), ocorresse uma vitória revolucionária decisiva do gnosticismo sobre as forças da tradição ocidental. Se a questão for colocada nesses termos, a periodização convencional torna-se significativa."


“Para colocar em marcha um movimento, é mister, antes de tudo, que alguém tenha uma “causa”. A fim de promover sua “causa”, o homem que a possui deverá criticar severamente – “onde a multidão possa ouvi-lo” – os males sociais e, em especial, o com portamento das altas classes. A repetição frequente desse ato levará os ouvintes a crerem que os oradores devem ser homens de grande integridade, fervor e santidade, pois somente homens particu­larmente bons podem ofender-se tão profundamente com o mal (inauguração de um novo tipo de santidade: falar mal do mal). O passo seguinte consiste em concentrar o ressentimento popular sobre o governo instituído. Essa tarefa pode ser realizada psicologicamente atribuindo-se todos os defeitos e a cor­rupção, tal como existem no mundo devido à fraqueza humana, às ações ou inações do governo. Imputando o mal a uma instituição específica, os oradores provam sua sapiência à multidão que, por si só, jamais teria atinado com essa conexão; ao mesmo tempo, mostram aquilo que deve ser atacada a fim de livrar o mundo do mal. Após tal preparação, terá chegado o momento de recomendar uma nova forma de governo com o remédio soberano para todos os males. Isto porque as pessoas que estão possuídas de aversão e descontentamento para com as coisas presentes são suficientemente loucas para imaginar que qualquer coisa (cuja vir­tude lhes haja sido recomendada) os ajudaria; e mais crêem no que menos tenham tentado. (propostas terão como único argumento o fato de nunca terem sido tentadas antes, e slogans vazios de sentido prosperarão, e.g. o "change" obamistíco)."


“Se um movimento baseia-se na autoridade de uma fonte literária, como era o caso do movimento puritano, é necessário ainda que os líderes moldem as pró­prias noções e conceitos mentais dos homens de tal forma que os seguidores automaticamente associem passagens e termos das escrituras com sua doutrina, por mais errônea que seja a associação, e, com igual automatismo, ignorem o conteúdo da Escritura que se revele incompatível com a doutrina (imantar frases e palavras com conteúdo tido como positivo e salvador independentemente do contexto, permitindo que as pessoas reajam a elas sem a representação da realidade correspondente – instrumento de hipnose). Vem depois o passo definitivo na consolidação de uma postura gnóstica, qual seja, persuadir os homens cré­dulos e inclinados a tais erros gratificantes de que sobre eles recai a luz especial do Espírito Santo, a qual lhes permite discernir nas palavras aquilo que os outros, embora as leiam, não enxergam. Eles sentir-se-ão eleitos e essa experiência gera uma grande separação entre tais homens e o resto do mundo, de tal modo que a humanidade passa ser dividida entre os “irmãos” e os “mundanos”."


“Com a consolidação da experiência gnóstica, a matéria-prima social fica em condições de receber a representação existencial de um líder. Isto porque, ainda segundo Hooker, tais pessoas preferirão a companhia de outras envolvidas no movimento à de indivíduos a ele estranhos; aceitarão voluntariamente os conselhos e a orientação dada pelos doutrinadores; negligenciarão seus próprios interesses para devotar todo seu tempo ao serviço da causa; e fornecerão farta ajuda material aos líderes do movimento.”


“Uma vez criado um meio social deste tipo, será difícil, senão impossível, rompê-lo através da persuasão. Se algum indivíduo de opinião contrária abre a boca para persuadi-los, eles se comportam com os surdos, não ponderam as razões que lhes são oferecidas, a tudo respondem repetindo as palavras de João: “Nós somos de Deus; aquele que conhece Deus nos ouve”. Quanto aos demais, vocês pertencem ao mundo, e falam da pompa e da vaidade do mundo; e o mundo, feito de gente com o vocês, lhes dá ouvido”. Eles são impermeáveis aos argumentos e têm respos­tas bem treinadas. Caso se lhes sugira que são incapazes de julgar tais matérias, responderão: “Deus escolheu os simples”. Caso se lhes mostre convincentemente que estão dizendo coisas sem sentido, dirão: “Até mesmo os apóstolos de Cristo foram considerados loucos”. Caso se lhes acene com um mínimo de disciplina, estender-se-ão sobre a “crueldade dos homens sanguinários” e se apresentarão com o “a inocência perseguida por dizer a verdade”. Em suma, não há argumento que possa abalar a rigidez psicológica de sua atitude.".


 

Refazendo o trajeto intelectual de Voegelin para identificar a lógica interna do seu pensamento vemos que suas influência intelectuais iniciais, Hans Kelsen e Othmar Spann, colocavam imediatamente um problema, pois na perspectiva do Kelsen não era possível nenhuma análise unitária da sociedade (o enfoque do Kelsen reduzia todo o edifício do direito apenas ao aspecto formal lógico, como se o direito ficasse separado da sociedade – o sistema jurídico amputado dos fatores históricos sociológicos, morais etc); ao passo que Spann indicava o sentido contrário, encarando a sociedade como uma substância com o objetivo de formar a sociologia como ciência.


Para Spann o indivíduo não teria vida espiritual sem a abertura a Deus e o diálogo entre os espíritos no seu entorno. Porém deve-se observar que o indivíduo adquire abertura a Deus através da sociedade mas pode voltar-se contra ela posteriormente (mundo social como inimigo da alma), a individualidade substancial seria garantida por Deus e não pela sociedade. Mas a perspectiva de Spann é exclusivamente sociológica, sendo a sociedade mais real do que esse indivíduo –  o conceito universal da sociedade teria uma realidade independente dos indivíduos que a acompanham, e esses indivíduos, por sua vez, não existem fora da sociedade (tensão insolúvel entre indivíduo e sociedade).


Para que o estudo da sociedade se constitua como ciência é necessário que o seu objeto (a sociedade) seja identificado, e este foi o primeiro trabalho notável de Voegelin (Interação e Comunidade Espiritual), tese de conclusão do curso em Viena em 1922. Da experiência com Spann, Voegelin adquire como preceito metodológico que o indivíduo é uma ente aberto para uma realidade espiritual que o transcende – a individualidade humana não pode ser considerada como um todo fechado finito, estando em permanente formação através de uma rede de relações tensionais e dialéticas com o meio social em torno.


Nos EUA, Voegelin entra em contato com a questão da consciência na obra de William James (1842-1910), na qual sujeito e objeto nunca aparece independentes em sua relação, pois isto suporia isolar o sujeito e o objeto da realidade na qual aquela relação acontece – existe em primeiro lugar o contexto ontológico geral, e dentro desse contexto sujeito e objeto se autodefinem e se relacionam. Para William James a consciência não existe per se, existindo apenas como uma possibilidade que se atualiza dentro de uma relação, de modo que a relação predomina sobre os seus componentes. (Louis Lavelle examinou com muito mais detalhes este tema)


Ainda nos EUA, Voegelin adquire novos elementos metodológicos, como a necessidade de trabalhar apenas em cima de documentos autoexplicativos, sendo que nada será admitido que não encontre expressão na linguagem, e numa linguagem particular, a linguagem teorética que ordena racionalmente o campo para torná-lo inteligível – os esforços de tornar a experiência inteligível analisados em conjunto visando a ordenação geral. Aparece aí a distinção entre o discurso do agente e o discurso do cientista que agrupa, reordena e tenta tornar inteligível o conjunto das ações dos agentes com as suas respectivas explicações. A partir desses dessa coleção de documentos autoexplicativos Voegelin busca as linhas de significado que permanecem constante, uma linha temporal de significado – reunindo os elementos permanentes das sucessivas autointerpretações.


A preparação metodológica de Voegelin ocupou quase duas décadas, tornando-o apto a enfrentar problemas substantivos como a ideologia de massas na Áustria e Alemanha antes da eclosão da II GG, ou e criação do conceito de civilização cosmológica.


Ao lidar com as ideologias de massa Voegelin não encontra a mesma documentação que estava disponível em seus trabalhos anteriores. É intui que essas ideologias buscam implantar algum tipo de ordem, colocando o problema da ordem. E como as ordens não têm como ser identificadas nacionalmente, são fenômenos necessariamente transnacionais, surge a ideia da história da ordem.


Não há como olhar a história desde fora. O estudioso que escreve sobre a ordem está dentro desta ordem (ou desordem), a ordem da história não pode ser vista como objeto, não há uma ordem da história que possa ser descrita desde fora. A ordem da história é a história dos esforços de encontrar uma ordem. Se existe uma lógica imanente na história, é a lógica da busca da ordem – a ordem da história vem do próprio esforço de encontrar ou criar uma ordem. O máximo que se pode fazer é participar do esforço da ordem para se esclarecer a si mesmo – o indivíduo participante da história tenta esclarecer o que está fazendo dentro dela, e através dele a ordem esclarece a si mesmo.


 

Gnosticismo é uma experiência da desordem, é a experiência do desamparo cósmico: “Vivemos no caos, o universo é hostil e a humanidade é inviável. E o que nós vamos fazer diante disso?” Sendo a busca da ordem do gnóstico ilegítima, pois afirma a existência do conhecimento universal total e absoluto que não possui (estado de loucura). A busca legítima da ordem tem que lidar com os elementos de desordem que estão presentes. E tem que saber que a ordem perfeita não existe, pois é incompatível com a estrutura da realidade. A solução gnóstica só pode piorar o quadro presente. A proposta globalista, assim como a comunista, são de ordem gnóstica e desastrosas quando aplicadas na realidade – as promessas de ordem perfeita são incompatíveis com a estrutura da realidade.


Voegelin tem razão ao afirmar que todas as ideologias modernas são, de certo modo, expressão da desordem, mas que pode se impor num certo momento como se fosse uma ordem. Então subirão ao primeiro plano da existência social indivíduos que expressam essa desordem; não são mais líderes ordenadores, menos ainda o profeta legislador que traz a ordem divina. Eles alcançam a liderança política por expressarem a desordem geral, confundindo sua avaliação futura, pois o sucesso pode ser declarado fracasso e o fracasso visto como sucesso. Não se pode julgar um governo revolucionário como se faz com uma sociedade não-revolucionária, e.g. o fracasso econômico cubano apenas fortalece o controle governamental.


 

Trauma da emergência da razão é uma investigação de ordem psicológica, o enfrentamento de problemas para os quais o indivíduo não está preparado para enfrentar (e.g. crianças não tem a experiência necessária para lidar com a maioria dos eventos). É o problema da desordem na escala microcósmica. A criança aproxima-se da ordem à medida que vai conquistando os instrumentos do pensamento racional. Mas isso pode levar décadas, sendo que os problemas estão presentes desde o início, forçando o indivíduo a buscar um símbolo da razão, que pode ser a figura do pai ou qualquer figura da autoridade, que vai funcionar como garantia de ordem (não uma garantia de fato, mas apenas símbolo).


Quando o indivíduo adquire os instrumentos da razão, ele mesmo derruba este ídolo por ele criado.A razão é uma responsabilidade humana; e uma potencial capacidade humana, daí o trauma da emergência da razão. A maior parte dos distúrbios psicológicos humanos resultam do descompasso entre a situação real e os meios de compreensão racional para lidar com ela.


A desordem é um trauma da emergência da razão na sociedade.


 

A transformação da doutrina gnóstica numa organização de massas não foi esclarecida por Voegelin. Olavo de Carvalho teoriza que esses movimentos não surgem diretamente como gnósticos, mas como uma heresia messiânica. No século XVIII estes movimentos de origem “cristã” se esvaziam do conteúdo cristão tomando a forma gnóstica – mantém sua estrutura organizacional mas com novo conteúdo. Não é possível explicar esta transformação pelo método de Voegelin, sendo matéria de uma investigação específica que vá além dos documentos autoexpressivos, pois muito daquela transformação se deu no recesso de sociedades ocultistas secretas ou discretas – e.g. a formação da Ordem dos Iluminados de Adam Weishaupt era de conteúdo nitidamente gnóstico dentro de uma estrutura organizacional emprestado da ordem jesuíta, cuja formação não foi documentada.


 

Não existe ordem definitiva, apenas o equilíbrio da consciência é possível – equilíbrio da inescapável tensão entre ordem e desordem. Quando este equilíbrio é rompido pelo gnosticismo o indivíduo perdido busca reencontrá-lo de alguma maneira. O indivíduo normal e íntegro deveria ser capaz de suportar essa tensão – equilíbrio da consciência ou o caos, não há alternativa. O equilíbrio da consciência implica a coexistência dos elementos de ordem e desordem, uma dialética entre ambas.


A perda do equilíbrio da consciência revela-se na incapacidade de lidar com as permanentes incertezas sobre o futuro, o dia da sua morte, o sentido da história, o destino pós-morte, etc. Mas tudo isso é a condição humana. A revolta metafísica resultante leva o indivíduo a buscar o impossível mundo perfeito, provocando apenas mortes e desgraças.


 

A partir do instante em que certos grupos humanos tomam consciência de uma ordem divina transcendente, eles saem de dentro daquela redoma da civilização cosmológica, e a vida nessa civilização parece-lhes infernal. Esta libertação é simbolizada pelo êxodo judeu do Egito.


A descoberta da transcendência traz a descoberta da dimensão da história, ausente na fechada civilização cosmológica que abrangia aquela. A descoberta da dimensão histórica é representada na fuga pelo deserto (não há caminhos predeterminados), e na travessia do Mar Vermelho (águas como símbolo do caos primordial). A abrangência da dimensão da história produz uma visão muito mais realista da condição humana (marca a diferença entre a civilização ocidental e as outras, e o predomínio daquela sobre estas – o Islã também tem dimensão histórica e concorre com o Ocidente). Voegelin identifica aqui o que denominava o “salto para cima dentro do ser”.


Os saltos no ser, que aconteceram paralelamente no Oriente, são imperfeitos em comparação com os saltos que ocorreram em Israel e na Grécia, os quais se fundiram na forma ocidental, alcançando um ápice. Apesar de alcançarem a existência pessoal, os saltos ocorridos no Oriente não chegaram à ideia da existência de Deus em forma histórica – que é exatamente o que caracteriza Israel: a história de um povo vivida diante de Deus (a história de Israel (aberta) e a dimensão da eternidade (onisciente)).


As civilizações orientais nunca atingiram a compreensão da comunidade do ser (Deus, homem, mundo e sociedade – quaternário voegeliano). As filosofias orientais nunca encontraram o seu fundamento na estrutura da realidade, tal como exposta por Aristóteles. A história acontece onde quer que os homens vivam, mas a filosofia da história é um simbolismo que surge no Ocidente (Voegelin esqueceu de incluir o mundo islâmico).


 

Em The Radical Kingdom (1970), Rosemary Radford Ruether (1936-2022) explora em que sentido o evangelho seria uma mensagem sociopolítica revolucionária:

(a autora é uma teórica revolucionária, feminista, defensora do ecofeminismo teológico)


(leitura de excertos do primeiro capítulo)

"In postulating a relationship between Christianity and social change, the basic assumption is that social change is never intended to be neutral change. It is never intended to be merely change from one set of conditions to another on the same plane of value; the ideology of change always implies conversion or redemption: a change from an old, bad, fallen, lost, or inauthentic state to a new, good, restored, and redeemed state of existence. Then both the gospel and ideologies of social change center on a doctrine of redemption. The theological doctrine, therefore, was never properly understood as simply a doctrine about the individual soul, but about man in his entirety; in his bodily, social, and historical existence. As soon as we see that the doctrine of redemption is about the human community in history, its affinity with ideologies of social reform becomes evident.


To say that this sociohistorical side of the gospel was revived in a secular form is actually tautological, since secular simply means sociohistorical, and the use of secular in this antagonistic way itself indicates the way the popular imagination has lost the sense of

this sociohistorical context of the gospel.


The following chapters will describe historical movements and ideologies that yearned for the radical renewal and transformation of society. Such movements will be followed as they arose from the Christian context, passed over into an antiecclesiastical form (na verdade anti-cristão), and were then often "re-Christianized" (errado, isto nunca aconteceu) by liberal churchmen.


The earlier prophetic view had seen the future goal as simply a future historical era of bliss and virtue, but one that was temporal and mundane and would pass away; those within it would die as well. (no judaísmo é assim) Man's history moves forward to a final satisfaction of his ideal and fulfillment of the demands of justice, but this still presumes a temporal framework. History does not escape into a timeless absolute. In the development of apocalypticism, this temporal ideal became insufficient. The future age became increasingly transmundane and eternal. Then in the apocalypses of the first century B.C., the old temporal prophetic kingdom is reintroduced as a preamble to this new eternal Kingdom. The old view is put somewhat awkwardly side by side with the later one and the fulfillment is given two stages: an initial overthrow of evil powers and a thousand-year messianic reign of goodness and prosperity on earth, and then a final binding of the demonic powers. The emergence of this double model points to the great contradiction between historical goals however highly conceived and an eternal, timeless absolute.


Within the apocalyptic perspective, however, this thousand-year messianic reign is not seen as an evolutionary process, although it was later interpreted as such. Rather, evil is seen as eliminated once and for all in a sudden intervention. This cosmic crisis was always expected very soon by the apocalypticist at whatever point he might be writing; it was always just around the corner.


The apocalyptic view of redemption is basically social and outer-directed. One does not look inward to the salvation of some personal essence; one looks outward at history and society, at injustice, oppression, and cruel and irrational destruction.Apocalypticism is the social religion of oppressed people. Because of its radicalism and uncompromising confrontation within the present system, it is the implicit or explicit underpinnings of every revolutionary faith."


Estas seitas messiânicas (Voegelin denominava-as apocaliptísticas) visavam uma transformação radical da sociedade e da própria natureza humana para inaugurar o reino da virtude e bem-aventurança por mil anos. Porém, todas falharam em suas previsões e ambições. Além disto, já na modernidade, as tentativas de realizar aqueles objetivos apenas resultaram no acréscimo do mal, da injustiça e da violência – prova mais que suficiente de que a perspectiva histórica do apocalipse está errada.


O fato da perspectiva de redenção no Juízo Final ser coletivo (todos serão julgados) não implica que ele tenha caráter histórico também. A autora, confundida, associa o caráter coletivo com histórico, e individual com supra-temporal, ignorando que o coletivo pode também se dar no plano supra-temporal. Porém ela está correta em ver esta perspectiva apocalíptica como a inspiração de todos movimentos revolucionários – sendo estes anticristão, e não anticlerical como quer a autora.


A autora erra ao falar de recristianização dos movimentos, algo que nunca aconteceu, mas poderia ter falado da islamização deles. Os muçulmanos não desistem de uma linha da sua doutrina quando entram em conluio com o comunismo. Eles não adaptam a doutrina islâmica para ela se acomodar ao princípio revolucionário, como fizeram os cristãos da Teoria da Libertação, mas fazem do movimento revolucionário um capítulo da filosofia islâmica da história. Através da adesão e da colaboração com o movimento revolucionário os muçulmanos visam destruir todos os seus inimigos de uma vez: judeus, cristãos, materialistas, e tutti quanti.



 


Notas:


  • Olavo de Carvalho (1947-2022) nasceu em Campinas, Brasil.

  • Filósofo, analista político e polemista, tem extensa obra registrada em livros e aulas gravadas.

  • O seminário Introdução à Filosofia de Eric Voegelin foi ministrado em 6 aulas entre os dias 27 de abril e 02 de maio de 2009.

  • Eric Voegelin (1901-1985) nasceu em Colônia, Alemanha.

  • A obra do Voegelin, sendo voltada para o estudo de realidade de fato, está sempre aberta a novas incorporações de descobertas. Ele dizia que o estado atual da ciência predomina sobre as nossas teorias – os fatos, a verdade força a revisão das teorias. A obra é incompleta e segue aberta – é um programa de pesquisa. Não há melhor maneira de entender sua obra que prosseguindo a investigação que ele começou: o esforço constante para esclarecer o problema da ordem. A grande contribuição dele é sobretudo esse exemplo da busca permanente. Para Voegelin a busca do fundamento é o que define o ser humano, é a diferença específica do ser humano.

  • Entre o término do ensino médio e o começo da faculdade, Voegelin estuda O Capital de Karl Marx e diz ter sido marxista durante três meses.

  • Os brasileiros não têm nenhum interesse por sua história, ao contrário, a ridicularizam em todas as oportunidades. Não há verdadeira homonoia na sociedade brasileira, havendo apenas referências simbólicas, e.g. torcida na Copa do Mundo.

  • Homonoia existe quando é expressa e reconhecida pelo povo, como nos documentos que Voegelin encontrou nos EUA.

  • As ondas de imigração ilegais forçadas e a ideia de multiculturalismo visam destruir a homonoia social, romper a unidade moral da sociedade e automaticamente provocar um crescimento hipertrófico das leis e da intervenção estatal. Não é coincidência que as pessoas que promovem a imigração ilegal e o multiculturalismo são as mesmas que promovem a maior intervenção do Estado na sociedade. Quanto menos a sociedade está unificada, mais é necessário unificá-la desde cima, com fatores artificiais de ordem legal.

  • Os Dez Mandamentos não são de ordem normativa, eles são uma estrutura ontológica – eles não estão dizendo o que deve ser, eles estão dizendo o que é realmente – embora aos olhos da cultura moderna parecem ser meramente normativo e ideal. O “amor ao próximo” é o fundamento efetivo da vida social. E quando ele desaparece, ele tem que ser substituído por fatores unificantes artificiais.

  • A situação presente é de unidade forçada, sobretudo desde a Revolução Francesa houve uma expansão monstruosa do edifício jurídico hoje os governantes mandam em tudo, existe uma lei para tudo. Tolos veem nisso um progresso, acreditando estarmos passando do mundo da autoridade arbitrária para o mundo da lei e da ordem. Mas antigamente não havia autoridade arbitrária, havia era uma autorregulamentação. As pessoas instintivamente procediam de maneira mais ou menos uniforme, sem que ninguém as forçasse a isso.

  • Os historiadores Benedetto Croce (1866-1952) e Lord Acton (1834-1902) erram ao afirmar que a história apresenta uma liberdade crescente. O que se observa é o crescimento da interferência da autoridade constituída sobre as pessoas, chegando a regular detalhes da vida pessoal. E isto é indiferente nas ditaduras ou nas democracias (ver O Poder: história natural de seu crescimento de Bertrand de Jouvenel). Isso se reflete na perda da homonoia, a perda da unidade cultural do ocidente.

  • O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) institui entre nós a tradição de utilizar todo tipo de material na interpretação sociológica, incluindo elementos como lendas, alimentação e vestuário.

  • A teoria da representação é um dos elementos fundamentais da democracia, sendo muito estudo especialmente nos EUA e na Inglaterra – a ideia de democracia se baseia na legitimidade da representação. A base da revolução americana foi o no taxation without representation – não pagamos impostos se nós não tivermos representantes no Parlamento.

  • Aristóteles inaugura a ciência política ao fazer a distinção entre o discurso dos agentes e o seu discurso. O objetivo dos agentes era fazer uma interpretação da ordem de modo a fundamentar certas ações. E o seu objetivo, como estudioso,é ampliar a taxa de inteligibilidade do que se passou.

  • O pensamento gramsciano não admite o ideário oposto, pregando sua supressão total. Caso este ideário antagônico chegue ao debate público seu defensor será classificado como intelectual orgânico da classe inimiga a ser derrotado.

  • Quando Pitágoras diz que tudo são números ele não está querendo dizer que as qualidades dos seres se reduzem às suas quantidades nem muito menos que o aspecto qualitativo deve ser ignorado porque no fundo só existe a quantidade, mas ele está querendo dizer que as próprias quantidades são qualitativas no sentido de que a sequência dos números não expressa só aumento de quantidade, mas conjunto de relações lógicas entre os elementos contados. Mário Ferreira dos Santos expressa isto dizendo que a unidade de um objeto qualquer (existir é ter alguma unidade) jamais é uma unidade simples. Por exemplo: um objeto é o que ele é, mas para você ele tem aspectos desconhecidos (dualidade cognitiva); a partir do momento que esta dualidade é percebida gera-se uma relação que constitui um terceiro elemento, pois não se reduz nem a nenhum dos outros dois; estes três elementos formam uma proporção de a/b/c que é um quarto elemento; e assim por diante – a sequência dos números expressa os conjuntos de relações lógicas possíveis, e nesse sentido todas as modalidades de existência de todos os seres e coisas.

  • Na religião islâmica o deserto é simbolicamente integrado ao considerá-lo como representativo da nudez do ser perante o absoluto da unidade divina (e não um ambiente hostil). O simbolismo do vazio, também é representado no “altar” das mesquitas: um vazio escavado na parede designando que em face de Deus tudo é nada – a aceitação da própria nulidade é elemento fundamental da religião islâmica.

  • A literatura é rica em exemplos onde o ambiente físico e/ou social é demasiadamente grande e hostil para o indivíduo que se sente ali perdido, ou demasiado pequeno em relação às possibilidades do espírito humano – personagens cuja alma é demasiada pequena para o ambiente ou demasiadamente grande.

  • Culto de Gaia e movimentos ecológicos são tentativas gnósticas de recuperação da civilização cosmológica, tentativas de ressacralização da ordem natural tomada como expressão da ordem cósmica que por sua vez refletiria de uma maneira mais direta a ordem divina.

  • Orlando Villas-Bôas (1914-2002) comentava o horror que os índios tinha da selva. O formato circular da taba é uma defesa contra a desordem ambiente. A forma circular, simples e abrangente, imita o mundo, designando idealisticamente a simplicidade da ordem total. (Em O Mito do Eterno Retorno, Mircea Eliade apresenta vários comentários sobre a simbologia do círculo)

  • Movimento revolucionário é caracterizado como uma proposta abrangente de futuro (abrangendo toda a sociedade), a ser realizada mediante a concentração de poder.

  • Em 1660 um grupo de ocultistas e alquimistas fundam na Inglaterra a Royal Society (The Royal Society of London for Improving Natural Knowledge) com uma ideologia científica estabelecida. A ciência moderna objetiva nasce como uma camuflagem da verdadeira natureza da Royal Society, tendo como pano de fundo resíduos da antiga tecnologia simbólica das civilizações cosmológicas. Ocultismo não passa de um conjunto de resíduos de antigas ciências que se apresentam com a presunção de constituir um conhecimento secreto.

  • Fire in the Mind of Men (1980) de James H. Billington (1929-2018) é uma história do movimento revolucionário que se inicia praticamente na revolução francesa por falta de documentos sobre as fases anteriores. Toda a interpenetração entre os clubes revolucionários e os movimentos ocultistas na França não produziu documentação dada sua natureza secreta e/ou discreta – não há reflexões sobre isto por parte das personagens envolvidas no processo.


  • Em Hegel Secreto, o filósofo francês e Jacques D'Hont (1920-2012) investiga as ligações do filósofo alemão com a maçonaria. Hegel chegou a receber dinheiro dos maçons para escrever determinados assuntos.

  • O Concílio de Trento (1545-1563) foi fundamental para corrigir o terrível estado da Igreja, produzindo um renascimento da mesma.

  • O poeta francês Charles Péguy (1873-1914) propõe em De la cité socialiste uma sociedade na qual haveria uma administração centralizada e racional nos bens, mas não administraria as pessoas – um dos raros documentos que descrevem como seria a sociedade socialista.

  • Eugen Rosenstock-Huessy (1888-1973) aponta na história ocidental que quando uma nação é profundamente afetada por um ciclo revolucionário, ela escapa do ciclo revolucionário seguinte, e.g. os revolucionários puritanos que colonizaram os EUA usando as instituições e leis que eram tradicionais na Inglaterra.

  • O caráter abrangente das civilizações cósmicas encontra eco nas teorias do psicólogo Julian Jaynes (1920-1997) que especulavam a ausência de consciência humana até certa data – consciência não seria inata, mas um comportamento adquirido através da linguagem e da cultura (ver The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind  (1976)).

  • O principal traço da identidade brasileira é a interrogação que ela faz sobre ela mesma, a busca da identidade nacional é um desespero brasileiro – a busca de uma identidade inexistência. Busca-se algo no africanismo, mas este corresponde apenas a uma parcela da população; ao passo que há muito se rompeu com a cultura portuguesa.

  • A história da ordem voegeliana é paralela a história da consciência lavelliana.

  • O laicismo não é o modelo de ordem, ele é a supressão do elemento ordenador. A civilização leiga só serve para destruir a si mesma, ela é apenas um mandato tampão entre duas civilizações religiosas.

  • Na perspectiva cristã, o retorno do Cristo e o Juízo Final não são acontecimentos da ordem histórica, são literalmente o fim da história – o fim desta humanidade, e a inauguração de uma outra humanidade. Como diz a Bíblia: nova céu e nova terra. Porém, no judaísmo há a promessa de posse desta terra para aquele povo, i.e. uma transformação de perspectiva histórica. O apocalipse histórico é uma ideia judaica, mas se aplica somente àquela nação judaica. Como é que esta ideia foi ampliada do contexto judaico para abranger o mundo? Como é que a humanidade inteira, de repente, se torna o objeto da promessa judaica? Houve uma espécie de judaização da perspectiva da apocalíptica cristã. Estas transformações ainda carecem de explicação.

  • A Teologia da Libertação não é um movimento para recristianizar um movimento revolucionário, mas sim transformá-lo em instrumento revolucionário – uma igreja esvaziada do seu sentido para propagar as ideias revolucionárias (conforme prescrito por Antonio Gramsci).

  • Só a iniciativa privada é a única capaz de criar riqueza, as outras alternativas só administram; e o governo só serve para tirar dinheiro dos outros.

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