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Sobre a ProvidĂȘncia Divina de SĂȘneca

  • Foto do escritor: Cultura Animi
    Cultura Animi
  • 4 de nov. de 2024
  • 5 min de leitura
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“ Calamitas virtutis occasio est.” (“O desastre Ă© uma oportunidade para a virtude.”) – SĂȘneca



Todas as coisas devem começar com Deus. Deus existe? Sim, diz SĂȘneca. Deus existe e a prova de sua existĂȘncia Ă© a prĂłpria natureza. A revolução das estrelas, o surgimento das estaçÔes, a prĂłpria marĂ© que sobe e desce, estes sĂŁo testemunhos duradouros da perfeição de Deus. NĂŁo sĂŁo acidentes aleatĂłrios. SĂŁo a prova de que Deus existe e que Deus Ă© bom. AtĂ© mesmo os terremotos e as erupçÔes vulcĂąnicas, que podem parecer malignos, tĂȘm seu propĂłsito na mente de Deus. EntĂŁo Deus Ă© sĂł bondade.Ele Ă© onisciente.


E Deus revelou Ă  raça humana a razĂŁo e a perfeição da sua criação e as leis que se aplicam a ela. E estas leis, estas leis da natureza ou lei natural, estabeleceram tambĂ©m para toda a raça humana um cĂłdigo de comportamento. É uma crença no certo e no errado absoluto, de que algumas coisas estĂŁo certas em todos os lugares e em todos os tempos e algumas coisas estĂŁo erradas em todos os lugares e em todos os tempos.


E que Deus criou o universo para testemunhar esta lei natural. Agora, se Deus Ă© bom, perguntou SĂȘneca, como pode acontecer o mal? Por que o mal existe? SĂȘneca diz, primeiro, erramos ao classificar algo como mau. Se vocĂȘ Ă© realmente uma boa pessoa, e Ă© testado pelo mal, por uma doença que vocĂȘ nĂŁo consegue explicar, pela perda de um ente querido, pela perda de um emprego. Primeiro, SĂȘneca diz que Ă© porque Deus estĂĄ testando vocĂȘ. Um bom pai, acredita SĂȘneca, nunca seria indulgente com os filhos e, quanto mais amar um filho, mais severo ele serĂĄ. EntĂŁo Deus colocou essa adversidade sobre vocĂȘ, sabendo que vocĂȘ deveria ser forte o suficiente para suportĂĄ-la e superar isso.


E em segundo lugar, pessoas mĂĄs, eventos malignos nunca poderĂŁo prejudicĂĄ-lo. Eles podem matĂĄ-lo, mas o mal nunca poderĂĄ prejudicar a pessoa verdadeiramente boa. Como pode ser isso? Pense em SĂłcrates. A frase remonta a ele em seu leito de morte: “Meus acusadores, Ânito e MĂ©leto, que me acusaram e me condenaram por traição podem me matar. Eles podem me forçar a cometer suicĂ­dio, mas nunca poderĂŁo me prejudicar. A Ășnica maneira pela qual eles poderiam me prejudicar Ă© obrigando-me a cometer uma ação errada. Em outras palavras, me fazer odiĂĄ-los pelo que fizeram comigo. Apenas tenho controle sobre minha mente, os pensamentos que tomo com essa mente e as açÔes que realizo com base nesses pensamentos. E a minha mente, mesmo que eu esteja condenado Ă  morte, Ă© livre. E os pensamentos que tenho com essa mente nunca poderĂŁo ser controlados por meus algozes. E, em Ășltima anĂĄlise, as açÔes que tomo, seja para odiĂĄ-los ou nĂŁo, pertencem apenas a mim. E enquanto eu disser que nunca retribuirei o mal com o mal, mas apenas com o bem, entĂŁo nĂŁo fui conquistado por eles.”


SĂȘneca tambĂ©m apresenta um exemplo romano: Marco PĂłrcio CatĂŁo ou CatĂŁo, o Velho (234 – 149 a.C.). Quando JĂșlio CĂ©sar conquistou suas grandes vitĂłrias, quase todos os romanos que se opuseram a ele passaram para o lado de CĂ©sar. Diziam aceitaram o governo do ditador pelo bem maior de Roma. Aceitaram a clemĂȘncia do ditador CĂ©sar. Apenas Marco PĂłrcio CatĂŁo recusou.


CĂ©sar ofereceu-lhe dinheiro. CĂ©sar ofereceu-lhe poder no novo governo. E CatĂŁo viu o seu exĂ©rcito ser derrotado, a terra controlada por CĂ©sar, o mar controlado por CĂ©sar, atĂ© a pequena cidade de Útica, no Norte de África, onde CatĂŁo se refugiara, atĂ© os seus portĂ”es eram controlados por CĂ©sar. CatĂŁo sabia que lhe restava uma opção e essa Ă© a opção que sempre resta a um homem bom no pensamento estoico: o suicĂ­dio. SĂłcrates ensinou que o suicĂ­dio era errado, que Deus lhe deu a vida e que vocĂȘ nĂŁo deveria tirĂĄ-la, mas essa nĂŁo era a visĂŁo estoica. Para os estoicos, quando a vida se torna insuportĂĄvel, vocĂȘ acaba com ela.E a morte era muito melhor do que a subjugação a uma tirania. TĂŁo grande que Cato se esfaqueou. E quando a facada nĂŁo funcionou, ele arrancou os prĂłprios intestinos. E CatĂŁo morreu. E enquanto o mundo pertencia a CĂ©sar, CatĂŁo pertencia a Deus, Quem foi mais nobre?



Nada realmente ruim pode acontecer ao homem bom (sĂĄbio), pois os opostos nĂŁo podem se misturar. O que parece adversidade Ă©, na verdade, um meio pelo qual o homem exerce suas virtudes. Como tal, ele pode sair da provação mais forte do que antes. Mau para o sĂĄbio seria ter maus pensamentos, cometer crimes, desejar dinheiro ou fama – o sĂĄbio jĂĄ tem todo o bem possĂ­vel, o restante Ă© indiferente.

O homem verdadeiramente bom (sĂĄbio) nunca poderĂĄ se render diante dos infortĂșnios, mas sempre os superarĂĄ e mesmo que caia, continuarĂĄ lutando de joelhos. O homem sĂĄbio entende o destino e seu desĂ­gnio e, portanto, nĂŁo tem nada a temer do futuro. Ele tambĂ©m nĂŁo espera nada, porque jĂĄ tem tudo o que precisa: sua conduta virtuosa – os Ășnicos bens verdadeiros sĂŁo os interiores, permanentes, e invulnerĂĄveis frente ao destino (Fortuna).





Notas


  • LĂșcio Aneu SĂȘneca (4 a.C. - 65) nasceu me CĂłrdoba, entĂŁo integrante do ImpĂ©rio Romano.

  • FilĂłsofo estoico, dramaturgo (suas tragĂ©dias inspiraram Shakespeare), e polĂ­tico romano.

  • JĂĄ idoso, rico, em seu exĂ­lio autoimposto, SĂȘneca escreveu uma sĂ©rie de diĂĄlogos filosĂłficos nos quais regressou ao caminho (estoico) que outrora sabia que deveria seguir e que havia deixado de lado pelo poder. Sobre a ProvidĂȘncia Divina, um ensaio em forma de diĂĄlogo em seis breves seçÔes, foi escrito nos Ășltimos anos de sua vida. O tĂ­tulo completo da obra Ă© “Quare bonis viris multa mala accidant, cum sit providentia” (“Por que infortĂșnios atingem os homens de bem, mesmo existindo a providĂȘncia?”). Este tĂ­tulo mais longo reflete o verdadeiro tema do ensaio, que nĂŁo se preocupa tanto com a providĂȘncia, mas com a teodiceia.

  • A ProvidĂȘncia designa a ação no mundo de uma vontade externa (nĂŁo humana, transcendente), levando os eventos a um fim. Referida como providĂȘncia divina Ă© um termo teolĂłgico que se refere a um poder supremo, superintendĂȘncia, ou agĂȘncia de Deus ou alguma divindade sobre eventos. Durante a Antiguidade, os debates filosĂłficos opuseram os epicuristas, segundo os quais a origem e a evolução do universo sĂŁo precisamente apenas uma questĂŁo de acaso, e os estoicos neoplatonistas, para os quais – pelo contrĂĄrio –elas resultam da vontade de um Criador ou mesmo da ação da natureza/universo (Logos para os estoicos).

  • Teodiceia Ă© um termo derivado do tĂ­tulo da obra Ensaio de Teodiceia do filĂłsofo alemĂŁo Leibniz, que justifica a existĂȘncia de Deus a partir da discussĂŁo do problema da existĂȘncia do mal e de sua relação com a bondade de Deus.

  • As imperfeiçÔes do mundo, incluindo o mal, sĂŁo um ato de bondade de Deus, pois se este mundo em que vivemos fosse perfeito ele seria Deus e deixaria de existir.

  • O pensamento de SĂȘneca opĂ”e-se a moderna Ă©tica situacional que relativiza as decisĂ”es morais ao contexto em que sĂŁo tomadas.

  • Um grande livro aborda um grande tema (aborda questĂ”es que refletem em como devemos viver e nos ajudam a tomar decisĂ”es morais), Ă© escrito em linguagem nobre (que elevam nossa alma) e fala atravĂ©s dos tempos (liçÔes do passado que perduram ao longo dos tempos) – informação e conhecimento que nos tornam mais sĂĄbios. Acima de tudo, um grande livro fala a cada um de nĂłs como indivĂ­duo (liçÔes de vida que incorporamos e aplicamos em nossa vida).

©2019 by Cultura Animi

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