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As Peças Bolingbroke de William Shakespeare



Personagens Principais Ricardo II – rei da Inglaterra Brolingbroke (Henrique IV) – primo de Ricardo II, usurpa seu trono Henrique (Henrique V) – príncipe Hal, filho de Brolingbroke

Personagens Secundárias John Falstaff – tentador de Henrique V João de Gaunt – duque de Lencaster, pai de Brolingbroke Edmundo de Langley – duque de York, tio de Ricardo II Tomás Mowbray – duque de Norfolk Henrique Percy (Hotspur) – filho do conde de Northumerland Bardolfo, Poins, Pistola – membros do grupo de Falstaff Carlos VI – rei da França Luís – Delfim, filho de Carlos VI Catarina – filha de Carlos VI

Interpretação Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome dai a glória, pela vossa misericórdia e pela vossa fidelidade.” – Salmos 113B (1)


Conjunto de quatro peças sequenciais: Ricardo II, Henrique IV (1ª e 2ª partes) e Henrique V. Cada peça remete às suas antecessoras, mas a unidade resultante não assegura que tenha sido assim planejado de antemão.


Segundo a narrativa, um rei legítimo pode ser cruel e inescrupuloso e, mesmo assim, continuar rei. Porém um rei fraco ou incompetente criará um vácuo de poder na sociedade, pois a ordem da natureza e a vontade de Deus exigem um governante forte e centralizador. O dilema entre um impotente rei le jure e um poder de facto é o tema central de Ricardo II.


Os seguidos erros do incompetente Ricardo, o Inaconselhável, levam a tal estado de desmoralização a nação que um poder de facto começa a se criar em torno de Bolingbroke. Este acaba por tomar seu lugar – o rei de facto torna-se o rei de jure – em torno de discussões sobre traição, sacrilégio e legitimidade, com ambos os lados da questão apresentando argumentos convincentes.


Porém o modo pelo qual o trono foi alcançado joga uma maldição sobre a Casa de Lancaster que se fará sentir no futuro, após a morte de Henrique V. Maldição que quiçá poderia ser evitada caso Brolingbroke (já Henrique IV) tivesse partido para as Cruzadas, pois matar mulçumanos é uma atitude tão louvável que apagaria os pecados anteriores.


Shakespeare não está interessado na História, mas sim nas ações individuais e suas interações sociais, e particularmente na atuação do líder da sociedade (rei).


Henrique IV será um rei melhor que Ricardo II, e um líder bem-sucedido não se prende a costumes morais. Sua reputação é mais importante que a veracidade de suas qualidades – assim como no teatro, a ilusão é a realidade.


Uma das habilidades percebidas por Henrique IV para ser um bom líder é a inescrutabilidade, fazer crer que há muito não revelado por trás de cada decisão. E atrai lealdade e confiança o rei que consegue demonstrar que não necessita disto. O rei ainda deve sempre aparecer pouco em público, e de forma prudente.


Mas Henrique IV colherá os amargos frutos do doloroso processo de destituição de um rei legítimo. Ele tenta em vão partir para as Cruzadas como forma de unir a nação, mas a desunião ainda paira sobre o país em que todos conspiram, há risco de divisão territorial do reino.


A notícia do fim da guerra civil traz uma agonia mortal a Henrique IV: o fim daquela luta representa espiritualmente que a batalha do peregrino também chegou a seu final, a velha alma está madura e pronta para morrer, a fim de que uma nova alma possa nascer. E ele aguardará o retorno do filho pródigo para enfim morrer. O encontro de pai e filho, e morte do primeiro, se dão, não por acaso, na sala Jerusalém do palácio de Westminster.


O príncipe Hal, futuro Henrique V, é irresponsável e bon vivant. Mas em Henrique V se transformará em um rei pio, sábio e capaz (vitória sobre si mesmo – a rejeição de Falstaff simboliza a morte do dragão), levando a Inglaterra a grande vitória sobre os franceses em Azincourt. E este é o grande tema moral destas peças: como um príncipe estouvado transforma-se no rei ideal, ou num sentido mais profundo, o processo alquímico de renascimento do espírito do velho rei (Henrique IV) na pessoa do novo soberano (Henrique V) – o retorno do filho pródigo purificará os erros, a consagração de Henrique V aniquila suas falhas passadas e o estigma da coroa usurpada.


 

Notas

  • William Shakespeare (1564-1616) em Stratford-upon-Avon, Inglaterra. Era católico num mundo protestante.

  • Shakespeare escrevia, dirigia, produzia e atuava em suas peças. Deixou-nos a maior obra teatral do mundo moderno.

  • As peças Bolingbroke se passam no período 1377-1422, assim dividida entre os reinados de: Ricardo I (1377-1399), Henrique IV (1399-1413) e Henrique V (1413-1422).

  • “Ungido por Deus” é uma expressão da Bíblia. A palavra hebraica “Messias” significa “aquele que foi ungido”. Jesus Cristo era considerado o rei do mundo espiritual e os monarcas legítimos no mundo material eram seus dirigentes. Os erros de um monarca não seriam dele e sim dos súditos, que teriam que pagar por seus pecados.

  • Na Idade Média o poder efetivo era detido pelas grandes casas baroniais, podiam recrutar exércitos e defenderem-se em sólidos castelos. Um rei medieval tinha uma supremacia teórica, mas nem sempre de fato.

  • O assassinato de Abel por seu irmão (Caim) é o arquétipo de todas as guerras civis que se sucedem.

  • Toda queda de um governante consagrado reproduz a queda original do homem.

  • O rei tem dois corpos: (1) corpo individual como homem, e (2) aspecto simbólico de corpo da nação em forma de indivíduo. Quanto mais forte o rei for como indivíduo (1) e habilidade tiver, mais se aproximará de (2), e melhor será para ele e a sociedade. Mas (1) menos (2) não é nada. As expressões “tudo” e “nada” são recorrentes na cena de abdicação, e aparecerão muitas vezes até Rei Lear.

  • Coragem é virtude fundamental num rei, e a coragem é o meio-termo entre a covardia e a imprudência/temeridade (Aristóteles: virtude é um meio-termo entre dois extremos).

  • Em Henrique V o bardo faz verdadeira loa patriótica aos seus conterrâneos.

  • Henrique V em discurso para elevar a moral de seus súditos diante de uma batalha aparentemente impossível de vencer: This story shall the good man teach his son And Crispin Crispian should ne’er go by, From this day to the ending of the world, But we in it shall be remembered– We few, we happy few, we band of brothers; For he today that sheds his blood with me Shall be my brother; be he ne’er so vil, This day shall gentle his condition; And gentleman in England, now a-bed, Shall think themselves accurs’d they were not here; And hold their manhoods cheap while any speaks That fought with us upon Saint Crispin’s day.

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