Lutero, padre agostiniano, rebelou-se contra a igreja católica e criou uma vertente baseada na predestinação. Santo Agostinho explicava a predestinação dizendo: “Alegrai-vos, um dos ladrões se salvou. Não os entusiasmeis, porque o outro não.” A doutrina da predestinação pressupõe que o homem caído, após o pecado original, não tem capacidade ou energia pessoal para produzir a própria salvação – ele só será salvo se houver um ato de generosidade divino.
A vida dos que pensam assim pode ser piedosa e meritória, mas é uma vida triste, pontuada por uma nostalgia da salvação que pode não acontecer. O luteranismo desenvolveu hábitos tão sombrios dentro dessa certeza da impossibilidade da salvação que foi preciso criar outro movimento dentro do próprio luteranismo chamado de Pietismo. Philip Jacob Spener, seu criador, promovia reuniões religiosas em sua casa em que pregava seus sermões, expondo passagens do Novo Testamento e induzindo os presentes a participar na discussão de questões religiosas. Era uma maneira de abrandar a tristeza profunda.
A vida do luterano é a vida daqueles habitantes da aldeia de pescadores no filme. Não pode beber, nem ouvir música, não pode nada. É como trabalhar num ambiente tirânico onde o que você faz é simplesmente não fazer nada que possa parecer errado. Se rir pode parecer errado, então você não ri. Há algo de antinatural numa vida assim, pois está desconectado da natureza humana, da estrutura da realidade. E por isso tende a se esgarçar como estava acontecendo com aquele grupo antes daquela celebração. E o banquete oferecido por Babette é tamanho ato de amor, sacrifício e gratidão que resgatará a espiritualidade perdida naquela comunidade – a ordem e a luz transformam a matéria (o menu servido) num ato de comunhão e aproximação com Deus (houve uma mudança da ênfase na repressão interior luterana para o amor ao próximo católico).
O filme transcende a forma popular de enquadrar o debate sobre o apetite que opõe um puritanismo repressivo a uma celebração da indulgência do desejo desenfreado. Se as opiniões religiosas desta comunidade são, em muitos aspectos, superficiais e repressivas, a correção do filme não consiste num repúdio à religião como sendo opressiva. Em vez disso, o filme deixa claro que os bens corporais e os prazeres sensíveis, quando legítimos, podem ser veículos para a manifestação da graça, e ocasião de transformação comunitária.
Com sua pureza espiritual as duas irmãs tocam os forasteiros com quem interagem. O general e o cantor de ópera repensam suas vidas mesmo que muitos anos após o contato com elas. E a então desesperada Babette passa a viver uma vida espiritual no trabalho (santificar o trabalho) até seu ato final (banquete) de pura entrega. A bondade ilimitada das irmãs, a conversão final do general e a transformação de Babette são comoventes e sublimes.
Filme Nota 5 (escala de 1 a 5)