Um Homem Bom É Difícil de Encontrar de Flannery O'Connor
- Cultura Animi
- 15 de out.
- 4 min de leitura

“All human nature vigorously resists grace because grace changes us and the change is painful.” – Flannery O'Connor
Personagens Avó – protagonista, egocêntrica, manipuladora, nostálgica Desajustado – condenado fugitivo, niilista Bailey e esposa – filho e nora da Avó, medíocres e distantes emocionalmente John Wesley e June Star – filhos de Bailey, desrespeitosos e superficiais Pitty Sing – gato da Avó, catalisador cômico Hiram e Bobby Lee – cúmplices do Desajustado, agentes de destruição
Interpretação Um Homem Bom É Difícil de Encontrar é o mais conhecido e representativo conto de Flannery O'Connor, e considerado um dos maiores contos da literatura americana. Este conto é uma alegoria anagógica.
As personagens são arquétipos do vazio espiritual, o comportamento e as conversas da família reforçam a banalidade de um mundo destituído do senso de transcendência. A viagem de carro, ordinária e previsível, desvia para uma rota de terra (desvio ao pecado) até o acidente no bosque (umbral entre o mundo físico e o espiritual) e o encontro com os bandidos (instrumentos da revelação) – a viagem revela-se uma jornada em direção ao Julgamento, uma peregrinação em direção à Graça.
A avó depara-se com o Desajustado e será despida de sua vaidade (perdeu o chapéu) e cegueira espiritual. No momento derradeiro a avó toca no ombro dele e diz "Mas você é uma das minhas crianças, um dos meus filhinhos" reconhecendo sua humanidade compartida, i.e. a compaixão cristã – tanto que ao toque da avó o Desajustado "deu um pula para trás, como se uma cobra o houvesse picado", a graça experimentada como dor por um coração endurecido contra ela.
Antes de morrer a avó teve uma visão divina, ela vê que até o pior pecador participa da mesma condição humana e espiritual, num puro ato de amor ágape, que ocorre no momento em que todas as ilusões são destruídas: "olharam para a avó lá embaixo, meio sentada, meio deitada numa poça de sangue, com as pernas cruzadas sob o corpo, como pernas de criança, e o rosto rindo para o alto, para o céu sem nuvens."
Ser “um homem bom” não está relacionada à polidez ou decência social, mas sim aquele que foi arrebatado pela graça, que enfrentou a realidade do pecado e a possibilidade de redenção. A bondade não se restringe a perfeição moral ou boas maneiras, sua essência está na autenticidade espiritual, no reconhecimento do pecado e da necessidade do perdão divino.
Para Flannery O’Connor, somos bons não pelo comportamento, mas pela conversão – por sermos abalados ao enxergar a realidade.
A autora resgata a tradição agostiniana onde a criação é uma manifestação exterior de modelos eternos que existem na mente divina. Os anjos, por exemplo, conhecem todas as coisas diretamente em Deus por meio do Verbo, enquanto o mundo material reflete esses modelos materialmente no tempo. Esta concepção agostiniana sacramental da realidade permitiu que ela sempre visse a realidade como algo fundamentalmente bom, mesmo quando a realidade é marcada pelo mal ou pelo erro (como no assassinato de toda aquela família) – o mal não como essência, mas uma distorção da bondade original, uma força destrutiva necessária para nossa própria liberdade.
Vivemos uma curiosa dicotomia com a sociedade apegada à cultura da morte e fascinada pela violência e, simultaneamente, determinada a evitar qualquer confronto sério com a finitude. E O'Connor usava o grotesco para despertar estas consciências entorpecidas. Uma opção estética e teológica para conseguir chegar a esta sociedade que perdeu o sentido do pecado e domesticou o desespero, transformando-o em patologia. Ela queria perturbar a falsa paz, desmascarar a aparente normalidade deste mundo caído, e apontar para a possibilidade de redenção – aprender a reconhecer o mal e ansiar pela redenção.
Flannery O'Connor usava arte como veículo da verdade transcendente mesmo numa época marcada pelo ceticismo e pelo niilismo – fé e estilo se fundindo numa visão tragicômica da existência. Um mergulho na concretude do mundo, lá encontrado os traços da presença divina.
A obra de O'Connor não busca doutrinar ninguém, mas revelar o drama humano na sua dimensão última: a salvação ou perdição da alma. Temática universal perene que ressoa na vida de leitores de qualquer época ou cultura.
Notas
Flannery O'Connor (1925-1964) nasceu em Savannah, Georgia, USA.
Escritora e ensaísta católica, mestre na arte do conto, resistiu como força e clareza à dissolução do sagrado, desmascarando tanto o sentimentalismo religioso quanto o niilismo do nosso tempo; retratando as mais profundas tensões do espírito moderno diante da graça divina.
Diagnosticada aos 25 anos, Flannery O'Connors travou uma longa e dolorosa batalha com o lúpus eritematoso sistêmico, falecendo aos 39 anos de idade.
Sua capacidade de ver o transcendente através do imanente, sem jamais reduzir um ao outro, a coloca na linhagem dos grandes escritores sacramentais.
O conto Um Homem Bom É Difícil de Encontrar faz parte da coletânea homônima publicada em 1955.
A narrativa se desenvolve nos anos 1950 na zona rural do estado da Georgia.
Outras obras de destaque da autora incluem a novela Wise Blood (1952) e a coletânea de cartas The Habit of Being: Letters of Flannery O’Connor (1979 – póstumo).
A palavra “agápē” vem do grego (ἀγάπη), significando o amor espiritual, divino (incondicional, gratuito, voltado ao bem do outro). No cristianismo, ágape é o amor de Deus pelos seres humanos, o amor que o cristão é chamado a imitar: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos.” — (João 15:13). É um amor (a) sacrificial — envolve entrega e perdão, (b) universal — não depende de simpatia, mérito ou afinidade, e (c) transformador — busca o bem espiritual do outro, mesmo do inimigo.