Tal qual Tolkien em O Senhor dos Anéis, os realizadores de Passengers fizeram um filme eminentemente cristão sem mencionar Deus uma única vez. Já temos um indício disto na velada loa ao casamento. Jim e Aurora aceitam-se livremente, duas almas (literalmente) náufragas no devir que se ajudam mutualmente – que mais se pode querer da uma união?
A presença da Providência também é muito clara: a nave estava condenada e o mesmo problema que a destruiria provoca o despertar involuntário de três pessoas, conta exata para salvar a vida de todos os demais passageiros e tripulantes. Mas é na forma como Jim lida com sua culpa que está a principal mensagem do filme.
Jim errou ao tirar Aurora do seu estado de hibernação. Seu sofrimento não justifica afetar daquela forma a vida de outra pessoa. Não há desculpa para isso. Ele precisará arrepender-se e redimir-se deste ato. O arrependimento real só vem depois que Aurora descobre seu crime e ele se entrega sem resistência a sua violência: ele aceita as consequências do seu erro. A redenção começa com o sacrifício de sua vida para salvar a nave e completa-se ao encontrar uma forma de Aurora hibernar novamente. Melhor ainda seria se Jim tivesse confessado a Aurora antes que ela descobrisse seu ato nefasto.
O sentimento de culpa é uma benção, é o equivalente psicológico da dor física – é a dor moral. Síndrome de Riley-Day é uma desordem do sistema nervoso que torna o paciente insensível à dor física, e ele normalmente padece antes de completar 30 anos de idade em algum acidente. Ausência de culpa também é uma doença, uma doença da alma: psicopatia. Tão importante quando sentir culpa é o que fazer com ela. O arrependimento é a única via legítima: assumir seus atos e aceitar as consequências, deixando o julgamento final nas mãos de Deus. A confissão dos pecados na religião católica significa perdão dos pecados. Porém, a pessoa não está isenta das culpas civis, a justiça humana continua valendo e o arrependido deve encará-la.
Mas há duas outras formas de lidar com a culpa, ambas ilegítimas. Uma delas é exemplarmente demonstrada no filme Manchester by the Sea, onde a personagem Lee Chandler não consegue deixar de atormentar-se pela culpa no erro que provocou a morte de suas filhas – é a via do remorso. A palavra vem do latim remordere, ‘tornar a morder’ a si mesmo. Na mitologia grega as Erínias (Alecto, Tisífone e Megera) não deixavam o criminoso esquecer seu erro, representando o remorso. E na trilogia trágica Oréstia de Ésquilo vemos as três sinistras deusas transformarem-se nas Eumênides (as ‘Benevolentes’) no julgamento de Orestes, simbolizando a transformação alquímica do remorso em arrependimento. Não há vida no remorso. Nossos erros nunca morrem, mas como Héracles fez com a cabeça imortal da Hidra, uma vez arrependido, é preciso enterrar o erro e colocar uma pedra encima. Os gregos nos ensinaram isto há mais de dois milênios, mas Lee Chandler não aprendeu a lição, desperdiçando a chance de viver autenticamente e fazer o bem aos mais próximos.
A terceira via de lidar com a culpa, ainda mais ilegítima que o remorso, é o escapismo. É o caminho adotado pela personagem-título interpretada por Cate Blanchett no filme Blue Jasmine. Ela mente para si mesma inventando uma pessoa que ela não é. Fingiu desconhecer as atividades criminosas do marido enquanto foram casados e esquece ter sido a responsável por sua prisão, acreditando não ter sido ela quem cometeu o ato culposo. Patologicamente age como Dr. Jekyll que foge de sua culpa criando Mr. Hyde. Incapaz de sustentar seu Mr. Hyde, Jasmine, ou melhor Jeanette, isola-se do mundo exterior, que lhe nega a fantasia, e mergulha em sua própria loucura, perdendo a consciência do próprio ego.
A literatura ainda nos brinda com dois outros exemplos de escapismo. O primeiro é projetar que não existem códigos morais que criminalizem o ato culposo. É o que faz a personagem Mensor de O Estrangeiro de Albert Camus, para quem não existiam códigos morais. E o outro exemplo vem do inesquecível Raskolnicoff em Crime e Castigo de Dostoiévski, que acreditava ser um ser especial, imbuído de uma grande missão, e que, portanto, poderia fazer coisas negadas aos demais – é a mentalidade do revolucionário.