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O relativismo e seus frutos amargos

“ […] veritas est adaequatio rei et intellectus;” – São Tómas de Aquino (De Veritate)


O atual processo de desumanização envereda pelo afastamento da busca do Belo (atingir a Verdade conforme o processo), Bom (atingir a Verdade correspondente ao correto desejo) e Verdadeiro (a equiparação do pensamento à realidade). A essência humana, a virtude da alma racional (exclusividade humana – areté humana) é a busca da verdade – fundamento e inspiração da existência humana.


O relativismo, negando o conhecimento objetivo, nasce com o nominalismo de Guilherme de Ockham (1280-1349) que afirmava serem os universais (termos gerais, predicados de diferentes sujeitos) apenas nomes (daí o termo nominalismo) que designariam coisas semelhantes que existem apenas individualmente (e.g. homem (termo universal) não existe, apenas os seres homens individualmente). Isto fez com que os termos universais fossem rebaixados a meros nomes servidores de nossa conveniência. No final das contas, o problema em questão é se há uma fonte de verdade superior e independente do homem; e a resposta a essa questão é decisiva para a concepção que se tenha da natureza e do destino da humanidade. O nominalismo nega a existência de uma natureza comum a seres designados pela mesma essência, sendo, portanto, inviável ser a ética fundada na natureza humana, ficando ao arbítrio legislativo. O resultado prático da filosofia nominalista é o banimento da realidade percebida pelo intelecto e o postular como realidade aquilo que é percebido pelos sentidos. Com essa mudança na afirmação do que é real, toda a orientação da cultura é alterada, caminhando-se ao empirismo moderno.


O relativismo ganha novo impulso com racionalismo de René Descartes (1596-1650). Com a expressão “penso, logo existo” o conhecimento perde relação com o mundo exterior, passando a ser auto referencial - as “ideias claras e distintas” são extraídas do próprio pensar lógico a partir do autoconhecimento.


Tal imanetismo alcança novo patamar com o idealismo de Emanuel Kant (1724-1804) que abandona o realismo aristotélico (a verdade fundada na realidade das coisas) propondo que os objetos sejam regulados pelo conhecimento. Kant critica a “razão pura”, que seria a realidade das coisas, por não abarcar o intangível (e.g. Deus, alma, mundo), impondo-o como premissas da “razão prática” (regulada pelo conhecimento). Assim, como no nominalismo de Ockham, a ética é arbitrária, imposta por Deus ou pelo Poder, demandando obediência como “imperativo categórico” – daí o ódio do Poder à religião ou qualquer noção de transcendência, buscando a exclusividade no ditame ético.


Essas são as raízes do moderno relativismo moral: nominalismo de Ockham, racionalismo cartesiano, e idealismo kantiano. A ética das virtudes, proposta por Aristóteles, é substituída pela ética dos deveres de Kant. A liberdade de qualidade, explanada por Aristóteles, definida como autodeterminação para o bem, é substituída pela liberdade de indiferença, de simples escolha entre o bem e o mal, onde os conceitos de bem e mal são relativos, já que seria impossível conhecer a essência das coisas e muito menos valorá-las adequadamente.


Não havendo uma Verdade a conhecer e um Bem a se buscar, mas apenas opiniões as mais díspares possíveis e paradigmas comportamentais os mais extravagantes imagináveis, a pessoa já não distingue o certo do errado, deixando-se levar pelo que lhe é martelado como o melhor pelo Poder ou pelos meios de comunicação social. Essa é a verdadeira alienação do indivíduo, quando, por medo ou comodismo, renuncia a indagar sobre como deve agir em consciência, para seguir os modismos de plantão – tornando-se um patético “homem do seu tempo”.


Este relativismo ressoa em diferentes correntes de pensamento como o socialismo de Karl Marx (1818-1883), o positivismo jurídico de Hasn Kelsen (1881-1973) e o presente neoconstitucionalismo impulsionado, principalmente, por Robert Alexy (1945) e Ronald Dworkin (1931-2013).


Em Teses sobre Feuerbach (1845), Marx parte da filosofia especulativa cartesiana para propor que se “até hoje os filósofos se limitaram a interpretar o mundo; agora se trata de transformá-lo.” O conhecimento da realidade deixa de ter importância, trocada pela transformação naquilo que o marxismo propõe, ou seja, ateísmo ("a religião é o ópio do povo"), conflito ("a luta de classes é o motor da história") e reducionismo (tudo é determinado pela infraestrutura econômica e o que se paga ao capital é a "mais valia" que se tira do trabalhador, conforme exposto em O Capital) – ideário que tanto morte provocou, infligida por regimes totalitários contra sua própria população (e.g. URSS, China, Coreia do Norte, Vietnã, Camboja, Cuba, Venezuela, Nicarágua).


O socialismo nazista inspirou-se no positivismo de Kelsen (que coloca a letra fria da lei acima de tudo) conforme visto no julgamento de Nuremberg quando juízes alemães justificaram as decisões em que condenaram milhares de judeus aos campos de concentração dizendo que apenas cumpriram as leis de seu país, votadas pelo Reichstag eleito pelo povo, sem se perquirir sobre a justiça das mesmas ou seu desalinho patente com o direito natural que decorrem diretamente da natureza humana (vida, liberdade, igualdade, propriedade) – novamente o Poder (legislador) acima de Deus, as pulsões sobrepondo as virtudes.


O neoconstitucionalismo vai além do positivismo jurídico no distanciamento do direito natural e exacerba a insegurança jurídica ao colocar a visão do juiz acima do legislador na interpretação das leis, substituindo a vontade dos representantes eleitos do povo pela vontade de técnicos sem representatividade popular – é o aberrante ativismo judiciário em que o juiz se enxerga acima da sociedade e acima de Deus (ver STF é o pior inimigo do Brasil). A Constituição deixa de explicitar os direitos e garantias individuais e estruturar a organização do Estado, não mais preservando os valores, ideais e princípios elegidos pela sociedade politicamente organizada, através de seus representantes eleitos.


Os fatos dão lugar às versões, a realidade é substituída por narrativas, e quem tiver mais poder imporá sua narrativa sobre a sociedade. A destruição dos conceitos de Verdade e de Bem é passo decisivo na construção de uma sociedade absolutamente manipulável por quem deseja estabelecer-se com poder absoluto.


Daí advém a loucura hodierna onde atropela-se o conceito natural de matrimônio e família, se cerceia a liberdade de expressão em nome da democracia, onde o próprio sexo seria uma questão de opção e assassinar um bebê intrauterino seria um direito. Tudo deve ser engolido e tolerado, menos quem defenda a existência de uma verdade a ser conhecida. E o único preconceito aceitável agora são aos valores e crenças cristãs.


 

Os gregos definiam como apeirokalia a “falta de experiência das coisas mais belas”. Sofre de apeirokalia o indivíduo que foi privado, durante a sua formação, de certas experiências interiores que despertassem a ânsia do belo, do bem e do verdadeiro – este indivíduo então jamais poderia compreender as conversações dos sábios, por mais que se adestrasse nas ciências, nas letras e na retórica. Para Platão esse homem seria o prisioneiro da caverna. Aristóteles, em linguagem mais técnica, dizia que os ritos não têm por finalidade transmitir aos homens um ensinamento definido, mas deixar em suas almas uma profunda impressão – essas impressões profundas exercem na alma um impacto iluminante e estruturador. Na ausência delas, a inteligência fica patinando em falso sobre a multidão dos dados sensíveis, sem captar neles o nexo simbólico que, fazendo a ponte entre as abstrações e a realidade, não deixa que nossos raciocínios se dispersem numa combinatória alucinante de silogismos vazios, expressões pedantes da impotência de conhecer.


As experiências interiores a que Aristóteles se refere não são fornecidas apenas pelos “ritos”, no sentido técnico e estrito do termo. O teatro e a poesia também podem abrir as almas a um influxo do alto. À música — a certas músicas — não se pode negar o poder de gerar efeito semelhante. A função das artes em geral, das artes do belo, é mostrar aos homens as forças e fraquezas da alma, com o objetivo de promover a catarse – a verdadeira arte ajuda a sublimar os desejos e elevar o espírito.


Como Verdade e o Bem, também a Beleza (as artes do belo) foi relativizada. A partir do século passado querem expor o feio em vez de redimi-lo pelo belo. As artes são transformadas em ferramentas de reengenharia social e, uma vez ideologizada, qualquer coisa pode ser arte – assume-se que se o mundo é perturbador, a arte também o deveria ser (“mostra o mundo como ele é”).


A arquitetura é reduzida a sua utilidade (“form ever follows function” professou o arquiteto americano Louis Sullivan (1856-1924)). Servindo apenas à ideologia ou à utilidade o artista deixa de atendar as necessidades espirituais e morais. A arte hoje força sobre o homem comportamentos antinaturais ou visões ideologizadas, tenta captar sua atenção sendo ultrajante, controversa, chocante – funciona como um comercial onde o produto à venda não é a obra, mas sim uma ideia política ou o próprio artista.


A beleza em todas as suas formas ameaça o Poder. Desperta no homem paixões que não podem ser governadas por totalitários que temem cidadãos ingovernáveis ​​– paixões pela verdade, pela liberdade, pela grandeza, pela revelação espiritual. A beleza nos liberta e nos amplia. A nossa resposta à arte é simultaneamente pessoal e colectiva – colectiva não no sentido comunista, mas no sentido de nos unificar através da nossa humanidade comum. Este não é o tipo de unidade que o Poder pode controlar, e é por isso que nenhuma arte sob o totalitarismo é aceitável, a não ser a propaganda que exalta os desígnios do Poder.


 

A negação da natureza humana e perda de contato com a realidade exacerba o conflito social. A necessária discussão sobre a natureza dos problemas e suas possíveis soluções, a salutar discussão de ideias, dá lugar a uma polarização irreconciliável, pois não se discutem mais propostas para problemas reais, mas a própria aceitação ou não da realidade – uma questão de manter ou perder a própria sanidade mental (e.g. discussões sobre aceitação da Teoria de Gênero ou do aborto indiscriminado recaem nesta categoria).


A deterioração do ensino, substituído pela doutrinação, agrava o enfrentamento social pois perde-se a herança cultural compartida, o conhecimento gramatical e capacidade retórica para melhor comunicar pensamentos, ideias e testemunhos – prejuízo da capacidade do diálogo produtivo.


A capacidade do pensamento racional e lógico é embaçada com o constante estímulo aos apetites concupiscíveis e irascíveis. A Imaginação usurpa o lugar da Vontade (tendência ao objeto mais apetecível) que indevidamente já ocupara a posição hierárquica da Inteligência (feita para indicar à Vontade o bem que se deve apetecer ou querer) – agora se pensa poder imaginar livremente o que quer e agir livremente segundo esta mesma imaginação (e.g. pessoas que acreditam ser e agem como um cão, ou uma mulher que se diz homem). A consequente perda do controle das paixões afasta o homem da prudência (bom senso para as decisões práticas e morais) e do desenvolvimento da ciência (virtude da inteligência especulativa) visando o alcance da sabedoria, sem a qual o entendimento no seio social tornasse inalcançável.


O multiculturalismo imposto a revelia das sociedades locais destrói o imaginário e costumes compartido por todos, promovendo diferenças conflitantes e fomentando o choque social. O mesmo efeito é visado por leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente e Estatuto da Pessoa Idosa (choque geracional), caracterização de assédio moral (criminalização da autoridade – choque entre patrões e empregados), tipificação do assédio sexual (criminalização do homem heterossexual e infantilização da mulher – choque entre os sexos), ações afirmativas (choque racial), eliminação do pátrio poder (choque familiar), e tantas outras leis similares que permitem ao Poder imiscuir-se em todas as instâncias sociais como a única autoridade legítima.


Abortismo, casamento gay, quotas raciais, desarmamento civil, regulamentos ecológicos draconianos, liberação das drogas, controle estatal da conduta religiosa, redução da idade de consentimento sexual para doze anos ou menos: tais são, entre alguns outros, os ideais que fazem bater mais forte o coração de estudantes, professores, políticos, jornalistas, ongueiros, empresários “esclarecidos” e demais pessoas que monopolizam o debate público. Nenhuma dessas propostas veio do povo. Nenhuma delas tem a sua aprovação. Mas continuarão sendo impostas de cima para baixo, aqui como em outros países, mediante conchavos parlamentares, expedientes administrativos calculados para contornar o debate legislativo, propaganda maciça, boicote e repressão explícita de opiniões adversas, farta distribuição de propinas sob a forma de “verbas de pesquisa” oferecidas a professores e estudantes sob a condição de que cheguem às conclusões politicamente desejadas, e, principalmente, pela atividade criminosa das mais altas cortes de justiça.


Assim o Poder, através das “leis”, das instituições de ensino, da indústria de entretenimento e da mídia, é o grande patrocinador do enfrentamento social, diminuindo a capacidade intelectiva do homem enquanto pespega temas antinaturais, quando não demoníacos, no debate e convívio público. Divide et impera.


 

A sociedade atomiza-se, o indivíduo perde consciência moral e fecham-se em seu grupo, satisfazendo-se em ter “amigos” e distinguir-se dos demais, muitas vezes vistos como concorrentes ou inimigos. Por maior o descalabro cometido, basta o aplauso destes “amigos” para apaziguar qualquer conflito moral que pudesse acometer o indivíduo – a reprovação ou crítica dos “inimigos” são automaticamente descartadas sem qualquer avaliação de mérito.


Na escala da Teoria do Desenvolvimento Moral de Lawrence Kohlberg, os homens encontram-se progressivamente no mais baixo nível da moralidade convencional das relações interpessoais, incapaz de observar sequer que há uma ordem social acima dos grupos, e empenhar-se em obedecer às leis e cumprir suas obrigações.


Onde então os tão necessários homens capazes de sacrificar o ego ao primado das leis do Céu?


 

Notas


  • A discussão sobre o status ontológico dos universais começa com Platão e Aristóteles, e intensifica-se na Idade Média como a questão dos universais. Uma analogia com a prática médica ajuda a entender que ambos, Platão e Aristóteles, tinham razão: o médico não trata o homem genérico mas sim indivíduos concretos, porém a medicina estuda o organismo do homem genericamente e não individualmente.

  • Distinguem os escolásticos o universal reflexum, o universal que é apenas o conteúdo de um conceito, como o universal "sabedoria", que não precisa nem desta nem daquela, pois pode conceituar-se por si mesmo, do universale directum, o correlativo correspondente nos objetos a esse conteúdo, o que é real e, neste caso, será objetivo o conceito ao qual correspondem tais correlativos. Costuma-se também chamar universal reflexum de lógico.

  • Voltaire (1694-1778), expoente do tenebroso Iluminismo, já pregava o relativismo moral em Tratado sobre a Tolerância propondo o dever de se tolerar tudo e todos, menos quem defendesse a existência de uma verdade a ser conhecida, mesmo que quem defenda o realismo respeite quem pense de forma diversa.

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