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O Reino da Quantidade de René Guénon



Solvet saeclum in favilla” – verso do Réquiem


Guénon retoma após quase duas décadas ao tema abordado em A Crise do Mundo Moderno, i.e., a decadência da atual humanidade. Usando a nomenclatura védica, ele aponta estarmos no Kali Yuga (Idade do Ferro na cosmologia grega), última etapa do atual Manvantara e, portanto, próximos do final desta humanidade – sucessão de ciclos análogos à respiração de Deus ou aos movimentos de expansão (diástole) e contração (sístole) no batimento do coração. Ainda na segundo a tradição védica, uma das principais dualidades que estruturam o mudo é a da Qualidade e Quantidade. E no inexorável processo de geração e corrupção as ousias (termo aristotélico para as coisas que são de fato) perdem Qualidade e concentram-se na Quantidade.


Qualidade: forma, essência, ato, ativo, eidos, purusha, nâna Quantidade: matéria, substância, potência, passivo, hilê, prakriti, rûpa eidos + hilê = sínolo (os três níveis de existência da ousia)


As quatro causas para existência de qualquer coisa (ousia em grego): Causa Material: não há coisa que exista sem um substrato material, aquilo do que a coisa é feita (hilêem grego). Só Deus não tem causa material, é pura forma. Para o oriental Deus “é aquele que não é”. A matéria não pode existir sem forma. Causa Formal: é a aparência da coisa (eidos em grego – conceito de “ideia”), é o que faz que ela seja o que é e não outra coisa. Cauda Eficiente (ou Motora): quem fez, criou a coisa. Causa Final: para o que a coisa foi feita, criada.


A Forma subordina a Matéria – o sínolo é definido por eidos (o Ato subordina a Potência).


Há uma queda (visão cristão) ou involução (visão hindu) do polo da Qualidade (Forma) para o polo da Quantidade (Matéria). Os valores das castas mais baixas predominam nas castas mais elevadas – os brâmanes deixam de produzir uma visão espiritual, substituindo-a por uma visão materialista – do plano divino para o plano material. A matéria está associada ao aspecto abissal da natureza humana, e sujeita a pior transformação nos tipos de mudanças aristotélicas, i.e. a corrupção.


Os quatro mudanças de Aristóteles são: Geração e corrupção: Nascer, ganhar e perder a substância. Ganhar e perder a essência. Quando nascemos nos tornamos humanos e quando morremos não somos mais nada. O primeiro tipo de movimento que pode existir é a geração e a corrupção. Alteração: É o esquema associado à qualidade. Você pinta o automóvel de azul ou preto. A qualidade gera um tipo de mudança que é a alteração. Aumento e diminuição: É a mudança associada à quantidade. Translação: É a mudança associada ao movimento. É sair de São Paulo e ir para o Rio de Janeiro.


Não podemos partir da matéria para tentar explicar algo, pois partimos de baixo. Este é o problema da ciência moderna que acaba incapaz de explicar a estrutura da realidade. Não explica nada e diz que tudo que não é sensível não existe. Nega-se todos os milagres, toda a intervenção divina no mundo, todas as coisas que são estranhas como sendo ilusões, ou trapaças, coisas que não existem ou nunca existirão.


Não há matéria inerte, sem qualificação, tudo foi de certa forma tocado pela Qualidade. Aristóteles dizia que é mais fácil partir do sensível para ir ao cognoscível, mas ele nunca negou a transcendência. A ciência reduz tudo à matéria, é a profissão de fé do positivismo, é a definição de materialismo.


Nossa personalidade (nossa unificação ao todo unitário de onde tudo veio) vive em conflito (tensão) com a nossa individualidade (nossa unicidade, nossa independência – atma no budismo), a missão é não deixar que nossa individualidade seja mais importante que nossa personalidade. A sobreposição da individualidade é o esquecimento de nossa origem (cair na existência animal, sem transcendência), e pode levar ao gnosticismo. A individualidade exacerbada pode levar a perda da vocação, ou seja, da missão de cada um inerente a sua casta. O homem deveria buscar a unidade, aproximar-se da origem, elevar-se ao Espírito. Porém caímos na multiplicidade e uniformização.


Este afastamento do ponto originário, da unicidade, revela-se na crescente tendência a uma falsa diversidade e utópico igualitarismo. A única forma dos seres não serem idênticos ou indiscerníveis é que haja uma diferença qualitativa entre eles, porém a suposta diversidade e o utópico igualitarismo buscados pregam a eliminação destas diferenças qualitativas. Nem os sexos escapam desta decadência, querendo-se igualar homens e mulheres fazendo desaparecer suas principais qualidades (e.g. ordem-homem e amor-mulher).


Ao olhar para o mundo atual com os olhos de nossos ancestrais, fazendo uma contraposição dialética socrática ao mundo moderno, deparamo-nos com inúmeros exemplos da multiplicidade e uniformização a que estamos sendo sujeitos:


  • Perda do sentido e separação das castas, predomínio dos valores dos sudras sobre todas as castas superiores. Os valores corporais sobrepõem-se aos espirituais.

  • A grande liberdade política conquistada trouxe a sensação de que podemos fazer qualquer coisa, afastando o homem da missão ontológica de sua casta (uniformização) e provocando insatisfação e conflito. O verdadeiro sentido do trabalho, i.e. o desenvolvimento pessoal através do cumprimento da vocação existencial, é cada vez mais raro.

  • Quebra da hierarquia sob a crença de que seriamos todos iguais, e.g. Bach e Gilberto Gil são ambos músicos e teriam o mesmo valor. Não há mais qualidade e apenas quantidade (2 músicos). Outro exemplo: Sidney Sheldon vendeu mais livros que Dante e, por isso, teria o mesmo ou mais valor que o autor da Divina Comédia – a Qualidade subordinada a Quantidade (inversão). Outros exemplos de quebras de hierarquia: “os professores aprendem com os alunos”, “a solução dos problemas da empresa se encontra no conjunto dos funcionários”.

  • Educação universal prioriza a quantidade de formandos do que a qualidade destes. A educação deveria priorizar a união da elite dos professores (os que querem ensinar) e da elite dos alunos (os que querem aprender). Falsa crença de que é possível democratizar tudo acarreta um inexorável nivelamento por baixo. Esta tendência de uniformização também se reflete nas cotas universitárias.

  • Quer-se restringir a medição da inteligência humana a números calculados a partir do Teste de Q.I., ignorando as funções não Quantitativas da mente.

  • O conceito de elite cultural (pessoas que vivem por valores maiores que seus interesses) passa a ser meramente econômico. A mente começa a ser vista como inimiga da igualdade, como uma deformação do homem. A educação começa a ser vista com meio de igualdade social e não como forma de potencializar o indivíduo.

  • Tendência à vulgarização – tudo tem que estar ao alcance de todos (e.g. a grande literatura é abandonada por seu léxico “antiquado”) – destruindo a alta cultura. Qualidade sacrificada à Quantidade.

  • A sensação de que o tempo passa cada vez mais rápido seria reflexo da perda de sua Qualidade (não haveria perda quantitativa), O tempo acelera quanto mais próximo do final do Mavantara (cada Yuga tem menor duração que o anterior).

  • A geometria deixou de estudar a Qualidade do espaço, interpretar e transmitir seus sentidos simbólicos, e restringe-se ao seu aspecto Quantitativo, mera medição numérica. O início dos tempos pode ser simbolizado por uma esfera (forma primordial – menos específica – semelhante a si própria em todas as direções) que por sua mobilidade carrega todas as possibilidades ou forma mais universal que contém todas as outras. Estamos no processo da “quadratura do circulo”, a transformação da esfera em cubo (imóvel) – da potência máxima a infertilidade máxima. Analogamente a arquitetura perde seu simbolismo (ver comparação de Erwin Panofski entre a estrutura das catedrais góticas e a filosofia escolástica). A astronomia decai na astrologia, a alquimia se reduz na química e a simbologia descamba na semiótica.

  • As próprias medidas são desumanizadas, não escapando ao processo de matematismo (e.g. cada vez mais se abandona os “pés”, “polegadas” ou “milhas” pelo sistema métrico).

  • Ciência desconecta-se da transcendência e busca tudo explicar partindo apenas da matéria. O Positivismo ignora tudo que não seja sensível. Tudo é reduzido a Quantidade.

  • Supervalorização da ciência utilizada para impor leis sobre o indivíduo, ignorando suas incerteza e imperfeições (e.g. a ciência é repleta de dogmas que são substituídos por novos dogmas). Esta sobrevaloração é estimulada pela confusão entre tecnologia e ciência, atribuindo a esta última os avanços e benefícios tecnológicos hodiernos.

  • A Ciência torna-se uma sucessão de paradigmas, instável e não confiável (ver A Estrutura da Revolução Científica de Thomas Kuhn). Ciência como mistificação, e.g. evolucionismo e aquecimento global. Ficção científica assume papel de transcendência, e.g. Eram os Deuses Astronautas? de Erich von Däniken.

  • Crença cega nas estatísticas, ou de que a natureza tem regras imutáveis (esquecimento de que a repetição dos fenômenos não é garantia de continuidade). Só há certeza na metafísica, e.g. “só pode existir aquilo que tem potência de existir” ou “2 + 2 = 4”. A ignorância com a aritmética e matemática aumenta o fascínio com os dados numéricos, não sendo incomum pessoas mostrarem-se, por exemplo, “preocupadas porque metade dos alunos estão abaixo da média”, ou se impressionarem por seu estado ser o terceiro com maior número de casos de câncer quando este mesmo estado tem a terceira maior população.

  • Ojeriza aos mistérios e aos milagres. Recusar-se a aceitar o desconhecimento, forçando ou falsificando explicações imanentes. Também desaparecem os segredos pessoais e a intimidade, e.g. censura nas redes sociais, obrigação de checkups de saúde nas empresas, reconhecimento facial, devassa fiscal pelo Estado. A privacidade esvanece. O ódio ao secreto é um instrumento de controle social.

  • Olhar anacrônico ao mundo antigo ou com provincianismo cronológico ao mirá-lo com desprezo. Perda da capacidade de enxergar o simbolismo transcendente nos acontecimentos materiais, e nos eventos de nossas vidas (e.g. foco em lamentar-se ou buscar culpados ao invés de compreender o sentido do acontecimento). Esvazia-se a “geografia sagrada” por trás das grandes peregrinações, não mais se consegue identificar qualidades do espaço que transcendem a natureza física (e.g. Delfos era o centro do mundo para os gregos / ver As Setes Torres do Diabo de Jean-Marc Allemand).

  • A moeda (facilitador de transações – antigamente repleta de símbolos) perde seu lastro, perde a relação com o mundo concreto e transforma-se num impulso eletrônico. A degeneração simbólica da moeda (responsabilidade, direito, justiça, dever) é acompanhada da sua constante perda de valor (inflação – fenômeno monetário, meramente quantitativo).

  • As artes abandonam o louvor à transcendência e tornam-se cada vez mais imanentes até decair no nada. Da Adoração dos Reis Magos de Giotto (1266-1337) acabamos na Merda d’Artista de Piero Manzoni (1933-1963).

  • O anonimato qualitativo, como dos pintores da Idade Média que não assinava seus quadros religiosos, decai no anonimato forçado dos modismos e do perder-se na massa.

  • Redução do homem a corpo e mente, eliminando a alma. Doenças espirituais são tratadas como psicólogas (mentais) e, consequentemente, sem resultados positivos. A psicanálise apela ao subconsciente ignorando o supraconsciente (vide epígrafe da Interpretação dos Sonhos de Freud: “Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo.”). Uso dos elementos inferiores ao invés dos superiores.

  • A partir de Descartes (1596-1650) a filosofia abandona o espírito e, cada vez mais, considera o homem autor de si mesmo. Este afastamento da transcendência suscita a diminuição da nossa capacidade noética aristotélica. Cada vez é mais difícil ao homem compreender a estrutura da realidade, apreender o verdadeiro. A retração do Espírito leva a desconexão com a realidade e uma contração da nossa humanidade. O galopante materialismo é a redução ontológica do homem, é castrar-lhe a capacidade de alcançar o supremo sensível.

  • O materialismo corresponde à solidificação do mundo, a partir da qual se inicia uma dissolução através de uma falsa retomada da espiritualidade. As religiões de fato esvanecem e a filosofia moderna não explica mais nada (apenas confunde). O homem desesperançado e alegando um (falso) combate ao materialismo se apega aos modismos espiritualistas e à autoajuda, busca um sincretismo religioso, ou retroage ainda mais apelando a cultos e culturas decadentes. O altar da Nova Era é repleto de falsos deuses, consequência da impossibilidade do homem explicar a si mesmo.

  • A religião é vista como um fenômeno cultural e não algo supra-humano. O comunismo tira Deus da equação para substituí-lo pelo Partido/Estado. A falsificação de tudo e a confusão intelectual reinante correspondem à vinda do Anticristo.

  • O homem perdido apega-se a matéria, sonha com a imortalidade, advém o culto ao físico, atribui-se pretensos poderes, proliferam obras ficcionais sobre humanos mutantes ou seres com habilidades extraordinárias (super-heróis).


O Kali Yuga é um tempo de vícios, conflito, discórdia e disputa. Não é um mundo fácil de viver. Mas temos que assegurar a sanidade do nosso espírito, viver pelas virtudes cardeais. Lembrando que não temos a obrigação de salvar o mundo, mas sim de salvar a nossa alma.


 


Notas

  • René Guénon (1886-1951) não é um autor/filosofo original, mas sim um grande estudioso da Filosofia Perene – uma herança da humanidade (diferente dos estudos religiosos, filosóficos e literários).

  • Sofia Perenis – é o conjunto de ideias que se supõe que tenham sido herdadas de alguma fonte que não humana e que foram conservadas ao longo do tempo.

  • Seu projeto era criar uma elite religiosa (grupo esotérico dentro do Catolicismo – potencialmente a Maçonaria / como a Cabala no judaísmo e o Sufismo no islamismo) que fosse a base para o novo ciclo.

  • O Reino da Quantidade foi publicado em 1945 e é uma continuação do tema abordado em A Crise do Mundo Moderno de 1927.

  • Criação ex nihilo (criação do nada) do mundo é um conceito desenvolvido por Santo Agostinho.

  • A Parábola dos Trabalhadores da Vinha (Mateus 20:1-16 – “Assim os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão últimos.”) pode representar a compensação aos homens do Kali Yuga pelos desafios espirituais que este tempo impõe.

  • Louis Charbonneau-Lassay apresentou o melhor estudo esotérico para explicar os símbolos das igrejas góticas.

  • Há dois tipos de dualidade: (1) Falsa – aquela por exclusão, e.g. claro e escuro, (2) Complementar – aquela que não se excluem, e.g. homem e mulher. Sempre que a dualidade é complementar uma parte predominará sobre a outra.

  • Formas de impiedade: (a) Ateu – não acredita em Deus. Porém não somos causa eficiente de nós mesmos, alguém nos fez. O senso de hierarquia nos é natural, o ateu vai acabar endeusando algo; (b) Gnóstico – Aquele que endeusa a si mesmo. Crê que Deus errou na criação e quer consertá-la; e (c) Agnóstico – reputa inacessível ou incognoscível ao entendimento humano a compreensão dos problemas propostos pela metafísica ou religião (a existência de Deus, o sentido da vida e do universo etc.).

  • Há quatro níveis de realidade graduados pela sua materialidade: (1) Divino (não Quantidade, apenas Qualidade), (2) Angelical/Espiritual (canal de intermediação entre Deus e o homem – aspectos da mente de Deus / sete camadas de anjos, apenas os das mais baixas hierarquias entram contato com o homem), (3) Sutil (espectros da matéria) e (4) Material/Existencial (nosso mundo concreto). Há uma analogia com os estados humanos Espiritual, Mental e Corpóreo.

  • Passado e futuro são criações da nossa mente. Damos a ideia de continuidade presentificando o passado e o futuro. O passado é uma lembrança, o presente uma intuição e o futuro uma expectativa. (Santo Agostinho)

  • René Descartes cria o materialismo tirando o espírito da equação humana. Schelling diz que após Descartes a filosofia transformou-se numa infantilidade.

  • Teosofia é um pastiche de kardecismo, bramanismo e invencionices de Helena Blavatsky. O jovem Krishnamurti foi abordado pelo teósofo e pedófilo C. W. Leadbeater. Depois Annie Besant tentou transformá-lo no Professor do Mundo, porém Krishnamurti rompe com a Teosofia (ler O Beduíno de Madame Blavatsky de Peter Washington).

  • Entia rationis = ente da razão (ente mental, e.g cavalo alado) / entia realis = ente real (e.g. cavalo real – ousia). Na incapacidade de distinguir entre estes dois entes está a maior dificuldade do debate público brasileiro atual (e.g. comunismo ou socialismo prometidos são entia rationis e em nada se parecem com as experiências comunistas ou socialistas reais (entia realis).

  • A história de Caim e Abel representa a tensão cosmológica entre o Tempo e o Espaço inerente à humanidade. Caim é agricultor, sedentário, regido pelo Tempo; e Abel é pastor, nômade, regido pelo Espaço. O Tempo mata o Espaço (Cronos devorador), mas este recuperará seu lugar no fim do ciclo – tensão assimétrica. Na Cabala o fumo de Abel eleva-se ao céu e o de Caim se espalha horizontalmente na superfície da terra, traçando a altura e a base do domínio humano.

  • O abaixo-assinado é um fetiche brasileiro. Por falta de argumentos substitui-se o debate angariando assinaturas. É uma farsa.

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