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O Fenômeno Pitesti de Virgil Ierunca

O problema principal é o de vencer a amnésia. Tem-se de pagar tudo, de outro modo não há futuro. (…) A perda da verdadeira memória equivale a uma perda do sentimento do real. (…) O passado não pode ser falsificado. – Nadejda Mandelstam (1899-1980), escritora e educadora russa


Depois da II GG o Partido Comunista romeno, sob orientação e supervisão soviética, instala-se como o único partido permitido, e a polícia política exerce domínio absoluto – ocorrem milhares de prisões, deportações e assassinatos.


Na prisão de Pitesti prendem-se principalmente jovens universitários e alunos do liceu, suspeitos principalmente de “pensamento desleal”. A prisão seria o local de sua “reeducação” política e moral para torná-los “novos homens”. A reeducação revolucionária propõe a si mesma reinventar a humanidade em geral: sua monstruosidade penitenciária pode ser deduzida de seu projeto messiânico, fazendo de suas vítimas mero objetos pedagógicos totalitários.


O uso da violência política contra o corpo e a alma já ocorreriam na URSS nos campos de reeducação do Gulag, e nos interrogatórios e processos dos anos 1930 (ver Arquipélago Gulag de Aleksandr Solzhenitsyn). A China de MaoTsé-Tung “aprimorou” ainda mais este odioso processo com as lavagens cerebrais, as confissões públicas e a interminável verificação de arrependimento descritas em J’ai subi le lavage du cerveau (1964) de Dries Van Coillie e em Prisonnier de Mao (1973) de Jean Pasqualini.


O que ocorreu em Pitesti pertence ao mesmo repertório acima, mas com a especificação da tortura sistemática de detentos feita por outros detentos. A ideia cabe ao pedagogo soviético Anton Makarenko (1888-1939) que pregava a reeducação de jovens detentos com a ajuda de detentos veteranos. E o chefe da Securitate (Departamento de Segurança do Estado) e agente soviético, General Alexandru Nicokolchi (1915-1992), incumbe a tarefa de implementação do experimento a Eugen Turcanu (1925-1954), jovem fascista que se converteu ao comunismo em 1944, preso e enviado a Piteşti em 1948. Ali, sob a supervisão e aprovação dos dirigentes da prisão, Turcanu formará um grupo entre os detentos (seu círculo de carrascos) que, em nome da reeducação social, dará curso a um terror absoluto no interior da prisão.


Os métodos de tortura eram variados, ultrapassando o simples espancamento diário. Os cristãos eram “batizados” em baldes contendo urina e fezes com suas cabeças submersas quase até a morte, tendo suas cabeças retiradas para um breve respiro antes de serem imersas novamente. Os corpos dos presos eram queimados com cigarros a ponto de suas nádegas começaram a apodrecer e a pele caiu como se estivessem com lepra. Outros eram obrigados a engolir colheradas de excremento e, quando este era vomitado, eram obrigados a comer o seu próprio vômito. Pedia-se aos prisioneiros que aceitassem a noção de que os membros da sua própria família tinham vários traços criminosos e grotescos. Eles também eram obrigados a escrever autobiografias falsas, incluindo relatos de comportamento desviante e obsceno. Além da violência física, os presos em “reeducação” deveriam trabalhar durante períodos extenuantes realizando tarefas humilhantes como, por exemplo, limpar o chão com um pano preso entre os dentes. Os presos eram desnutridos e mantidos em condições degradantes e insalubres, tendo que assistir sessões programadas sobre temas como o materialismo dialético e a vida de Joseph Stalin.


Incapazes de resistir à violência física e psicológica, alguns presos conseguiram se suicidar cortando os pulsos ou se atirando pela abertura entre as escadas.​ Muitos morreram devido aos ferimentos sofridos durante espancamentos e tortura.



O processo “pedagógico” envolvia quatro etapas:


Primeira etapa (“desmascaramento externo”): as vítimas eram inicialmente interrogadas por meio de tortura física para que pudessem revelar detalhes íntimos de suas vidas pessoais, muitos dos detidos acabaram reconhecendo crimes falsos na vã esperança de evitar a tortura.


Segunda etapa (“desmascaramento interno”): os torturados eram forçados a revelar os nomes dos agentes policiais que se comportaram de forma menos brutal ou com relativa indulgência durante seu processo de detenção.


Terceira etapa (“desmascaramento moral público”): os presos, sempre sob tortura, eram forçados a denunciar suas crenças, lealdades e valores diante dos demais – era comum terem que dar detalhes sórdidos de quando teriam violentado suas mães ou irmãs. Os detidos religiosos se vestiam de Jesus Cristo e eram humilhados por outras pessoas, além de serem forçados a blasfemar de símbolos religiosos e textos sagrados.


Quarta etapa (“graduação”): os torturados passa a condição de carrasco impondo os mesmos suplícios que sofreram a outros detentos, começando por seus melhores amigos – os reeducados passam a conduzir o processo de reeducação – este é o aspecto mais “inovador”, e cruel, aplicado em Pitesti.


A tortura era a chave do processo, passando ao papel de carrasco não haveria mais como voltar a condição psíquica anterior, e eliminar-se-ia os riscos de uma eventual denúncia futura, pois agora a vítima também era o criminoso.


O inferno na prisão de Pitesti começou em 1949 e arrefeceram em1952, quando rumores do que se sucedia vazaram para fora dos muros da prisão, dando início ao processo de propaganda para eximir qualquer responsabilidade do Partido Comunista. Criou-se a narrativa de que os próprios presos criaram aquele regime de terror para ferir o regime comunista, e que o mesmo teria sido interrompido tão logo as autoridades se inteiraram da trama urdida por aqueles “agentes do imperialismo americano”. A versão era tão aberrante que se renunciou à publicidade inicialmente prevista em jornais.


O clássico processo de tribunal de fachada foi encenado em 1954 com ninguém do Partido Comunista ou das autoridades do sistema prisional na condição de réu. Os bodes expiatórios foram Eugen Turcanu, membros do seu círculo inicial de carrascos, e alguns torturados convertidos em torturadores – quase todos foram sentenciados à morte.



 


Notas

  • Virgil Ierunca (1920-2006) nasceu em Ladesti, Romênia.

  • Foi editor, escritor, redator, poeta e crítico literário. Desenvolveu seu trabalho principalmente na França, após fugir do horror comunista romeno em 1945.

  • O Fenômeno Pitesti foi publicado em 1990.

  • A cidade romena Pitesti fica a cerca de cem quilômetros de Bucareste.

  • Em 1963 o livro de Dumitru Bacu, The Anti-Humans: Student Re-Education in Romanian Prisons, denunciando os crimes dos comunistas, foi contrabandeado para fora de Romênia e publicado em inglês.

  • Anos após os eventos de Piteşti, os comunistas tentaram acobertar o acobertamento do crime tentando associar o expurgo de Teohari Georgescu, Vasile Luca e Ana Pauker do Partido Comunista ocorridos em 1952 como sendo punição por aquele experimento de “reeducação”, porém tais expulsões estavam ligados apenas a disputas por poder dentro do partido.

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