“Fiz então raspar novamente a cabeça e dediquei-me a este colégio tão antigo, fundado nos tempos recuados de Sila. Também não procurei ocultar ou cobrir a calvície, mas antes a expus claramente a quem a quisesse ver. E era exultante de alegria, que cumpria estas funções!”
– Lúcio renascido, purgado de suas paixões
Personagens Principais
Lúcio – jovem transformado em burro, narrador
Amor (Cupido) – deus, filho de Vênus, apaixonado por Psique
Psique – bela mortal, futura deusa, apaixonada por Amor
Vênus – deusa olímpica do amor, mãe de Amor (Cupido)
Ísis – deusa a quem Lúcio apela e que o resgata
Fótis – bela jovem servente na casa de Milão
Milão – rico, hospeda Lúcio, marido de Pânfila
Pânfila – feiticeira cujas poções transformam Lúcio em burro
Birrena – tia de Lúcio que o alerta sobre Pânfila
Mitra – sacerdote que inicia Lúcio no culto a Ísis
Personagens Secundárias
Aristómenes – narra o episódio de Sócrates com Méroe
Méroe – feiticeira que ameaça Aristómenes, irmã de Fátis
Télifron – convidado na festa de Birrena, narra como perdeu orelhas e nariz
Cárite – bela jovem sequestrada, prisioneira junto com Lúcio
Ceres, Juno, Pã, Júpiter – deuses olímpicos
Osíris – deus supremo
Interpretação
Lúcio é um jovem leviano, desenfreado e lascivo, apresentando claro desequilíbrio anímico que o empurra para suas desventuras.. Os encontros de Lúcio antes da infame transformação são como avisos da Providência que ele insistentemente ignora – Lúcio não é dono de si mesmo. Sua metamorfose física reflete tal comportamento, pois o burro é um símbolo de baixeza, de lascívia, de trabalho enfadonho e estúpido – essa transformação é um juízo sobre sua imoralidade e falta de sabedoria e bom senso.
Também emblemático da vida errática de Lúcio é sua atração pelo mundo das feiticeiras que simbolizam a manifestação dos conteúdos irracionais da psique, dos quais o indivíduo só pode se libertar por uma transformação interior, que se concretizará, inicialmente, através de uma atitude positiva em relação ao inconsciente e de uma integração progressiva da personalidade consciente de todos os elementos que dela emergirão.
Escolher entre matéria e espírito, tal é o destino do ser humano. Por menos que o homem esqueça o espírito, por menos que exalte seus desejos em direção à matéria (em direção à terra-mãe), já será suficiente para que caia na banalização, no abandono do esforço evolutivo espiritual. O martírio de Lúcio metamorfoseado em burro é o caminho para a conscientização da sua patologia e recuperação da senda evolucional (ver Chave interpretativa dos mitos gregos).
A narrativa de Amor e Psique espelha a saga de Lúcio.
Amor representa a divindade que preside à sexualidade em seu conjunto, tanto em sua forma banalizada quanto em sua forma sublimada. A banalização consiste no mau uso da função que não busca senão o prazer físico; a sublimação acrescenta à ligação passageira do ato a união perene das almas.
Psique, personificação da alma, deixa-se seduzir por Amor sob sua forma perversa, o que, para a alma, significa a perda da aspiração que deveria caracterizá-la, assinalando, portanto, a mais banal das decadências. Ela é aprisionada num palácio por Amor, simbolizando as promessas da luxúria da qual é prisioneira. A reclusão, a noite e a proibição de ver, são símbolos claros de um amor que tem necessidade de se esconder vergonhosamente, de um amor perverso, subconsciente, consequência do recalcamento.
A tocha acesa, com que Psique rompe a escuridão e vê Amor, simboliza o despertar da clarividência que começa a dissipar o encantamento imaginativo, o despertar do remorso. Livre de sua cegueira, Psique passará por tarefas extremamente duras, símbolos das dificuldades a superar, a fim de apagar a mancha da devassidão. Ao final, Psiquê desposa a visão sublime do amor físico, torna-se esposa de Amor: a alma reencontra a capacidade de união. A história de Amor e Psique é uma alegoria do progresso da alma em direção a imortalidade. Amor significa desejo e Psique palavra em grego para alma – a alma em controle dos desejos
A história de Amor e Psique prenuncia o destino de Lúcio – a metamorfose espiritual de Lúcio só estará completa quando ele se dedicar totalmente ao amor platônico.
Apuleio foi um filósofo platônico e elementos de sua escola de pensamento podem ser encontrados na narrativa do Burro de Ouro e na história de Amor e Psique. Em particular, a história de Amor e Psique está ligada às ideias platônicas sobre o amor e a alma (ver O Banquete de Platão). A alegoria implica que existem diferentes tipos de amor que os humanos podem sentir. Existe o amor inferior, que se concentra no desejo físico por corpos bonitos, e também existe o amor superior, que busca a beleza absoluta, que é Deus.
Outra alegoria importante do pensamento platônico é o mito de Fedro e da alma caída. A história fala de uma carruagem que representa a alma humana, o condutor representa a racionalidade e os dois cavalos que movem a carruagem são o Espírito e o Desejo. O que é importante no mito de Fedro é a potencial queda em desgraça à qual a alma pode sucumbir se não estiver vigilante.
Psique passa por uma queda em desgraça. Amor e Psique são uma alegoria para as visões platônicas da transcendência do amor e da alma. Os neoplatônicos argumentaram que a alma passa por uma sequência de eventos antes de se estabelecer: união, separação, peregrinação e retorno. Essa sequência se encaixa facilmente na história de Psique.
Ainda segundo o pensamento platônico, o amor leva a alma para o céu. No entanto, este não é um amor comum ou inferior que lida com a luxúria e o desejo, mas uma forma superior de amor que representa a própria beleza absoluta.
Notas
Apuleio (c. 124-c. 170) nasceu na província romana de Numídia no norte da África.
Além de escritor, era filósofo (platonista) e retórico. Escreve um latim meio requintado, meio bárbaro, em que se misturam as frases feitas da escola retórica, as elegâncias do jornalismo grego, as fórmulas místicas do Oriente e a linguagem violenta de Tertuliano. É uma figura da época: o literato desarraigado que encontra a solução das suas angústias nos arrepios místicos do Oriente.
O Burro de Ouro, também conhecido como As Metamorfoses, é o único romance latino que nos chegou inteiro. A data de sua composição é incerta. A denominação “ouro” refere-se à beleza do estilo linguístico da obra – o texto é considerado inestimável no uso da língua latina, sendo escrito em um estilo inimitável, incorporando rima, aliteração e padrões rítmicos.
Outras duas obras de Apuleio sobreviveram: sua defesa contra a acusação de ter usado mágica para seduzir a viúva com a qual se casou denominada Apologia (c. 158) e uma coletânea de seus discursos públicos conhecida como Florida (160s).
A narrativa teria sido adaptada de um original grego cujo nome do autor seria um desconhecido Lúcio de Patras, também o nome da personagem principal e narrador – “the last child of the Greek genius.”
O Burro de Ouro incorpora muitos “contos dentro de um conto”; logo na primeira frase, Apuleio (ou o narrador) diz que está montando histórias à maneira milesiana – contos milesianos eram histórias curtas, obscenas e eróticas.
A narrativa de O Burro de Ouro é uma fonte de informações sobre o mundo religioso e a visão de mundo dos romanos no século II d.C. – principalmente com relação aos aspectos exotéricos do culto de Ísis. A obra também preserva uma grande quantidade de informações sobre as interações sociais romanas e vida cotidiana. Mesmo admitindo caricaturas e exageros, o texto fornece informações preciosas sobre a realidade social romana.
A idolatria dos homens a Psique pode ser vista como a revolta ególatra de abandono do transcendente pelo imanente – Vênus, então, revoltar-se-ia contra a húbris humana.
Boccaccio (1313-1375) era um admirador de Apuleio. Ele encontrou e copiou um manuscrito de O Burro de Ouro em 1355, e incorporou histórias de Apuleio ao Decameron.
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