“Ai! Que preguiça!...” – Exclamação de Macunaíma – incapacidade de sair da condição de pecador
Personagens Principais Macunaíma – “o herói sem caráter” Maanape e Jiguê – irmãos de Macunaíma Sofará, Iriqui e Suzi – companheiras de Jiguê, amantes de Macunaíma
Personagens Secundárias Ci – mãe do mato, grande amor de Macunaíma Venceslau Pietro Pietra (Piaimã) – fazendeiro, gigante comedor de gente Vei –Sol, quer que Macunaíma case com uma de suas filhas Ceiuci – mulher de Piaimã Princesa – última companheira de Macunaíma
Interpretação Mário de Andrade queria fazer uma reflexão sobre a identidade brasileira na busca de uma definição da mesma – “o herói sem caráter” reflete tanto sua imoralidade quanto sua falta de identidade. Os modernistas procuravam elementos para construir um caráter nacional que confrontasse a visão fatalista que consideravam condenar o país ao atraso civilizacional por razões como a herança colonial, o clima e, até, as dimensões do território nacional.
Mas o espírito revolucionário do autor despreza o passado e a tradição, e o faz destacar apenas o que haveria de pior na nossa sociedade. Neste sentido, ressalta-se o fato que em nenhum momento da narrativa nossa herança e características cristãs são evidenciadas, ficando a visão espiritual atolada numa herança indígena que já não predominava no imaginário brasileiro. O horizonte esquerdista de Mário de Andrade o impedia de compreender as angústias da alma brasileira, como, por exemplo, o paradoxo entre nossa imoralidade e espiritualidade cristã.
O resultado do esforço do autor é um exercício de pedantismo filológico reunindo narrativas folclóricas e uma intragável maçaroca linguística que torna o texto artificioso e intragável. E de significado perturbador, pois imaginar que o brasileiro seja aquilo é uma conclusão desalentadora. Seriamos uma sociedade sem nenhuma capacidade de persuasão sobre a vida.
O próprio Mário de Andrade reconheceu o erro em carta a Álvaro Lins (4 de julho de 1942): “Mas a verdade é que eu fracassei. O livro é todo ele uma sátira, um não conformismo revoltado sobre o que é, o que eu sinto e vejo que é o Brasileiro, o aspecto “gozado” prevalece. É certo que eu fracassei. Porque não me satisfez botar a culpa nos brasileiros, a culpa tem de ser minha, porque quem escreveu o livro fui eu. Veja no livrinho, a introdução com que me saudaram! Para esses moços, como para os modernistas da minha geração o Macunaíma é “a projeção lírica do sentimento brasileiro, é a alma do Brasil virgem e desconhecida”, que virgem nada! que desconhecida nada! Virgem, meu Deus! será muito mais um cão de nazista! Eu fracassei.”
O arrependimento do autor tem razão de ser pois não se encontrará movimento político relevante, receba o nome de revolução ao não, que não parta da mão visível ou invisível de algum intelectual – Hugo von Hoffmanstahl (1874-1929) dizia que nada há na política de um povo que não tenha estado antes na sua literatura. A casta bramânica conduz o pensamento dos grupos inferiores na escala de poder. A reiteração de personagens delinquentes como Macunaíma na nossa literatura contribuiu para o clima geral de mentira e corrupção que formata a política brasileira.
Enquanto a insanidade moral for entendida como progresso, serão os cafajestes, os malandros, os Macunaímas, as pessoas de menor gabarito moral, porém lábia melíflua, que alcançarão as posições de mando sobre a opinião pública. Enquanto a trindade do belo, bom e verdadeiro, bem com a vida do espírito são estigmatizados em público como "reacionárias" — o desprezo pela estrutura da realidade, a ignorância dos fatos, as construções falaciosas, a falsificação da história, as opiniões irresponsáveis na base de convicções absolutas, o analfabetismo em matéria de filosofia política e o torpor espiritual tornam-se as virtudes do homem do "povo", cuja posse abre caminho para o sucesso – como podemos constatar no atual ocupante da presidência e seus codelinquentes do STF (23/06/2023).
Notas
Mário de Andrade (1893-1945) nasceu em São Paulo.
Escritor e poeta, também foi crítico literário, musicólogo, ensaísta e estudioso do folclore, da etnografia e da cultura brasileira.
Mário era homem sério que, passados os anos, na Elegia de Abril confessou que eles, os da Semana de 22, não eram exemplo para ninguém. Não teve medo de dizer a verdade.
Macunaíma foi publicado em 1928.
Entre suas principais obras também figuram Paulicéia Desvairada (1922) e Amar, Verbo Intransitivo (1927).
A personagem Macunaíma é publicada pela primeira vez em Do Roraima ao Orinoco de Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), etnologista e explorador alemão que contribuiu de forma indelével ao estudo dos povos indígenas da América do Sul. As lendas de Macunaíma são de origem venezuelana.
Macunaíma também remete a personagem Pedro Malasartes, figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos. A menção mais antiga da personagem aparece no Cancioneiro da Vaticana datado do século XIII e XIV.
Macunaíma seria a réplica negativa do Peri de Alencar (O Guarani), com a diferença de que Peri é um herói inteiriço. Ele se move no mundo dos valores. Guia-o uma axiologia cujo núcleo central é o princípio do cumprimento do dever, a noção da dignidade inconsútil. Ele é da estirpe moral do Juca-Pirama. Já a Macunaíma falta a qualidade ética que sustenta todas as demais virtudes humanas: a coragem. A preguiça é a pedra de toque de sua falta de caráter – acédia, inatividade para sair da condição de pecado.
Um episódio demonstra como os intelectuais modernistas selecionaram só o que era exótico na cultura brasileira. Na década de 1920, Mário de Andrade conheceu Pixinguinha durante uma apresentação dos Oito Batutas em São Paulo. O escritor se interessou pouco pela música do grupo: queria mesmo era saber de folclore. Estava escrevendo Macunaíma e precisava conversar com algum negro que lhe desse detalhes dos rituais de macumba. Pixinguinha explicou como o candomblé funcionava e acabou virando personagem do romance de Mário de Andrade. Ganhou no livro um retrato folclórico: "negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista de profissão". O trecho aparece no sétimo capítulo, quando Macunaíma vai a um terreiro de macumba do Rio de Janeiro da mãe de santo tia Ciata, aquela em cuja casa nasceu o samba. Na vida real, ela não era exótica: casada com um funcionário público, fazia das recepções em casa ocasiões sociais frequentadas por jornalistas e políticos. Mas, no livro, também aparece folclorizada, como uma sinistra mãe de santo, "negra velha com um século de sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada"
Nada ilustra melhor o caráter paradoxal e autodestrutivo do nosso nacionalismo do que o Movimento Modernista de 1922, cuja máxima expressão literária, o Macunaíma de Mário de Andrade, retrata o caráter nacional com as feições mais abjetas e desprezíveis, enquanto a pretensa afirmação da “língua brasileira”, rompendo os laços culturais com Portugal, priva-nos do influxo benéfico das poderosas conquistas culturais portuguesas do século XX, tornando-nos escravos da moda francesa e institucionalizando um linguajar de um artificialismo sufocante, miseravelmente datado.
Macunaíma é personagem emblemática da escassez de personagens de grandeza moral em nossa literatura, rica apenas em farsantes, mentirosos, fingidores compulsivos e semiloucos de vários matizes, que se abrigam numa esfera de irrealidade, fugindo da própria consciência. Com raras exceções, as personagens dos nossos romancistas são todas assim.
O esquerdismo de Mário de Andrade também pode ser observado na definição da personagem rival do herói: Venceslau Pietro Pietra (Piaimã), um fazendeiro, burguês paulistano comedor de gente – um antecedente do herói negativo de Andrei Jdanov (1896-1948).
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