“Duas coisas existem, duas grandes categorias: o eu e o não-eu. Essa é a primeira intuição.” – José Maria em busca de gnothi seauton
Personagens Principais
José Maria – professor de filosofia, doente terminal, 50 anos, narrador
Personagens Secundárias
Eunice – ex-esposa de José Maria, abandonou-o há 10 anos
Raul – filho ausente de José Maria (André) e Eunice
Dr. Aquiles – médico que diagnosticou o câncer de José Maria
André – primeiro marido de Eunice
Interpretação O autor une ensaio e ficção numa narrativa em que Deus tem, pela sua quase ausência, uma grande presença. O assunto do livro é o problema moral, social e também metafísico de “um-homem-que-sabe-que-vai-morrer” refletindosobre sua vida e assim galgando um novo patamar de consciência – como a personagem Ivan Ilitch de Tolstói.
José Maria, homem dotado de capacidade e vivência intelectual, vai olhar para a vida – e para a morte – sem a histeria de um desvairado, sem o temor de encontrar o nada, mas com a vontade de entregar-se nas mãos de Deus. Mais que revisar sua vida, erros e acertos, a personagem pergunta-se o que não fez?
A resposta é não ter conhecido a si mesmo, não ter vasculhado os rincões de sua alma, e evitado a mistura com as outras almas (“A história de minhas omissões, toda a minha história cabe nestas poucas palavras: um insensato horror à mistura.”) – a busca de uma pureza sem o contato com a miséria do mundo e suas próprias falhas o fez apenas mais miserável, distante de si e mais ainda do outro.
Não só o risco de isolamento abate quem não perscruta sua alma, pode-se também perder-se no coletivismo e nas frivolidades da moda – um autômato cujo pensamento é comandado de fora para dentro, pela mídia, pelas redes sociais, por uma desregulada necessidade de aprovação pelo outro (“O coletivismo de que morre o mundo, e de que vivem os novos aventureiros, é a teoria do ajuntamento sem unidade; é a tentativa de encontrar significado na multidão, já que não se consegue descobrir o significado de cada um; a conspiração dos que se ignoram; a união dos que se isolam; a sociabilidade firmada nos mal-entendidos; o lugar geométrico dos equívocos.”).
A grande lição deste abismo é não deixar para a “undécima hora” o autoconhecimento. Conhecer a si mesmo é necessário para assegurar entender que há uma ordem no mundo, que tudo é sujeito a Previdência, que cabe a nós encontrar o sentido de nossos logros e fracassos, nossas bençãos e dores.
“Não sou eu que vivo, és Tu que vives em mim”… só assim entenderemos a condição trágica da vida humana, só assim, encontraremos paz em nosso âmago, só assim seremos felizes, e mais importante, só assim poderemos realmente amparar aqueles que de nós dependem.
Graças ao conhecimento do outro que, mediante o amor, o casamento permite, renova-se e aprofunda-se o conhecimento de si. Pela boca da personagem José Maria, diz Gustavo Corção em Lições de Abismo que “a mulher é o espelho do homem”, e assim é: a diferença complementar entre os respectivos sexos e psicologias permite a cada esposo a completação da sua autoimagem.
Notas
Gustavo Corção (1896-1978) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil.
Engenheiro, jornalista e ensaísta. Católico e conservador, influenciado por G.K. Chesterton (1874-1936) e Jacques Maritain (1882-1973).
Principais obras ensaísticas: A Descoberta do Outro (1944), O Desconcerto do Mundo (1965) e O Século do Nada (1973).
Lições de Abismo, publicado em 1950, é seu único romance. Considerado por muitos críticos literários como a sua obra-prima. Sobre ele, disse o poeta Menotti del Picchia: “Creio, sem temor de exagerar, ter lido o maior livro de ficção que já se escreveu no Brasil”. O romance também foi responsável pela seguinte declaração de Oswald de Andrade sobre Corção: “Depois de Machado de Assis aparece agora um mestre do romance brasileiro”.
Definição de romance católico do padre Robert Lauder (série The Catholic Novel): “Romance católico é aquele cujo tema está relacionado a algum ensinamento dogmático católico, ou a algum ensinamento moral católico, ou a algum princípio sacramental ou litúrgico católico — e em que o ensinamento católico seja tratado favoravelmente”.
A narrativa se desenvolve em forma de diário escrito no Rio de Janeiro entre 11 de novembro e 23 de fevereiro do ano seguinte.
Ao demorar para revelar o nome do narrador e dar-lhe o nome composto dos mais usuais no Brasil, Corção tenta forçar o leitor a praticar o memento mori com José Maria.
Vemos ao longo do romance um processo de amadurecimento do herói galgando as camadas da sua personalidade (ver As Doze Camadas da Personalidade de Olavo de Carvalho)
O capítulo V da terceira parte (28 de janeiro) versa sobre o que Jordan Peterson (1962- ) fala sobre ordem e caos.
Gustavo Corção utiliza-se de inúmeras referências literárias clássicas, fazendo uso desta linguagem universal que consegue encapsular um mundo em poucas palavras.