
“O brave new world that has such people in’t!”
Miranda em A Tempeste (Ato 5 – Cena 1) de W. Shakespeare
São seis horas da manhã de uma terça-feira e, como habitual, o tráfego de carros já é pesado na Avenida Ibirapuera em São Paulo. Mas desta vez algo mais prejudica o deslocamento de motoristas e passageiros para suas rotineiras atividades: na pista da direita um solitário ciclista dá suas pedaladas. As outrora três pistas para deslocamento de veículos motorizados, já restritas a duas pelo famigerado corredor de ônibus, transformam-se em apenas uma com a necessidade dos carros espremerem-se na faixa central para guardar segura distância da referido ciclista.
Esta cena, cada vez menos rara nas grandes cidades, esconde um malefício ainda maior do que naturalmente salta aos olhos. É óbvio que o trânsito de bicicletas não deveria ser permitido em avenidas de grande movimento, pois não só prejudica o tráfego em geral, para desconforto de seus usuários, como também põe em risco a integridade física do imprudente ciclista. Mas já há alguns anos o uso de bicicletas tem sido incentivado, senão idealizado, por governos ao redor do mundo. O que está por atrás desta política? Que buscam as autoridades com um eventual aumento do uso da bicicleta nos deslocamentos dos cidadãos urbanos?
Até onde consegui pesquisar, o incentivo a substituição do uso do automóvel pela bicicleta ganhou contornos nítidos nos corredores da Comissão Europeia, na divisão destinada aos assuntos referentes ao meio-ambiente, no final da década de 90¹. Na visão da Comissão, o caótico trânsito das grandes cidades, além de seus intrínsecos problemas, aumentaria a emissão de gases do efeito estufa, que por sua vez provocariam o aquecimento global e suas consequências apocalípticas. Além de “salvar o planeta”, o maior uso de bicicletas traria melhoras para a saúde da população (ar mais puro, exercício físico, menos ruído) e ganhos econômicos para todos (menor custo de transporte, menor desperdício de tempo no trânsito). Maravilhados com a incidência do uso de bicicletas em cidade como Basel, Cambridge, Parma ou Ferrara, aqueles engenheiros sociais imaginavam tal hábito replicado em Londres, Paris, Madri e Roma, apesar das claras diferenças populacionais, urbanísticas e de costumes existentes entre estes extremos.
Para alcançar esta Shangri-la de duas rodas os iluminados burocratas europeus identificavam problemas objetivos para o motorista transfigurar-se em ciclista: (a) perda de velocidade no deslocamento, (b) maiores dificuldades em cidades de topografia acidentada, (c) exposição aos extremos climáticos e (d) a maior exposição corporal a eventuais acidentes de trânsito. Como nenhum destes obstáculos pode ser diretamente evitado, aqueles burocratas sugeriam concentrar a campanha pró-ciclismo naquilo que chamaram fatores subjetivos, focando na imagem do futuro ciclista como um ser superior aos não aderentes ao heroico renovado transporte, um apelo irresistível aos idiotas úteis de plantão. É desolador ver o vazio espiritual e intelectual daquelas pessoas que abraçam a campanha pró-ciclismo como uma religião, acreditando que a cada pedalada estão “construindo um mundo melhor”. Naturalmente tal reengenharia social seria reforçada com pistas exclusivas, estacionamentos e novas leis favorecendo os ciclistas. Além disso, recomendavam ainda prejudicar os motoristas forçando-os a reduzir sua velocidade com, por exemplo, o estreitamento das faixas de rolamento.
Continuei pesquisando em busca de resultados concretos que tais medidas teriam trazido em algum grande centro urbano onde foram aplicadas. Mas apesar dos investimentos feitos nas principais cidades e do contingente de idiotas úteis que abraçaram o ideal proposto, não encontrei nenhum documento enumerando os resultados alcançados, seja no aumento significativo da substituição do automóvel pela bicicleta, seja na eventual consequente diminuição dos problemas de trânsito. Uma entrevista² da secretária de transporte de Nova York, Janette Sadik-Khan, em recente visita a São Paulo é reveladora. Responsável por 450 novos quilômetros de ciclovias em Nova York desde 2007, ela virou inimiga número 1 dos taxistas, mas, ostenta ela, o número de ciclistas aumentou de 10 mil para 40 mil nestes oito anos. É isso mesmo! Ela quer demonstrar o sucesso da política pró-ciclismo com este adicional de 30 mil ciclistas numa cidade de mais de 8.3 milhões de habitantes enquanto, para sua satisfação, irritou 50 mil taxistas que transportam 1.5 milhões de passageiros por dia³, mandando para o espaço todo o senso de proporções em prol de suas fantasias. Tal ausência de resultados palpáveis não deveria surpreender qualquer observador mais atento. Porém, apesar do falacioso pretexto de combater o aquecimento global e da ausência de resultados das medidas sugeridas e implementadas há mais de quinze anos, vemos um recrudescimento no antagonismo ao uso de carros e aumento na retórica governamental sobre a necessidade de reforçar a campanha pró-ciclismo. Fazendo com que voltemos à pergunta original: o que buscam com isso?
Não há absolutamente nada de errado na municipalidade legislar e executar medidas visando melhorar o transporte e a saúde dos cidadãos, pois tal conduta é esperada pelo eleitor. Mas as políticas que estamos enfrentando vão de encontro a tais benefícios. A melhoria do transporte nos já problemáticos centros urbanos não será alcançada desta forma. Ela só será viável com a melhoria dos transportes públicos, principalmente o metroviário, a expansão da rede de vias de rolamento, a criação de mais locais de estacionamento (subterrâneos e edifícios), e, num aspecto mais amplo, a criação de mais centros de trabalho que propiciem, não apenas, a possibilidade de morar mais próximo ao local de ofício, mas que também estimulem a migração dos grandes centros urbanos para cidades menos densamente povoadas. Mas pouco ou nada disto é feito. Em São Paulo o investimento em novas avenidas ou estacionamentos, entendido como estímulo ao uso do odiado automóvel, é praticamente nulo. O metrô é mais palco de disputa política do que foco na solução do problema de transporte, e, afrontando a lógica, querem que o transporte público fique cada vez mais nas mãos do governo, notoriamente o pior administrador possível.
Também sou favorável ao uso de bicicletas, desde que não prejudique o trânsito e nem exponha o ciclista a riscos desnecessários. Para isso dever-se-ia sim implementar faixas exclusivas, mas sempre que adicionais as faixas de rolamento automotivo e não em prejuízo destas, e, idealmente, separadas por alguma estrutura fixa, mesmo que apenas um meio-fio. A circulação de bicicletas deveria ser restrita a estas faixas exclusivas e as ruas de movimento regular, ou seja, proibida em avenidas e outras vias principais de acesso. Proibição antes imperativa mundo afora até o início desta paranoia ciclista.
Mas nada disto acontece. O projeto pró-ciclista segue em pauta apesar do contraste evidente entre suas medidas e os objetivos propalados. Menos que o incentivo ao uso da bicicleta assistimos, isso sim, a um antagonismo ao uso do automóvel sem que nenhuma boa alternativa de transporte seja oferecida ao usuário. Sinceramente, é difícil precisar qual a agenda de nossos políticos aqui. Mas a resposta flutua entre mais um devaneio esquerdista destes psicopatas, uma jogada eleitoral, ou pior, algo ainda mais totalitário que vise restringir a mobilidade de suas vítimas. O futuro nos dirá.
Nota¹ - Cycling: the way ahead for towns and cities – European Communities (1999) Nota² - Bike em SP deve ter segurança, diz secretária de NY – Estação (26/09/2013) Nota³ - Dados do NYC Taxi & Limousine Commission (2012)