
Personagens Principais Dom Quixote – fidalgo, 50 anos, inadaptado ontológico Sancho Pança – camponês simplório, escudeiro de Quixote Sansão Carrasco – jovem bacharel, intelectual renascentista
Personagens Secundárias Dulcinéia del Toboso – camponesa de nome Aldonça Lorenco, idealizada por Quixote Antônia – sobrinha de Dom Quixote Pedro Perez – pároco Mestre Nicolau – barbeiro
Interpretação
"Post tenebras, spero lucem.”
– Dizeres no escudo impresso na folha de rosto da primeira edição
A razão da perenidade desta obra está em mostrar o grande embate humano da nossa civilização através da polarização de dois personagens. De um lado temos Dom Quixote representando a cosmovisão medieval que reconhece nossa natureza ambígua, tensional entre Matéria e Espírito, e do outro lado está Sansão Carrasco na figura do homem renascentista com sua cosmologia racionalista do mundo. O confronto de duas visões cosmológicas conflitantes – medieval e renascentista. Isto explica a ambiguidade de Dom Quixote: louco ou gênio, herói ou um tonto perigoso? Quixote vê tudo com anfibologia (gigantes no lugar de moinhos, castelos no lugar de estalagens) em função do contraste entre estes dois mundos: o mundo da estrutura mística da vida humana (presente na Idade Média) e o mundo racionalizado que logo mais vai expulsar o Espírito quando Descartes restringir o homem a Corpo e Mente. Já Sansão Carrasco é o acadêmico, representando o pensamento cientificista, que acredita saber tudo e sente-se no direito de tutelar a vida de Dom Quixote. Ele é o racionalista que quer encontrar na humanidade as luzes que explicariam tudo, que explicariam os grandes mistérios.
Cervantes descreve o drama da perda do mistério para o racionalismo, revelando a tragédia do mundo moderno. A loucura e morte de Dom Quixote representam a inadequação do Espírito no mundo moderno. A obra é uma crítica ao mundo renascentista e sua tentativa de matar o Espírito. Dom Quixote tem nostalgia de um mundo que se foi e busca caricaturalmente recuperá-lo, mas será derrotado por Sansão Carrasco.
Dom Quixote vive inadaptado neste novo mundo renascentista no qual ele está errado, mas completamente certo em relação aos céus (ele tinha a sabedoria do coração numa sociedade organizada ao redor da mente). Ele está errado na prática, mas o que ele defende é eticamente valoroso, demonstrando que ele tem até uma compreensão da realidade mais profunda que os demais – tudo resumido na frase "Loco sí, pero no tonto."
Perde Dom Quixote, perde a humanidade. Daí o clima da narrativa evoluir, no decorrer da história, da comicidade para uma acidez terrível, até suas pungentes linhas finais – da sátira à tragédia. Era a decadência civilizacional do predomínio dos princípios espirituais da casta bramânica para a primazia dos xátrias.
Notas
Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616) nasceu em Alcalá de Henares, então cidade universitária próxima a Madri, Espanha.
Outra obra de destaque é Novelas Exemplares (1613), conjunto de doze narrativas breves do gênero picaresco.
Recomenda-se a biografia de Cervantes escrita por Jean Canavaggio.
O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha é considerado o precursor do romance escrito – antes só havia histórias contadas em versos.
A primeira parte de Dom Quixote é publicada em 1605 e a segunda em 1615 (nesta segunda parte ironiza a continuação espúria publicada um ano antes de autoria de Alonso Fernández de Avellaneda).
A data mais prematura para o fim da Idade Média seria 1314 – ano no qual os líderes templários são supliciados a mando do rei da França Felipe IV, o Belo. Advento da monarquia absolutista e quebra da hierarquia das castas com a queda dos brâmanes (fim do regime de castas). Tem início as nacionalidades e cada um cria seu cavaleiro herói unificador da nação (identidade nacional): El Cid na Espanha, Roland na França, Siegfried na Alemanha e Arthur na Inglaterra. Culto cavalheiresco ao herói (preservador dos valores dos céus), o mito fundador daquela nacionalidade, valores capazes de constituir uma civilização (não é possível construir uma civilização que não seja com valores acima dela mesma) – o Brasil tentou, em vão, fazer o mesmo com um herói índio (e.g. Carlos Gomes com O Guarani, Iracema de José de Alencar, I-Juca Pirama de Gonçalves Dias).
Amadis de Gaula (1508) de Ordoñez de Montalvo, romance de cavalaria, já é obra extemporânea. Principal leitura da personagem Quixote.
Para Dom Quixote (entidade medieval) tudo é ambíguo – para Sancho Pança (entidade realista) tudo é malícia.
O cônego ao conversar com o pároco criticado os livros de cavalaria está opondo o modelo medieval ao cânone greco-romano (cita Aristóteles – “unidade de ação”).
A descida de Quixote na cova e Montesinos equivale à descida aos infernos – ato iniciático de descer a mansão dos mortos antes de subir aos céus. Dom Quixote então é apenas viável nos céus – o Espírito não pertenceria mais a Terra.
Sansão Carrasco tem uma visão tutelar de Dom Quixote, acredita ter o direito de intrometer-se na vida do outro. Quixote seria um louco e interna-lo em casa seria defensável socialmente.
Sacho Pança é uma espécie de duplo de Quixote que tem momentos de lucidez no meio de toda aquela ambiguidade fantasiosa.
As mais quixotescas personagens literárias são: Príncipe Míchkin de Dostoiévski (O Idiota), Alceste de Molière (O Misantropo) e Samuel Pickwick de Charles Dickens (The Pickwick Papers) – personagens que têm uma expectativa do mundo acima da realidade, que se deixam guiar por ilusões, perseguem moinhos de vento.
Os ideais de Dom Quixote são: justiça, honra, culto a mulher, defesa dos perseguidos e outros ideais cavalheirescos que estavam em declínio – não defende nada de maligno apesar de representar certo perigo aos demais em função de suas fantasias.
A ambiguidade da condição humana (tensão entre Espírito e Matéria) é uma condição implícita na nossa existência.
Pelagismo – o pecado de Adão e Eva (querer ser Deus) é individual e não coletivo.