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David Lynch (1946-2025)

  • Foto do escritor: Cultura Animi
    Cultura Animi
  • 16 de mar.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 24 de mar.

It makes me uncomfortable to talk about meanings and things. It’'s better not to know so much about what things mean. Because the meaning, it’s a very personal thing, and the meaning for me is different than the meaning for somebody else. – David Lynch



Desde a sua estreia vanguardista, Eraserhead, David Lynch imaginou repetidamente a sociedade como um pesadelo de ligações perigosas, crimes indescritíveis, obsessões irracionais, morte, decadência e perversidade delirante.


David Lynch revela uma incrível capacidade de recorrer às suas próprias fantasias para criar mundos estranhos e sinistros, simultaneamente irreais e estranhamente familiares. Ele usa o cinema para expressar energia não-racional de forma tangível (visual e auditivamente). É fácil fazer filmes absurdos que não evocam nenhum sentimento, porque não envolvem a energia subconsciente que Lynch evoca. Seus filmes são quebra-cabeças cujas peças nunca se encaixam. Se o significado preciso dos filmes é por vezes pouco claro, o seu poder e invenção ainda os tornam atraentes.


Com suas narrativas exageradas e enigmáticas, os filmes de Lynch devem ser experimentados em vez de explicados – nunca bons com as palavras, Lynch mais questiona que responde.


David Lynch dirigiu dezenas de curtas, vídeos musicais e episódios para TV, mas apenas onze longas-metragens para o cinema. Seguem comentários sobre os destaques de sua obra cinematográfica:


Eraserhead (1977): Trabalhador infeliz descobre que é o pai de um bebê terrivelmente deformado. Em seu primeiro longa-metragem Lynch disse a que veio com um filme que desafia a lógica e a narrativa convencionais, alimentado por uma atmosfera de pesadelo e visuais obscuros – um filme perturbador. Impossível não ver vestígios do cinema avant-garde europeu dos anos 1920-30, e.g. Un Chien Andaluz (1928) de Buñuel e Blood of the Poet (1930) de Cocteau. Também é como se Samuel Beckett ou Ionesco chegasse às telas. O diretor confessa que não sabia o significado da narrativa até que lendo uma passagem da Bíblia captou seu sentido, naturalmente ele nunca revelou que sentença bíblica era essa.


The Elephant Man (1980): Cirurgião vitoriano resgata um homem fortemente desfigurado que era maltratado enquanto sobrevivia como uma aberração de circo. Erasedhead chamou atenção dos produtores Jonathan Sanger e Mel Brooks levando-os a convidar Lynch para dirigir The Elephant Man. Surpreendente sucesso de crítica e público, o filme tem uma narrativa convencional com a mão do diretor aparecendo mais marcantemente na abertura e encerramento do filme. Baseado na vida de Joseph Merrick (1862-1890) antes retratada em peça teatral homônima de grande sucesso. Competente representação de um exemplo factual de Samuel 16:7, i.e. “os homens julgam pela aparência, mas Deus vê o coração”. Merrick costumava assinar suas cartas com os seguintes versos de Isaac Watts (1674-1748): “Tis true my form is something odd, But blaming me is blaming God. Could I create myself anew, I would not fail in pleasing you. If I could reach from pole to pole, Or grasp the ocean with a span. I would be measured by the soul, The mind’s the standard of the man.


Blue Velvet (1986): A descoberta de um ouvido humano decepado leva um jovem a uma investigação relacionada a uma misteriosa cantora de boate e aos criminosos psicopatas que sequestraram seu filho. Depois do convencional The Elephant Man e do desastre Dunes (1984), o diretor retoma seu rumo nesta combinação de noir, thriller e horror, carregado com sua bizarrice peculiar. Grande fábula sobre o Mal que habita em tudo, exigindo nossa infatigável vigília – só assim os insetos carnívoros que residem sob a grama do mais idílico jardim terminam no bico do robin dos sonhos de Sandy. A alternância de atmosfera onírica e aflitiva reveste o filme de uma aura visual que faz esquecer as fragilidades do enredo. Com Blue Velvet o diretor consumava as expectativas criadas com Eraserhead. O filme inspirou Lynch a idealizar Twin Peaks.


Wild at Heart (1990): Os jovens amantes Sailor e Lula fogem dos excêntricos assassinos contratados pela mãe de Lula para matar Sailor. Desta vez Lynch leva sua fantasia sinistra para um road movie violento e grosseiro, suavizado pelo tom satírico que transpira nas cenas mais densas. A energia, o toque visual, e os flashes de humor do diretor estão presentes, mas o resultado é bem inferior a Blue Velvet. O filme ganhou a Palme d'Or em Cannes. Notar a homenagem a Yojimbo (1961) de Kurosawa no cão que “rouba” uma mão humana.


Twin Peaks (1990-2017): Um idiossincrático agente do FBI investiga o assassinato de uma jovem na cidade ainda mais idiossincrática de Twin Peaks. Série televisiva de 30 episódios em duas temporadas apresentados em 1990-91, gerando o filme Twin Peaks: Fire Walk with Me (1992) que serve como prelúdio da série. Lynch traz seu surrealismo para a TV causando grande impacto. Mas a qualidade da série teve vida curta: os oito episódios da primeira temporada são antológicos, razoavelmente bem complementados pelos primeiros nove episódios da segunda temporada quando o assassino de Laura Palmer é revelado. Mas a partir daí a série arrasta-se em mais treze episódios desinteressantes até um final inconcluso, e o filme prelúdio lançado no ano seguinte só funciona para os fãs incondicionais da série. Em 2017 Lynch retorna a Twin Peaks para mais uma temporada seguindo a narrativa um quarto de século depois dos últimos eventos do final da segunda temporada – são mais dezoito enigmáticos episódios de luta entre o Bem e o Mal. Três anos antes o diretor havia lançado o filme Twin Peaks: The Missing Pieces editado cenas não utilizadas de Twin Peaks: Fire Walk with Me – tanto a nova série quanto o filme são inexpressivos em comparado àqueles dezessete episódios iniciais dos anos 1990. O único destaque que permanece com qualidade inalterada ao longo de toda a franquia é a trilha sonora a cargo de Angelo Badalamenti.


Lost Highway (1997): Vídeos anônimos pressagiam a condenação de um músico por assassinato, enquanto a namorada de um gangster desencaminha um mecânico. A excentricidade lynchiana combinada com a uma personagem central esquizofrênica resultou neste filme chinese box com sabor noir: músico esquizofrênico mata a esposa e enlouquece no corredor da morte onde fantasia uma segunda narrativa. O filme seria melhor se fosse de 15 a 20 minutos mais curto, mais ainda funciona. O uso da atriz Patrícia Arquete em dois papéis remete a That Obscure Object of Desire (1977) de Luis Buñuel.


The Straight Story (1999): Alvin Straight, 73 anos, descobre que seu distante irmão está gravemente doente. Incapaz de dirigir, Alvin embarca em uma jornada de Iowa ao Monte Zion em Wisconsin, montando um cortador de grama. Lynch deixa de lado seu estilo surreal neste filme baseado numa história verídica. A jornada de Alvin é uma ode ao triunfo do perdão e da humildade sobre o orgulho, ao longo da qual ele, discretamente, ajuda a todos que encontra a entender a verdade bíblica. O filme é de uma beleza cósmica, perfeitamente acompanhada pela música etérea de Angelo Badalamenti -– um esplendor de roteiro, direção, atuação, elenco, e todas as coisas que fazem um filme brilhar. É como se o Espírito Santo interviesse para assegura que esta parábola moderna fosse bem retratada. Imperdível.


Mulholland Drive (2001): Depois que uma tentativa de assassiná-la a deixa com amnésia, uma linda mulher acaba no apartamento de Betty Elms, uma jovem aspirante a atriz que acabou de chegar a Hollywood. A mulher misteriosa adota o nome Rita e, junto com Betty, se propõe a descobrir sua identidade, uma missão que as levará a um cadáver. Depois de The Straight Story é o melhor filme de Lynch. Neste fascinante thriller o diretor atinge novos patamares de fascínio mesmérico, graças a visuais irradiantes e uma incomum intensidade emocional. A história é contada em duas partes cronologicamente invertidas: as duas mulheres lascivas se desentendem, Diane (Betty) encomenda a morte de Camilla (Rita) abrindo as portas de seu inferno e levando-a ao suicídio, com ambas almas se reencontrando no limbo (como Betty e Rita) onde aguardaram o dia do Juízo Final. Uma definição de filme noir é que este versa sobre personagens que cometeram um crime ou um pecado, estão imersos na culpa e temem que terão o que merecem. Mulholland Drive evoca este sentimento de culpa noir, sem se apegar a nada específico. Um belo truque – puro cinema.

©2019 by Cultura Animi

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