“O pior do comunismo não é a opressão, mas a mentira.” – Aleksandr Solzhenitsyn
“Oh, como é desolador, terrível, viver num país assim!” – Aleksandr Solzhenitsyn sobre o ambiente de impunidade solapando a mente dos jovens
ArquipélogoGulag é um catálogo da tentativa do Estado em destruir o conceito de consciência, demonstrando o que acontece com a sociedade e o mundo quando homem e vida são reduzidos a ideologia. Se em Memórias do Subsolo Dostoiévski explora quais seriam os impactos nefastos sobre a humanidade das radicais ideias socializantes do século XIX, aqui Solzhenitsy apresenta o que realmente aconteceu.
Em ambas obras a natureza humana é confrontada com a visão materialista do homem, incluindo o compromisso com o determinismo, a implacável crueldade com aqueles que se opõe ao “progresso”, e a falsa desculpa da busca pelo novo homem e um mundo melhor. A diferença é que Dostoiévski combatia a teoria, enquanto Solzhenitsy denuncia o resultado de sua aplicação na vida concreta e real.
Em fevereiro de 1945, Solzhenitsyn, recém-promovido a capitão por seus atos de bravura em combate, é convocado ao quartel-general no que parecia ser um requerimento de rotina. Mas lá chegando tem suas divisas arrancadas e recebe ordem de prisão por agentes da Smerch (contraespionagem militar). Seu crime fora trocar cartas com um amigo no fronte ucraniano nas quais, num pequeno ato de consciência, criticava os privilégios no Exército e a conduta de Stálin em relação à guerra.
Seu destino já estava selado, se ele não providenciasse evidências contra si mesmo, elas seriam forjadas pelos agentes. Torturado física e mentalmente, Solzhenitsyn finalmente assina uma confissão – numa sociedade injusta, a legalidade é tudo. Ele é sentenciado a oito anos de trabalhos forçados. Estima-se que 20 milhões de pessoas morreram nos campos de trabalhos forçados soviéticos, pessoas comuns, pessoas inocentes, vítimas de uma sistemática política de terror.
Em Arquipélago, Solzhenitsyn documento o fato deste terror não ser obra da aberração de um homem, Stálin, mas sim originar-se na essência do Comunismo e da Revolução Bolchevista. Lênin pregava o regime de terror para eliminar qualquer um que pudesse representar algum perigo. O princípio era simples: prender ou fuzilar pessoas randomicamente, aterrorizando os demais a total submissão. Todo o sistema governamental açoitava os presos. Interrogadores, juízes, oficiais de justiça, agentes – todos acreditando estarem cumprindo seu dever patriótico.
Nos tempos de faculdade não permitiram Solzhenitsyn estudar os clássicos, e ele optou pela matemática. Agora, após seis meses de trabalho árduo ele foi transferido para um campo onde havia pesquisa científica e trabalhou em cálculos matemáticos – esta transferência salvou sua vida. Após oito anos foi julgado novamente em absência e exilado no Cazaquistão sem poder de lá deslocar-se.
Diferentemente da esmagadora maioria dos ex-presos, Solzhenitsyn decide não se calar. Acreditando ser seu dever assegurara que todos aqueles que sofreram tamanha atrocidade não fossem esquecidos, e escreve Um dia na vida de Ivan Desonivich, descrevendo um a jornada na vida de um preso naqueles campos. Quis o destino que naquele momento o Partido Comunista deseja-se lavar as mãos e culpar Stálin pelos crimes passados, e a publicação do livro é aprovado.
Solzhenitsyn é convidado a filiar-se ao PC e escrever sob a orientação deles, mas ele se recusa, sendo humilhantemente expulso da união dos escritores (com isto impedido de publicar novos títulos), e tendo todos seus escritos confiscados. Mas ele não para de escrever, e com base em 227 testemunhos escreve Arquipélago, ou “a história do nosso sistema de esgoto” como ele chamava. Ele conversa off the record com o New York Times sobre a perseguição que sofria, mas a conversa vaza e Solzhenitsyn perde a cidadania russa, é impedido de receber o Prêmio Nobel em 1970 na Suécia, e é exilado. Arquipélogo é contrabandeado para fora do país
O livro detalha as “epidemias de detenção” (particularmente as de 1918-20, 1929-30, 1937-38 e 1944-46) que, além de eliminar inimigos políticos (e resolver rusgas pessoais dos poderosos do partido), visava provocar o mais absoluto terror na população. Cada região política tinha cotas de detenções a cumprir – era a “limpeza da terra russa de todos e quaisquer insetos nocivos” dissera Lênin. Os casos são incontáveis, mas este é emblemático: Em 1937 apareceu na recepção da NKVD (depois KGB e hoje FSB) de Novoteher Kassak uma mulher perguntando que destino deveria dar a uma criança de peito que tinha fome, de uma vizinha detida. “Sente-se”, disseram-lhe, “vamos esclarecer isso.” Esperou duas horas e levaram-na da recepção à cela: era preciso completar urgentemente a cifra prevista e faltavam agentes para mandá-los percorrer a cidade, e aquela mulher já estava ali mesmo!
A perseguição não perdoou ninguém: (a) funcionários do antigo regime eram todos detidos e fuzilados, (b) antigos aliados na revolução foram dizimados,(c) estudantes, professores e intelectuais, enfim todo com capacidade de entender o que acontecia eram presos ou fuzilados, (d) nobres (e suas famílias) eram mortos por terem sido nobres, (e) engenheiros e técnicos eram publicamente humilhados, presos e fuzilados como responsáveis pelo fracasso econômico, (f) a religião foi radicalmente exterminada, com detenção em massa dos clérigos – Tânia Khodkévitch foi condenada a dez anos por escrever os seguintes versos:
Podes orar livremente,
Mas… de modo que só
Deus te escute
O Código Penal de 1926 apresenta no famigerado artigo 58 (crimes contra o Estado) toda a altivez do Partido perante seu súditos. Em seus parágrafos encontram-se as condições legais para, por exemplo, (a) encarcerar o operário que não cumpriu a cota de produção como sabotador e inimigo da revolução, (b) fuzilar ao regresso os soldados que foram aprisionados pelo inimigo, (c) prender aquele cuja amiga de uma amiga de sua mulher mandou fazer um vestido na mesma modista de um diplomata estrangeiro, (d) prender por intenções terroristas uma rabugenta vendedora do mercado que ousou dizer a um membro do partido “Ora, vá para o inferno!”, (e) converter em inimigo do povo o marido que matou o amante de sua mulher pelo amante ser do Partido, (f) delegar ao comissário instrutor o poder de definir se as ações de terceiros eram premeditas ou não, e (g) prender ou fuzilar qualquer um acusado de não denunciar – “Sabia e não disse é o mesmo que se tivesse feito ele próprio!”. (Um encanador desligava o aparelho de rádio do seu quarto sempre que transmitiam as intermináveis cartas de Stálin. Um vizinho o denunciou como elemento socialmente perigoso – o encanador foi condenado a oito anos no cárcere.)
Solzhenitsyn comenta a pusilanimidade, impotência e fatalismo com que presos aceitavam seu injusto destino, e principalmente, do resto da população apavorada, temendo serem os próximos a serem levados – maioria inerte numa miragem de esperança, “ovelhas pacíficas para os dentes do lobo”. Afirma ter faltado ao povo russo suficiente amor à liberdade, e mais que tudo, a plena consciência da verdadeira situação – daí terem merecido tudo quanto sobreveio sobre eles.
O pavor era geral, mesmo dentro do Partido, eis um caso exemplar: ao final da leitura de uma mensagem de Stálin na conferência do Partido de uma região de Moscou todos se levantam para aplaudir, mas quem terá coragem de ser o primeiro a deixar de aplaudir? Os minutos vão transcorrendo entre urros e disputa de quem demonstra mais entusiasmo. Os delegados olham-se uns aos outros com débil esperança que aquela loucura termine, mas ainda fingindo êxtase nos rostos. Dez minutos escoam-se! Até que no décimo primeiro minuto o diretor da fábrica de papel, fingindo-se atarefado, deixa-se cair no seu lugar na mesa diretora. Era a saída que esperavam, e todos juntos param de aplaudir e se sentam. Naquela mesma noite, o diretor da fábrica de papel é preso, e ouve do comissário instrutor “Nunca seja o primeiro a deixar de aplaudir!”
O campo também não escapou do artigo 58: (a) o agrimensor Saunin foi condenado a quinze anos pela morte do gado e as más colheitas (e os líderes do distrito foram fuzilados pelo mesmo motivo), (b) um secretário do Partido ao chegar à aldeia é perguntado por um velho camponês se ele sabia que há sete anos os kolkhozianos (membros das fazendas coletivas) não recebiam nem um grão de cereal, mas só palha, e, mesmo esta, pouca, em resposta o secretário lhe tasca dez anos de reclusão por agitação antissoviética, (c) outro camponês, pai de seis filhos, trabalhava duro na esperança de ser recompensado, e foi, com uma condecoração, ao recebê-la pergunta se poderia trocar por uma arroba de farinha, e em resposta ele e seus seis filhos são deportados.
No livro são descritos os brutais interrogatórios, onde os comissários não buscam a verdade mas a confissão de culpa. Não havia inquérito prévio para verificar se havia precedentes para a instrução, não se buscavam provas: um tchekista escreveu que o destino do instruído (neste caso a vítima) era selado por sua origem, nível de instrução ou classe a qual pertencia. Solzhenitsyn lista mais de cinco dezenas dos métodos de tortura largamente utilizados para extrair a confissão do crime inexistente, do simples espancamento a real ameaça de prender os familiares do instruído. E de como os comissários divertiam-se em elaborar e aplicar novos métodos de triturar as vítimas.
Há extensas narrações sobre a criminalização dos presos de guerra russos e emigrados russos que ao regressarem ao país, muitos ardilosamente atraídos pelo governo, eram aprisionados por anos. Seus crimes? Conheceram a realidade no ocidente e poderem narrá-la aos conterrâneos, indo de encontro a narrativa oficial.
O processo era executado por “bestas humanas especialmente amestradas”, homens sem moral, cínicos, perversos e sem honra – homens desviados. “Deem-nos um homem, o caso nos criaremos!” - eis como muitos deles pilheriavam. O sucesso em extrair a confissão e cumprir a cota de presos condenados era garantia de uma vida mais cômoda: soldo complementar, condecorações e promoções. O instinto de poder e enriquecimento bate mais forte no peito de um revolucionário comunista – “a ânsia de lucro é a paixão de todos eles”. Daí a irritação com o inocente que não confessava seus crimes! O poder corrompe facilmente quem não tem horizonte de consciência e fé em algo superior, tornando-se nas mãos destes um “veneno cadavérico”. E a ideologia fornecia a desejada justificação para toda maldade, não só desculpando seus atos como ainda gerando elogios e testemunhos de respeito. É a injustiça, crueldade e matança em nome do amor pela humanidade e a construção de um mundo melhor! A ideologia permite ao revolucionário transpor a linha que um malfeitor shakespeariano nunca ultrapassaria, e ainda manter os olhos claros. Abandona-se o triunfo da virtude e a punição do vício, envenenando o espírito que passa a chafurdar no abismo de trevas.
A imensa maioria capitulou diante daquele barbarismo, mas uma diminuta elite da natureza humana revoltou-se contra a morte nas mãos da ideologia. Apenas o homem que entendia ter perdido todo seus bens, familiares e amigos, e desprendido-se do seu corpo, mas mantendo seu espírito e consciência poderia sobreviver moralmente àquele processo – só triunfa aquele que renunciou a tudo deste mundo. E face a um preso com tal ânimo a instrução judicial tremia. Muitos preferiram a morte física a confessar um crime que não cometeu ou denunciar quem quer que fosse – salvaram-se espiritualmente.
Aquele que tinha um amplo horizonte de consciência opunha-se à ideologia, recusando-se a “sobreviver a qualquer preço”. Para o autor “o propósito da vida terrena não está, como nos dizem, em prosperar, mas em desenvolvermo-nos espiritualmente.” Contrastando com a visão marxista-leninista do homem como mera engrenagem do todo social (sendo uns dignos de serem esmagados como “insetos”), Solzhenitsy defende o valor infinito de cada ser humano – Arquipélogo Gulag é um louvor ao indivíduo, lembrando que cada ser humano esmagado pelo totalitarismo era uma joia inestimável, e que seu nome precisa ser resgatado do olvido.
Notas
Aleksandr Isayevich Solzhenitsyn (1918-2008) nasceu em Troitse-Lykovo, cerca de Moscou, Rússia.
Outras obras relevantes do autor: Um dia na vida de Ivan Desonivich (1962 – romance), O primeiro círculo (1968 – romance) e Agosto, 1914 (1984 – romance, primeiro volume de The Red Wheel).
Arquipélo Gulag foi escrito entre 1958 e 1968, e publicado em 1973.
Solzhenitsyn foi internado num campo de concentração no período de 1945-1953. Em 1950 foi transferido para o campo de trabalhos forçados em Ekibastuz no Kasaquistão que lhe proveu o material para Ivan Denisovich.
No exílio (1974-1990) Solzhenitsyn descobre um novo senso de identidade. Entende como a milenar unicidade da cultura russa tinha que ser destruída pelo comunismo por representar valores eternos. Comunismo é fundado na crença da não existência de Deus, da verdade ou de certo e errado absolutos – “o partido pode fazer o que quiser” (Stálin). Solzhenitsyn acreditava que no antigo conceito russo de Deus (um deus politizado) residia a redenção e salvação de seu país.
Em 1978, discursando em Harvard, Solzhenitsyn enumera os erros que observava nas democracias ocidentais: (a) o ocidente não devia forçar seu modelo politico capitalista e democrático a todas nações do planeta, (b) os ocidentais colocavam a legalidade acima da justiça, transformando-se em uma sociedade litigante, (c) a imprensa destrói reputações baseando-se em rumores de fontes anônimas, transformando a liberdade de imprensa em um regime de terror, (d) a sociedade ocidental abraçou o materialismo e marginalizou Deus, e (e) Deus deixou de permear a vida das pessoas e guiar seus valores.
Nos seus últimos anos de vida, já de volta na Rússia (1994-2008), Solzhenitsyn foi largamente ignorado tanto e seu país quanto no Ocidente.
Polícia secreta soviética-russa sempre mudou de nome, mas nunca de sua essência: Tcheká (1917-22), OGPU (1923-34), NKVD (1935-43), MGB (1944-53), KGB (1954-91) e FSB (doméstico) / SVR (externo) (1991-hoje).
Algumas das críticas que Solzhenitsyn faz a conduta de Stálin na GGII (e.g. destruição das linhas de fortificações) coincidem com os dados apontados por Viktor Suvorov em The Chief Culprit (a estratégia Icebreaker de destruição e conquista da Europa idealizada por Lênin e Stálin).
Os comentários sobre o dom do autor em detectar os delatores infiltrados nas celas das prisões remete aos campos mórficos discutidos por Rupert Sheldrake ("dons perdidos em meio a conturbada vida moderna").
Maxim Górki (1868-1936) é apresentado como “um idiota e um charlatão que justificava os verdugos” – era um empregadinho do partido como Jorge Amado e tantos outros no Brasil.
Dois passos para criar monstros ideólogos: (a) elimine o conceito de transcendência (religião), e (b) reduza o horizonte de consciência e capacidade de entendimento da realidade. Ambos largamente aplicados no mundo atual.