“O mundo padece da falta de fé em uma verdade transcendente.” – Charles Renouvier (1815-1903), filósofo francês
Impactado pelo Caso Dreyfus o autor pergunta-se neste livro se é legítimo alguém, em particular um intelectual, apoiar sua pátria mesmo se o governo erra.
Definiu o intelectual como um ser que vive no mundo das ideias e não no mundo prático, condenando seu engajamento em questões raciais, de nacionalidade ou de classes. Apenas a justiça seria uma causa aceitável.
Benda parece comparar os intelectuais modernos com Cálicle (diálogo Górgias de Platão), para quem os aspectos materiais é que são virtuosos e trazem a felicidade, ao passo que os intelectuais de valor seriam como Sócrates. Aquela nova atitude dos intelectuais é simbolizada pelo clamor de Marx para que os intelectuais deixassem de se dedicar em entender o mundo e passassem a empenharem-se em modifica-lo. Os intelectuais passaram a outorgar-se o direito e obrigação de interferir na vida social prática e concreta.
Os intelectuais traem sua função quando defendem a pátria ou uma determinada ordem ideológica deixando de lado a justiça e a razão. Ainda mais quando tal ordem abole o debate e prega a harmonia perfeita (impossível num sociedade livre). A traição consiste em não rebelar-se contra as injustiças em nome da sua nacionalidade ou apego a uma ordem estabelecida por determinada linha política.
Outra felonia ocorre com o apego do intelectual com uma ideia de evolução do mundo numa união mística com o “devir histórico” (determinismo histórico – principais deterministas históricos Hegel, Marx e Comte). É fruto da húbris acreditar ser coautor do devir – crer-se um deus. O intelectual sai do mundo abstrato e dá vazão aos seus desejos buscando transformar o mundo prático, e.g. intelectuais orgânicos. A ideologia substitui a defesa da verdade. O intelectual deve estar preocupado com a universalidade dos valores e não perder-se nas particularidades das variações morais de seu tempo. Um intelectual nunca deveria reduzir-se a “um homem do seu tempo”, mas sim representar “todos os tempos”, sempre olhando para o eterno e permanente.
O intelectual engajado despreza aquele que se preocupa com tais valores universais por considera-los abstratos e distantes dos problemas atuais do seu tempo, considerando-os inúteis por não dedicarem-se aos problemas políticos, sociais ou econômicos nos quais os primeiros estão engajados. A mesma deterioração acontece na religião, e.g. a Teologia da Libertação quer resolver aquilo que acredita serem as injustiças do mundo e esquece as almas dos fieis.
A ideia de produzir um mundo perfeito é gnóstica e pecadora quando diviniza o mundo como fazem, por exemplo, os ambientalistas. Ao ser incapaz de imaginar uma missão espiritual o homem prende-se a objetivos materiais. Os intelectuais modernos deixaram de educar o homem para a sabedoria e elevação da sua alma para treiná-los para o combate social. Abandonam-se os grandes ensinamentos sobre a realidade e os princípios para enchafurdar os alunos em questões de cidadania e inclusão social – e.g. sai o Cristianismo e entra em seu lugar o ecologismo.
O intelectual verdadeiro está disposto a sacrificar sua vida, como Sócrates, para defender sua posição quando ela é contrária a do Estado e/ou da sociedade. O intelectual engajado, como um demiurgo, quer transformar o mundo (ver O Projeto da Paz Eterna de Immanuel Kant – antecipa o projeto totalitário da ONU), unindo-se a uma ideologia que acredita poder satisfazer seus apetites materiais.
Os valores intelectuais, cujos principais são a justiça, a verdade e a razão, destacam-se por três características:
Estáticos: são constantes ao longo de tempo e independem de acidentes como local, raça ou condição social – e.g. valores de Antígona.
Desinteressados: não visam objetivos práticos e sim subjugados pelo universal e os princípios primeiros.
Racionais: são valores que cuja adoção implique o exercício da razão.
O autor via o mundo de então moralmente subordinado a vida política, tanto nas paixões populares de classe e nacionalistas, como na adoção destas paixões pelos intelectuais que deveriam questioná-las. Os intelectuais – homens de ciência, artistas, escritores, educadores e filósofos – foram assimilados (na realidade parece que mais que assimilados foram os intelectuais os incentivadores aquelas paixões, e.g. Marx e a divisão de classes). Os intelectuais modernos fazem o mal e honram o mal.
Platão: “A moral determina a política.” Maquiavel: “A política não tem relação com a moral.” Maurras: “A política determina a moral.”
Como brâmanes, os intelectuais tem grande responsabilidade na condução da sociedade. O sicário comunismo é germinado nas bibliotecas no século XIX, o nazismo nasce dos intelectuais niilistas do século XX. É o grupo humano mais perigoso dado seu imenso poder de orientar a conduta alheia. A qualidade de tal direcionamento dependerá do carácter do intelectual (brâmane).
A traição intelectual é a destruição da possibilidade civilizatória, da própria potência de sobrevivência humana. Cálicle venceu Sócrates, o mundo padece.
Notas
Julien Benda (1867-1956) nasceu em Paris, França.
Otto Maria Carpeaux dizia que Julien Benda era insuportável, de difícil convivência.
Escreveu cinquenta livros mas notabilizou-se com A Traição dos Intelectuais publicada em 1927 – republicado em nova edição em 1948 com longo e importante prefácio.
Sua posição pelo intelectual não engajado custou-lhe o apelido de Clerc de Lune (intelectual do mundo da lua).
Em 1984 Alfred Deryfus foi falsamente acusado de traição e deportado para o presídio da Ilha do Diabo na Guiana Francesa. Em 1896 descobre-se o verdadeiro traidor e que o governo francês havia forjado as provas contra Dreyfus. O escritor Émile Zola comanda a reação contra o governo com uma carta aberta ao presidente iniciando com a frase “J’accuse!”. Contrariamente o grupo Action Française (composto principalmente por Maurice Barrés, Charles Péguy e Charles Maurras) defende o governo justificando a injustiça a título de benefício da maioria.
Pequena bibliografia sobre os intelectuais: O Ópio dos Intelectuais (1955) de Raymond Aron, Les Intellectuels en Chaise Longue (1974) de Georges Suffert, La Défaite de la Pensée (1987) de Alain Finkielkraut, Os Intelectuais (1988) de Paul Johnson, e O Terrorismo Intelectual (2000) de Jean Sévillia.
Catão de Útica suicidou-se quando Pompeu é derrotado por Júlio César e a república dá lugar ao império – símbolo do herói que não se deixa subordinar pelo poder.
O Protestantismo subjugou-se ao Estado, auxiliando este a separar-se da Igreja (e.g. Anglicana e Luteranismo) – foi a laicização da Igreja.
Entre os intelectuais atacados estão os representantes da Action Française, os pragmáticos William James e Charles Pierce, o colonialista Joseph Rudyard Kipling, os politicamente engajados Gabriele d’Annunzio, Miguel de Unamuno e Vicente Blasco Ibáňez.
A traição dos intelectuais alinha-se a deterioração da casta dos brâmanes no Kali Yuga, quando substituem seus valores pelos das castas mais baixas.