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Fedão de Platão

E o que queremos, declaremo-lo de uma vez por todas, é a verdade. ... se credes em mim, render-vos-eis menos à autoridade de Sócrates do que à verdade.” – Sócrates define o filósofo

Personagens Principais Sócrates – filósofo

Personagens Secundárias Fedão – jovem discípulo de Sócrates, narrador Equétrace – jovem pitagórico, interlocutor de Fedão Xantipa – esposa de Sócrates Critão, Símias, Cebes e outros – discípulos e amigos de Sócrates

Encarcerado, aguardando sua execução, Sócrates, sereno e até feliz, recebe amigos e discípulos, e faz uma defesa da vida após a morte e da reencarnação (ideia platônica). Trata-se da primeira demonstração da realidade suprassensível, e dos conceitos platônicos sobre o destino das almas – apresentando os principais fundamentos da sua filosofia.


Sócrates alega que a morte é benvinda ao filósofo, mas não sem antes descartar o suicídio (segundo os mistérios órficos os homens estão numa prisão dos deuses de onde não podem escapar para não desagradá-los).


O corpo contamina a alma e a deteriora, após a morte a alma terá maior facilidade para ver as coisas como elas verdadeiramente são – o filósofo está ligado à alma. Somos enganados pelos sentidos e pelos prazeres do corpo. Só teme a morte quem não ama a sabedoria, pois prefere as honrarias, as riquezas e os prazeres. Não devemos ser escravos do corpo e suas paixões. A verdadeira virtude é a purificação de todas as paixões – aspecto pitagórico iniciático (Platão era pitagórico).


Sócrates diz que a alma está associada àquilo que é eterno, que não morre e está num grau mais alto que o corpo, e imagina que irá para um lugar muito bom onde terá chance de conversar com pessoas do passado. Os sentidos, captados pelo corpo, são uma forma de embriaguez (e.g. uma forte emoção embaça o pensamento). Livrar-se da tirania do corpo é um pensamento eminentemente cristão.


Questionado sobre a imortalidade da alma, Sócrates argumenta sobre o princípio pitagórico de que as coisas se constroem por opostos. Para haver o morrer tem que necessariamente existir o nascer – a morte se origina da vida e esta da morte. Diferentemente do Cristianismo (renascimento em outro mundo – vida eterna), os gregos não consideram outro lugar de renascimento para a alma, assim o renascer (reencarnação) é o regresso da alma na Terra. (o argumento é débil – a origem das primeiras almas e o crescimento populacional não é explicado).


Na sequencia, Sócrates apresenta a ideia da reminiscência como segunda prova da imortalidade da alma, pois esta tem por reminiscências as coisas como de fato são. Só lembramos porque nossas almas lembram-se dos vislumbres na planície das verdades (melhor detalhado no diálogo Fedro). Para eu saber que dois cachorros diferentes são cachorros eu preciso ter o conceito/essência/forma de cachorro em minha mente (ambos se assemelham ao cachorro ideal) – a alma tinha que ter visto esta essência antes de encarnar/reencarnar (o próprio conceito de semelhança e dessemelhança é inato).


As coisas deste mundo são múltiplos (cópias imperfeitas) da ideia (eidos) / forma perfeita existente no Mundo das Formas/Ideias. As “cópias” são captadas pelos sentidos (seres sensíveis), mas as formas/ideias ideais só podem ser pensadas (seres inteligíveis). Platão pondera que a memória é deficiente e as reminiscências são muito diluídas, cabendo ao filósofo ajudar aos demais a recordarem como as coisas são de fato (ver e saber como a coisa é).


O corpo, assim como toda matéria, é elemento composto (Terra, Fogo, Ar e Água) e com o tempo se desfaz, retornando aos seus elementos básicos – somente os elementos simples são estáveis e irredutíveis. As formas ideais são simples (como os quatro elementos físicos) e também perenes. As coisas concretas, visíveis, como o corpo são compostas, já a alma, como as formas ideais, é simples e imortal.


As almas demasiadamente apegadas ao corpo, enquanto vivo, terão receio de entrar no Hades, e seu conteúdo psíquico torna-se espectro penado e incorpora-se em formas mais baixas (conceito de metempsicose). Quatro são os possíveis destinos da alma após a morte do corpo:


1. Incuráveis: Cometeram faltas inaceitáveis ("roubos de templos, erros repetidos e graves, homicídios iníquos e contra a lei"). São lançadas para sempre no Tártaro.

2. Curáveis: Cometeram crimes graves ("violência contra pai e mãe, homicídios") num momento de cólera e se arrependeram. Lançadas no Tártaro e depois de um ano atiradas no rio Cocito (homicidas) e no rio (Piri)flegetonte (violentos contra pai e mãe), de onde, se perdoadas por suas vítimas, podem passar para o lago Aquerúsia.

3. Medianas: Cometeram faltas sanáveis. Transportadas pelo rio Aqueronte, passam a residir no lago Aquerúsia onde se purificam pelo tempo "marcado pelo destino" e renascem como animais (e até como seres humanos, caso das melhores). Destino da maioria das almas.

4. De vida bela e santa: Atravessaram a vida com pureza e moderação. Vivem na terra e não nas trevas, mas as purificadas pela filosofia são instaladas em lugares boníssimos. A filosofia purifica a alma e a torna melhor.


Sócrates conclui dizendo que o filósofo está associado à pureza da alma e, portanto, não tem nenhum problema em deixar o corpo.


Num trecho crítico a filosofia platônica, Sócrates alega ter iniciando seus estudos pela análise da natureza (os filósofos naturalistas), mas não encontrou ali forma de descobrir de fato qual a causa das coisas (a descrição do fenômeno não é sua causação ou explicação) – diz que os naturalistas só descreviam as coisas sem conseguir explica-las.


Para entender as causas Sócrates descrever ter feito uma segunda tentativa (segunda navegação (remo) – mais árdua que a primeira tentativa/navegação (velas)), e vai servir-se da razão para buscar a verdade das coisas – passagem da Física para a Metafísica aristotélica. Através das reminiscências (experiência anterior da alma) o homem recorda as Formas pelas quais intui (nous aristotélico) o significado das coisas (utiliza números e matemática como exemplos) – Platão, através de Sócrates, descreve a Unidade e Multiplicidade. E antecipa o Mito das Cavernas afirmando vivermos no mundo das sombras e não no mundo das ideias/formas.


Neste diálogo Sócrates deixa como herança qual o modo certo de viver, ou seja, baseado na salvação da alma. Filosofia é a capacidade de olhar e ver o que é. Sócrates foi um presente à humanidade.


 

Notas

  • Platão (427-348 a.C.) nasceu em Atenas ou na próxima Egina.

  • Filho de Ariston, descendente do rei Codro, Perictíone e de um irmão de Sólon do lado materno. Ainda na juventude, recebe o apelido de Platão (“largo”) por razões incertas, mas provavelmente ligadas ao seu tipo físico. Seu nome era Arístocles.

  • Aos 19 anos torna-se discípulo de Sócrates. Sua obra escrita nos chegou aparentemente completa (26 diálogos são considerados legítimos).

  • Segundo o matemático e filósofo Alfred North Whitehead (1861-1947), “A mais segura caracterização da tradição filosófica europeia é que esta se constitui de uma série de notas de rodapé a Platão.”

  • Os subnomes dos diálogos, e.g. Fedro, sobre o Belo, foram dados por Trasilo no século I, na Biblioteca de Alexandria que então comandava.

  • Fedão, sobre a alma é diálogo legítimo (gênero moral), provavelmente escrito no período mediano, fase de ascensão, do autor.

  • Sócrates teve que esperar mais de um mês a morte no cárcere, pois uma lei vedava as execuções capitais durante a viagem sagrada anual a Delos para celebrar a ajuda que Apolo havia dado a Teseu para vencer o Minotauro que obrigou durante anos Atenas a pagar um cruel contributo.

  • Os Onze que cuidam da morte de Sócrates são executores sorteados entre os cidadãos.

  • Sócrates insinua que dor e prazer são da mesma natureza e só variam em quantidade (elementos quantitativos e não qualitativos).

  • Para Platão a alma é permanente e não é sensível, o corpo é físico e sensível, e os animais têm somente alma coletiva (relação aos instintos transmitidos por campos mórficos).

  • Para Platão existe a alma e o corpo. Para Aristóteles existe a alma, o corpo e o espírito sendo que a alma psíquica se desfaz enquanto que o espírito (nous) não se desfaz. No sistema cartesiano só existe o corpo e a mente. Descartes retira o espírito.

  • A existência do corpo (físico), da mente (sutil) e do espírito (evangélico) corresponde aos três níveis da realidade.

  • Não somos criadores de nós mesmos, é impossível conhecer a razão de nossa existência – esta apenas poderá ser revelada pelo Criador. São os grandes mistérios aos quais nos devemos submeter com humildade e deslumbre.

  • Para Kant a realidade bruta, a realidade tal como se apresenta em termos brutos não pode ser conhecida, é incognoscível. Ela é modificada, parametrizada, organizada por uma coisa que é inata em nós chamada de “formas apriori” que transformam os dados brutos da realidade em dados inteligíveis para nossa mente – como se a mente arbitrasse sobre a realidade. Diferentemente de Platão, Kant nega a autonomia da realidade (não haveria nada fora de nossa mente que pudéssemos conhecer na realidade).

  • O idealismo kantiano é o idealismo humano, restrito à mente. Enquanto que na proposição de Platão tudo vem de fora de nós. Por isso é que de Kant chegamos a todos os relativismos possíveis. A primeira afirmação que nasce disso é que cada um tem a sua verdade.

  • "Saber é conservar o conhecimento e não perdê-lo". Saber é algo que deve ter manutenção perpétua. A aquisição de conhecimento/sabedoria está sujeita a lei de rendimentos decrescentes. Já o ato de emburrecer é indolor e invisível. A burrice não tem limitação, ela sempre pode ser maior do que antes.

  • Simbologia dos quatro temperamentos: (1) temperamento terrestre (sujeito pé no chão, conservador), (2) temperamento fogo (pessoas explosivas), (3) temperamento do ar (pensadores, inconsistentes), e (4) temperamento aquático (pessoas emotivas). Os temperamentos podem misturar-se.

  • Os gregos cortavam os cabelos em sinal de luto.

  • Os misantropos são os inimigos da humanidade, perderam a confiança na humanidade. Já o misólogo é o inimigo da palavra, perdeu a confiança na razão.

  • O objetivo de Sócrates não é convencer seus alunos, mas convencer a si mesmo. Ele não quer impor sua opinião, mas saber a verdade. Logo morrerá e saberá a verdade.

  • Doxografia: metodologia aristotélica, relato das opiniões anteriores sobre um determinado assunto.

  • Tensão entre múltiplos e UNO – indivíduo e coletivo – ambiguidade assimétrica, qualquer ser humano tem a potência de representar a humanidade no tempo e espaço, representar a espécie, mas uma sociedade não tem está potência representativa.

  • Tudo que é realmente belo envelhece bem, pois realmente participou da Beleza, não apenas acidentalmente.

  • Projeto Socrático: a missão é recuperar a identidade entre a coisa (o que a palavra representa) e o logos (palavra, discurso humano) – combate a inflação de sofistas, retóricos e erísticos – mercantilismo da palavra.

  • Projeto platônico: recuperar a identidade entre o Cosmos (ordem) e a pólis.

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