“As Graças procuravam um altar perene; acharam-no na inteligência de Aristófanes.” – epigrama de Platão dedicado a Aristófanes
Aristófanes é o mais famoso comediógrafo da Antiguidade grega, sendo o único representante da Comoedia Vetus (Comédia Antiga) cujos escritos nos chegaram íntegros. Diferentemente do mundo mitológico da tragédia, estas comédias abordavam de forma fantástica temas contemporâneos de Atenas, satirizando assuntos e pessoas públicas, sendo fonte autêntica para a reconstrução dos detalhes da vida cotidiana de Atenas na antiguidade, e documento vivo da liberdade de expressão de então. Os antigos denominaram a comédia como “espelho da vida”, pois nela se pensava na natureza humana, sempre igual, e nas suas fraquezas.
A tarefa da comédia converteu-se no ponto de convergência de toda a crítica pública, censurando não só os indivíduos, não só esta ou aquela atividade política, mas também a orientação geral do Estado ou o caráter do povo e suas fraquezas. Um de seus inapreciáveis valores consiste em nos apresentar conjuntamente o Estado, as ideias filosóficas e as criações poéticas na corrente viva destes movimentos.
A comédia satírica de Aristófanes é eminentemente política. Conservador, defende os “bons velhos tempos” denunciando as inovações de intelectuais e políticos. Tendo como seus principais adversários os sujeitos poderosos que nada valiam. Sua dor era ver tudo aquilo que o passado tinha de valioso sendo abandonado, sem o ver substituído por algo novo também valioso.
Considerado poeta tão grande quanto Ésquilo, defendia seu sentimento moral ofendido de forma insolente e cruel, não poupando obscenidades. O uso de gírias e de calembures, o emprego de gestos corporais, a prática de metaheaters (fazer graça dos próprios truques teatrais empregados) e as referências a temas e pessoas da cidade relevantes apenas naquele momento dificultam a tradução e o entendimento das peças, muitas vezes desperdiçando sua comicidade (as peças eram escritas para provocar gargalhadas).
A estrutura das comédias incluía elementos não encontrados na tragédia, entre eles o prólogo (relevante dado o caráter inédito dos temas), a parábase (comunicação direta do autor com o público através do corifeu) e o agon (longo debate entre duas personagens). Porém a base de intercalação de episódios com o canto do coro era a mesma em ambos os gêneros teatrais.
Aristófanes viveu os difíceis tempos da guerra do Peloponeso, os anos da peste (que dizimou mais de um quarto da população de Atenas), a desastrosa expedição à Sicília e, finalmente, a derrota ateniense contra Esparta. Mas ele ensinou aos atenienses, através de suas comédias, que devemos rir de nossos desastres e no riso também buscar a verdade.
Seguem comentários sobre cada uma de suas comédias em ordem cronológica de representação:
Os Arcanenses Terceira peça encenada de Aristófanes e a mais antiga que chegou até nós (425 a.C.). Já no sexto ano da guerra do Peloponeso, restritos atrás dos muros da cidade a cada investida espartana e afligidos pela fome e pela peste, os atenienses começam a ansiar por uma paz que não tinha perspectiva de ser alcançada. O camponês Diceópolis consegue através dos deuses uma trégua particular e volta a prosperar, mas entra em conflito com os arcanenses que formam o coro, velhos fazendeiros e carvoeiros que eram favoráveis a guerra dado seu ódio por Esparta. Além de manifestar-se pela paz, o autor critica as dificuldades do cotidiano ateniense e a conduta desordeira das assembleias.
Por sua comédia anterior, Os Babilônios (perdida), Aristófanes é acusado por Cleón (demagogo favorável a guerra) de denegrir a cidade diante dos estrangeiros que assistiam ao festival. Nesta nova peça Aristófanes aproveita a parábase para avisar que responderá aos ataques do demagogo em sua próxima comédia.
Os Cavaleiros Aristófanes levou esta peça aos palcos atenienses em 424 a.C. no festival de Lenaia. É a resposta a Cléon que ele havia prometido em Os Arcanenses. O demagogo (Cleón como Pafaglônio) e o povo (Demos) são severamente expostos como indignos do Estado de Atenas e seu passado glorioso. O coro dos cavaleiros representa a aliança da distinção e do espírito contra a progressiva proletarização (embate de Créon e o Salsicheiro) do Estado.
As Nuvens Encenada nas festas Dionisíacas em 423 a.C. é uma contundente sátira aos sofistas como corruptores da educação. É a discussão entre os bons velhos métodos de ensino e os novos ensinados pelos sofistas, com destaque para o poder de argumentar uma injustiça como se justa fosse. O autor ridiculariza os novos métodos, e não deixa de alertar para os seus perigos.
Curiosamente Sócrates serve como alvo das piadas de Aristófanes apesar de nunca ter aberto uma escola ou cobrado para ensinar, e ter sido ardente inimigo dos sofistas. Talvez sua fama como principal filósofo da cidade tenha sido o critério de escolha do autor. Anos depois, durante seu julgamento, Sócrates repudia a figura aqui pintada por Aristófanes.
As Vespas Estreada em 422 a.C., a comédia é uma sátira ao sistema ateniense de tribunais do júri. Bdeliclêon (“inimigo de Cleón”) quer impedir seu pai Filoclêon (“amigo de Cleón”, orador demagogo e político corrupto) de seguir sendo jurado (função paga por sessão e principal fonte de remuneração para grande número de atenienses).
Divertida fonte de hábitos sociais em Atenas na época, e retrato do desvirtuamento da justiça quando colocada em mãos do populacho – Filoclêon apreciava ser jurado pela sensação de poder que lhe propiciava. Ao final Bdeliclêon consegue extirpar o vício mórbido do pai em ser jurado, mas não muda sua natureza antissocial.
A Paz Encenada pela primeira vez na Dionisias de 421 a.C.. O camponês Trigeu sobe aos céus num escaravelho para perguntar aos deuses a razão das guerras fratricidas na Grécia. Os mais sacrificados pela guerra conseguem libertar a Paz, para desespero daqueles que lucravam com o conflito. O estado de guerra ou paz soam mais como interesses individuais que valores universais, sugerindo o porquê da autodestruição do povo grego.
As Aves Estreada em 414 a.C., obtendo o segundo lugar. Euelpides e Pistêtairo, preocupados com os maus políticos em Atenas, buscam uma nova cidade para morar, e acabam fundando com as aves uma cidade entre o céu e a terra. Se em As Vespas o enfoque era no jurado, aqui são os cidadãos que se rebelam contra as ações judiciais e os julgamentos. Porém, as cidades são tão boas ou más quanto o agregado de seres que lá habitam, e a nova cidade vai apresentar os mesmos vícios de Atenas pois seus líderes repetem os mesmos erros.
Lisístrata (A Greve do Sexo) Comandadas pela ateniense Lisístrata as mulheres das cidades envolvidas na guerra do Peloponeso resolvem fazer uma greve de sexo até que seus maridos alcancem a tão desejada paz. Representa em 411 a.C., com os inimigos espartanos a 24 quilómetros da cidade, Aristófanes faz de sua comédia mais licenciosa um louvor a paz com o cessar daquela guerra fratricida.
Tesmoforiazusas (Só Para Mulheres) Nesta comédia encenada em 411 a.C. Aristófanes brinca com a fama de misógino de Eurípides, apenas para satirizar ainda mais as mulheres. Também é uma das poucas referências as Tesmoforias – festividade religiosa só para mulheres celebrando as deusas Deméter e Persefones – pois as manifestações festivas do coro parecem corresponder ao ritual observado nas festas.
Aristófanes aproveita para também ridicularizar os efeminados e seus hábitos abomináveis.
As Rãs Com a morte de Sófocles foi-se o último grande poeta trágico ateniense. Nesta peça encenada em 405 a.C. o deus Dionísio desce ao Hades para ressuscitar Ésquilo ou Eurípides na tentativa de resgatar o efeito educacional das grandes tragédias. Quer-se recuperar o ethos dos homens que venceram a guerra contra a Pérsia neste fim da guerra do Peloponeso. Depois de um embate entre os dois poetas mortos, Aristófanes escolhe, através de Dionísio, trazer Ésquilo de volta. Nada surpreendente para o autor moralista e defensor das tradições. O nome da peça vem do coro de rãs que coaxam enquanto Cáron transporta Dionísio adentro o Hades.
Nota-se a importância educacional e cívica que as tragédias tiveram no passado recente, bem como demarca diferenças importantes entre o metafísico Ésquilo e o mundano Eurípides. A audiência consagrou Aristófanes com uma coroa sagrada de oliveira e exigiu uma segunda encenação da peça.
Eclesiazusas (A Revolução das Mulheres) A peça de 392 a.C. satiriza as ideias coletivistas de certos sofistas na época. A ateniense Praxágora, cansada da incompetência dos governantes, lidera as mulheres na tomada do poder e instituição de leis coletivistas.
Interessante, mas para nada surpreendente, observar como a natureza humana, em suas virtudes e defeitos, nunca muda. As críticas aos políticos há 24 séculos em nada difere das atuais. E as ideias socializantes eram tão utópicas quanto hoje, não conseguindo disfarçar que a real motivação do socialista é apenas acender ao poder para obter vantagem sobre os demais.
Pluto (Um Deus Chamado Dinheiro) Apresentada em 388 a.C. é a última comédia disponível de Aristófanes. Crêmilo cura Pluto (deus da riqueza) da cegueira imposta por Zeus e os honestos enriquecem em detrimento dos desonestos. A sátira contra o enriquecimento ilícito dos políticos traz dois pontos interessantes: (1) a cegueira de Pluto corresponde a situação trágica do homem, pois nem sempre o trabalhador honesto enriquece, e nem sempre o que enriquece trapaceando paga em vida por seu crime; e (2) a personagem Pobreza lembra indiretamente sobre a diferença entre as castas. Afinal, se todos fossem brâmanes, quem governaria, empreenderia ou trabalharia?
Notas
Aristófanes (c. 450 a.C. – c. 388 a.C.) era cidadão ateniense.
Escreveu em torno de 44 peças, mas apenas 11 delas sobreviveram.
A Comédia Antiga coincide com o período áureo da preponderância política ateniense que termina com a derrota para Esparta (458 a 404 a.C.). É substituída pela Comédia Intermediária, que termina com a invasão de Felipe da Macedônia (404 a 340 a.C.), quando começa a Comédia Nova (340 a 260 a.C.).
A Comédia Antiga gozava de liberdade de expressão e era preponderantemente política, sem deixar de abordar as questões culturais atenienses. Já a Comédia Intermediária curva-se as novas contingências e abandona a política me favor de temas mais inocentes aos olhos dos ocupantes do poder, e.g. paródias dos mitos, sátira dos sistemas filosóficos, temas gastronômicos e a instabilidade da fortuna. Finalmente, a Comédia Nova volta-se para a vida privada, vasculhando as intimidades dos cidadãos como o amor, prazeres da vida e intrigas sentimentais.
A guerra do Peloponeso ocorreu entre 431 e 404 a.C.. A peste em Atenas ocorreu em 430, retornando no ano seguinte e no inverno de 427/426 a.C..
Outros autores da Comédia Antiga incluem Crátinos, Eupólide, Crates e Ferécrates. Nenhuma de suas peças chegou até nossos dias. Os primeiros dois, junto com Aristófanes, formavam, para os filólogos alexandrinos, uma tríade paralela a dos poetas trágicos.
As comédias de Aristófanes são fonte preciosa sobre como as tragédias eram encenadas e de seu importante papel social e moral na sociedade ateniense no final do século V a.C..
As comédias foram incluídas nas Dionisias em 486 a.C., e em outro festival (Leneias) ao redor de 440 a.C. Cinco peças por festival eram encenadas antes da guerra do Peloponeso, com os conflitos este número foi reduzido para três. Cada autor entrava com apenas uma peça.
Apenas três das peças sobreviventes de Aristófanes ganharam o primeiro prêmio nos concursos atenienses: Os Acarnenses, Os Cavaleiros e As Rãs.
O uso de máscaras de animais – rãs, vespas, pássaros – provêm de antiguíssima tradição.