“Quero saber quem sequestrou a inteligência brasileira. Quero o meu país de volta.”
– Bruno Tolentino (1940-2007)
“Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate.” – Dante Alighieri (A Divina Comédia – Canto III)
Os agentes da corrupção de que trata este livro não são políticos ou empresários, mas intelectuais. São, ao mesmo tempo, os corruptos, os corruptores e, paradoxalmente, as primeiras vítimas do fenômeno. O objeto de sua corrupção não é material ou financeiro, mas espiritual. Ao contrário da corrupção político-econômica, essa corrupção não traz benefícios (senão apenas ilusórios) para o corrupto, mas sim corrói aquilo que ele tem de mais precioso: a sua inteligência, a sua razão, a sua consciência moral. A partir daí, o dano causado pela corrupção em questão alastra-se avassaladoramente, de maneira ondulatória, debilitando a cultura como um todo. Diferente da outra – cujos efeitos podem ser revertidos, as perdas, recuperadas, e os responsáveis, condenados –, essa corrupção produz estragos duradouros e, muitas vezes, irreversíveis – fenômeno de degradação cultural e linguística (corrupção da inteligência) levando a tal estado de confusão e descarrilhamento cultural que fatalmente termina em uma calamidade social.
Em termos de escopo histórico, o livro lida especialmente com o período conhecido como “Nova República”, que se seguiu ao fim do período militar. Do ponto de vista de uma história intelectual, esse período é, em larga medida, um produto da imaginação dos intelectuais esquerdistas da geração 1960, assim como o regime militar fora obra de tecnocratas positivistas de décadas anteriores. Nos últimos 25 anos, sobretudo, assistimos a uma disputa entre duas forças políticas renascidas diretamente da derrota da intelligentsia da esquerda para os militares, duas forças que, desde então, vêm travando uma disputa intestina (ao mesmo tempo que a reforçam) pela hegemonia político-cultural de esquerda no país: o PSDB e o PT (os inimigos irmãos).
Finda a ditadura, a nossa intelligentsia passou, sem gradações, de uma depressão paralisante a um excitado ressentimento – ofendidos pela ditadura, os intelectuais brasileiros tiveram uma reação desproporcional e mórbida. Não conseguindo derrubar o governo, interiorizaram a revolta, puseram-se a derrubar a família, a moral, a gramática, a personalidade humana, os sentimentos, o respeito pela civilização, tudo aquilo que adorna e enobrece a vida, para disseminar em seu lugar um espírito de revolta nietzschiana. Há décadas eles vêm submetendo o público brasileiro a um estupro psicológico, sempre em nome, é claro, do combate à ditadura. Mesmo depois de extinta, a ditadura ainda é o pretexto legitimador de todas as baixezas.
O PT, em especial, é o primeiro partido de nossa história a encarnar a noção gramsciana de “intelectual coletivo”. Dizendo-se dos trabalhadores, ele é, por excelência, o partido dos intelectuais. Portanto, estes últimos são personagens cruciais para a compreensão da história brasileira da última década e meia, em que o seu partido passou a deter o poder de Estado, quando já detinha em larga medida o poder da cultura, a capacidade de moldar o imaginário coletivo, impor narrativas e definir os termos do debate público. O Mensalão e o Petrolão foram a expressão, na política, da hegemonia que a esquerda conquistara na cultura. Foram a tentativa de transpor essa hegemonia para o interior do Estado.
É por tudo isso que a intelligentsia esquerdista, de hábito tão ruidosa, recolheu-se num silêncio sepulcral em relação aos escândalos, só rompido, vez ou outra, para denúncias sobre uma pretensa trama da “direita” contra o “governo popular”. A esquerda brasileira sabia — mesmo que de maneira intuitiva — que o vexame político, no fundo, respingava sobre ela. Fora ela a responsável por erguer um ídolo de pés de barro diante de uma sociedade desconfiada (sujeito sem caráter ou princípios, tal como reconhecido até mesmo por alguns de seus ex-companheiros de partido, foi elevado ao posto de grande estadista e símbolo pátrio) . Portanto, quando as entranhas da quimera lulopetista foram expostas, restou à esquerda assumir o seu papel histórico favorito: o antifascismo (e nunca um mea culpa).
O Brasil colhe hoje os frutos podres plantados pela intelligentsia de então: uma taxa de mais de 50% de analfabetismo funcional entre universitários; a politização e ideologização dos currículos escolares; o obtuso sectarismo de estudantes que, sem saber escrever ou somar, foram educados para “mudar o mundo”; e, sobretudo, a manutenção no poder de uma seita política que parasita o país em benefício próprio. Há algo de muito errado quando a classe falante de um país só consegue dar ouvidos a militantes políticos e “movimentos sociais” — ou seja, ao “povo” organizado —, permanecendo surda à sinfonia cotidiana do cidadão comum. A linguagem corrente quedou refém de um ambiente cultural infestado de suscetibilidade patológica, refletindo na pobreza e superficialidade do debate público no país.
Os reais intelectuais desaparecem, cedendo lugar ao “proletariado intelectual” – professores universitários, mesmo aqueles cujo pensamento não poderia ser mais irrelevante ou excêntrico, passaram a exercer grande influência sobre os profissionais de imprensa (eles próprios membros daquele proletariado), sobretudo a partir do final da década de 1960, quando se desenvolveu nosso sistema universitário e foram criadas nossas pós-graduações. Quanto mais enfurnados em seus próprios valores, maneirismos e vocabulário, maior foi sendo o espaço que aqueles intelectuais passaram a ocupar no debate público nacional – um grupo de pessoas que, gostando de se autorrepresentar como aliadas dos pobres e dos necessitados, nutrem, não obstante, um mal disfarçado desprezo pelos valores destes, que, no fundo, julgam “ignorantes”, “atrasados” e “reacionários”.
O respeito à opinião (doxa), a qualquer opinião, mesmo às mais subjetivas e arbitrárias, converteu-se no Brasil em mandamento sacrossanto – reina entre nós o mais completo subjetivismo. Esquecemos que a opinião é segregada pela vontade; não vem do conhecimento, mas de um apetite. O mecanismo da opinião pode ser descrito como uma interposição da vontade entre a inteligência e o objeto.
Num tal ambiente cultural anárquico e voluntarioso, as pessoas dotadas de verdadeiro conhecimento, e que poderiam contribuir com informações que escapem à opinião média, tendem a reprimir sua posição, com medo de, primeiro, passar-se por excêntricas, e, ato contínuo, por pedantes. Assim é que a espiral do silêncio (ver The Spiral of Silence de Elisabeth Noelle-Neumann) avança sem resistências. Opiniões mal fundamentadas e autoindulgentes propagam-se, enquanto avaliações corretas acabam soterradas sob uma avalanche de ressentimento e ignorância orgulhosa.
Considera-se intelectual no Brasil o “intelectual orgânico” gramsciano dito da classe trabalhadora com a missão de implantar a hegemonia comunista: destruir a cultura existente e organizar a nova cultura – visa a profunda transformação do senso comum da população. Um ator, um cineasta, um publicitário, um jornalista, um comediante, um roqueiro, um rapper, um cantor de axé, um agitador profissional, uma top model, uma drag queen, um apresentador de programa de auditório, um padre progressista… No esquema gramsciano, todos esses são intelectuais orgânicos em potencial, conquanto trabalhem, sabendo ou não disso, em favor da hegemonia comunista. É uma radical ruptura com o passado, mas uma ruptura que, em vez de proclamada abertamente sob a forma de doutrina política, deveria ocorrer, sorrateira, no domínio da psique humana. “As revoluções se fazem nos espíritos antes de passar para as coisas” — escrevera Albert Mathiez, historiador marxista da Revolução Francesa, uma lição que Gramsci seguiu à risca. Assim, politizou-se a vida intelectual e cultural no Brasil, com o partido político (o “moderno Príncipe” gramsciano) convertido em critério e medida de todo juízo intelectual, oral ou estético – proposta de substituir Deus pelo partido (religião política).
Assim visam alcançar a fórmula de Mussolini: “Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”. Temos aí uma bela ilustração, demasiado irônica neste caso, do que o antropólogo René Girard chamou de “rivalidade mimética”: a progressiva indistinção entre antagonistas (Gramsci e Mussolini) que desejam um mesmo objeto, tornando-o por isso mais e mais desejável. No caso específico, esse objeto é o poder total. Ambos os movimentos (comunista e fascista) foram desdobramentos históricos de uma mesma mentalidade revolucionária (e totalitária) de fundo gnóstico-milenarista. Não por acaso que, nos anos 1920s, ninguém menos que Lenin pôde dizer expressamente: “Em Itália, camaradas, só há um socialista com capacidade para guiar o povo para a revolução – Benito Mussolini.”
Gramsci é o afrodisíaco ideológico para intelectuais de esquerda no mundo todo, uma vez que fora legado a eles, intelectuais, o protagonismo e a vanguarda da revolução. Desviando o foco da base econômica para a superestrutura cultural, Gramsci conferiu-lhes poder, e isso recuperou a virilidade espiritual até dos mais combalidos e flácidos membros da intelligentsia. Seriam eles os novos “engenheiros de almas” (assim Stalin chamava os escritores soviéticos) destinados a preparar o povo para a futura sociedade comunista. Embevecidos de sua “missão sagrada” de dirigir as massas, estes generosos intelectuais desceriam de suas torres de marfim para resgatar os “simplórios” de seu estado de alienação, levando-os a conquistarem sua autonomia, i.e. ser comunista, eis o máximo que a filosofia crítica de Gramsci pode almejar.
Gramsci ofereceu uma justificação ao intelectual de esquerda em sua ânsia de mudar o mundo. Em vez de um imperativo histórico, a revolução dependia da ação empreendida por indivíduos heroicos. Mais do que isso, o intelectual gramsciano já não precisava submergir no cotidiano do proletariado, nem, muito menos, entregar-se aos sacrifícios revolucionários de outrora. Ao contrário, ele podia ceder aos confortos do gabinete e trabalhar pelo colapso da hegemonia burguesa sem, todavia, abrir mão de seus frutos.
O ano de 1966 marca a primeira tradução brasileira dos escritos de Antonio Gramsci, embora o projeto já viesse sendo acalentado desde 1962. A publicação do último volume deu-se em 1968 – a tradução foi empreendida por “intelectuais” ligados ao PCB (Luiz Mario Gazzaneo, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Ênio Silveira (editor)).
Naquele primeiro momento, as ideias de Gramsci repercutiram tão somente no interior de um restrito círculo de intelectuais e professores universitários de ciências sociais, sobretudo da USP. Além dos tradutores, alguns nomes importantes para a incorporação de Gramsci ao pensamento social e político brasileiro foram os de Fernando Henrique Cardoso, Antonio Candido, Michael Löwy, Oliveiros S. Ferreira, Francisco Weffort, Luiz Werneck Vianna, Sergio Miceli, Octavio Ianni, Marilena Chauí, entre outros. Somente, depois de aniquilada a luta armada, e com os primeiros sinais de um projeto de abertura política que fez surgir novos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, o pensamento de Antonio Gramsci começa a ser reavaliado pela esquerda, transbordando da universidade para o campo político, e adquirindo um caráter mais utilitário (conquistando em termos de poder de ação o que eventualmente perdia em acuidade teórica).
No final dos anos 1970, começando por iniciativa de Demerval Saviani na PUC de São Paulo, o pensamento de Gramsci penetrou fundo em áreas tais como educação, pedagogia e serviço social. Para que o leitor faça ideia, só na década de 1990, aproximadamente um terço das dissertações ou teses no campo acadêmico-educacional citava o nome do autor dos Cadernos do Cárcere.
A despeito de seu anticomunismo, determinado em larga medida pela conjuntura externa da Guerra Fria, trata-se de um erro histórico qualificar o período militar de 1964-1985 como inequivocamente de direita. Antes que de direita, ele foi acima de tudo militar. Foi militar essencialmente (e positivista). De direita, apenas acidentalmente — não todo o tempo, e não em todos os aspectos. Basta notar que os militares foram os principais responsáveis pelo desaparecimento de uma direita civil no país, e logo de uma intelligentsia de direita (sobretudo conservadora), enquanto a esquerda sobreviveu muito bem ao regime, sagrando-se vitoriosa na esfera cultural, que à época – isto os militares não perceberam – vinha se tornando o principal campo de batalha na guerra política em todo o mundo.
É ao mesmo tempo irônico e triste constatar como tantos artistas e intelectuais brasileiros, alvos de uma censura relativamente branda, puderam ser tão autopiedosos, mas, em contrapartida, tão pouco solidários com os seus colegas russos, ucranianos, húngaros, tchecos, poloneses, romenos, chineses, cambojanos e cubanos, vítimas de regimes totalitários não raro enaltecidos por nossa intelligentsia de esquerda.
Começava a entrar em cena a influência de Herbert Marcuse, um dos principais nomes da Escola de Frankfurt, e o maior responsável pela guinada “freudiana” – voltada às pulsões e à psique individual – da crítica marxista no período. Começava também a se abrir o abismo existencial, hoje intransponível, entre a população brasileira média e a “elite” cultural esquerdista que virava establishment.
Na década de 1970, os conceitos derivados dos escritos de Marcuse começaram a transpor as fronteiras da universidade e penetrar na imprensa e no meio artístico. No Brasil, a panaceia marcusiana teve influência em veículos culturalmente “progressistas” – Realidade, Nova, Claudia, O Pasquim, Ex, Rolling Stones etc. –, bem como em programas televisivos “prafrentex”, a exemplo de Malu Mulher, e mais tarde o TV Mulher, da Globo. A ilusão de uma espécie de poder terapêutico do sexo livre — livre ma non troppo, porque obrigatoriamente não reprodutivo, não monogâmico, não hétero, não conjugal — marcou toda uma geração de formadores de opinião brasileiros, e tudo isso sob as barbas dos generais.
E, daquela perspectiva, tudo continua exatamente igual no nosso cenário midiático. Para notá-lo, basta ligar a tevê e — como sempre! — colocar na Globo, a emissora integralmente composta de esquerdistas, mas que a esquerda ama odiar. Em novelas, séries e programas como Altas Horas, Amor & Sexo e até mesmo o Fantástico, estarão lá sempre os mesmos sexólogos e demais “especialistas” em relacionamentos repercutindo a ladainha marcusiana contra a família tradicional, o casamento, a repressão sexual, a Igreja Católica, o patriarcado, a monogamia e o papai e mamãe.
Importa notar que aquele vírus freudo-marxista infectou a tal ponto a esquerda mundial que, hoje, a agenda desta consiste quase exclusivamente na busca por satisfação imediata das pulsões e apetites. Marcuse foi o pai de gerações e gerações de filhos bastardos, pessoas mimadas, imaturas, que parecem de fato ter regredido a um estágio puramente libidinal do desenvolvimento ontogenético humano, anterior à emergência do princípio de realidade.
Grande parte do que hoje se chama de “direitos sociais”, “direitos das minorias” ou “direitos sexuais e reprodutivos”, numa tentativa de se imantar na aura das campanhas pelos direitos civis, não passa de um anseio de retorno ao princípio do prazer, um clamor por eternamente mamar, gozar, receber, fruir. Se a utopia de Marcuse era uma nova civilização erótica, tudo o que conseguiu promover foi uma nova barbárie escatológica.
A influência de Marcuse teve um outro efeito de crucial importância (O homem unidimensional (1964)), sentido de maneira particularmente aguda no Brasil. Graças ao seu pensamento, como também ao gramscismo, a substituição do alvo da esquerda – saíam a economia capitalista e a classe burguesa, entravam a família monogâmica e a moralidade judaico-cristã – fez-se acompanhar de uma mudança do agente histórico da revolução: saíam o proletariado urbano e, um pouco depois, o campesinato (este último resistindo até os últimos espasmos da teoria do foco guerrilheiro); entravam os intelectuais (via Gramsci) e, em seguida, o lumpemproletariado (via Marcuse), aquele mesmo que Marx tanto desprezara, formado pelos que vivem à margem da sociedade — mendigos, prostitutas, travestis, ladrões, traficantes, desajustados, rebeldes e ressentidos sociais em geral.
Tinha início o duradouro flerte das esquerdas com o banditismo, exemplificado, entre outras coisas, pelo ideário oiticicano do “seja marginal, seja herói”; a criação do Comando Vermelho no presídio de Ilha Grande; a estreita relação de amizade e compadrio entre um cineasta grã-fino e um traficante de drogas; a onipresença de bandidos retratados como heróis no cinema e na televisão; o estranho e mal disfarçado fascínio de uma repórter pelo famoso chefe do morro; o premiado jornalista que afirma a necessidade de “dar voz aos bandidos”; a defesa dos “rolezinhos” e dos “arrastões” por parte de intelectuais esquerdistas; as incessantes campanhas contra a polícia, tida na imprensa e na academia por inimiga pública número um; as recorrentes exibições de deslumbre e paternalismo de um senador petista para com um rapper que vive de celebrar o crime e denegrir os agentes da lei; o empenho de partidos de esquerda em proteger menores criminosos, mesmo quando autores de crimes hediondos etc.
Previsivelmente, quando toda uma cultura que celebra o criminoso como o cobrador de uma dívida social ajuda a colocar o país no topo da lista dos mais violentos do mundo, com mais de 60 mil homicídios ao ano, a esquerda faz-se de inocente, preferindo acusar abstrações – “o sistema”, “a desigualdade”, “o capitalismo” – ou, pior ainda, as vítimas (o burguês explorador” ou o pobre católico “traidor da classe”). Isto sem falar do estrago que o ideário da revolução sexual e do experimentalismo com as drogas causou ao penetrar nas camadas mais pobres da sociedade (aumento da gravidez infantil, pais drogados, filhos órfãos, famílias devastadas… tudo contribuindo para o aumento da criminalidade) – fruto da irresponsabilidade e vilania dos intelectuais.
Morrendo o AI-5 (1979), nascia no ano seguinte o Partido dos Trabalhadores (PT). Graças a um longo processo de “guerra de posição”, ele veio a se tornar a encarnação quase perfeita do moderno Príncipe preconizado por Antonio Gramsci, o teórico do aparelhamento. O aparelhamento petista do Estado – que transformou os poderes Legislativo e parte do Judiciário, além de uma dezena de entidades de classe e organizações da sociedade civil (UNE, OAB, CNBB, entre outras), em meros órgãos do partido – foi precedido por um profundo aparelhamento da cultura. Formado originalmente por sindicalistas do ABC e padres progressistas ligados à Teologia da Libertação, o novo partido logo atraiu uma multidão de intelectuais de esquerda.
Com o fim do período militar (1985) e o início da assim chamada “Nova República”, a intelectualidade de esquerda – que mesmo durante o regime de exceção nunca deixara de ser hegemônica nas redações, nas universidades e no mercado editorial – passou a compor com o PT um perfeito intelectual coletivo, ocupando mais e mais espaço em todos os redutos de formação de opinião pública, e difundindo a cada oportunidade uma imagem edulcorada e mítica do partido e de seu principal líder, Luiz Inácio Lula da Silva. O PT virou o “partido da ética”, havendo nesse rótulo ecos da concepção gramsciana de “Estado ético”; Lula, um messias.
O tom de solene convicção com que os intelectuais orgânicos enunciam apologias do partido costuma exercer grande efeito sobre profissionais de imprensa, para quem a palavra de um intelectual ou cientista – os famigerados “especialistas” dos nossos meios de comunicação – costuma ter o peso de um mandamento divino. O que se fala continua sendo bem menos importante que quem e como se fala, coisa há muito já demonstrada pela teoria machadiana do Medalhão. Partindo inicialmente de acadêmicos que abusavam de sua autoridade intelectual para dar ares de ciência ao que era puro ativismo político-ideológico, uma visão hagiográfica do PT logo passou a ser assumida por jornalistas e artistas, transformados, ato contínuo, em intelectuais orgânicos do partido, e desfrutando daquela mesma aura de autoridade que envolvia os seus gurus universitários. Criou-se, então, um verdadeiro círculo de auto-bajulação e elogios em boca própria, em que o critério exclusivo de alta qualidade intelectual, artística e, sobretudo, moral, passou a ser a defesa dos valores de esquerda encarnados pelo partido-Príncipe.
Tudo o que estes intelectuais conseguem ver nas atitudes e nos posicionamentos de seus adversários políticos é egoísmo e autointeresse. Jamais passou-lhes pela cabeça – do contrário toda a sua autoimagem de justiceiro social viria por terra – que os opositores do regime também se preocupassem com o país e com os brasileiros mais pobres, e que por isso mesmo denunciassem as práticas governamentais de assistencialismo barato e expansão de crédito, práticas essas que, em nome de uma “inclusão” meramente superficial e insustentável no longo prazo que só poderiam levar – como, de fato, levaram – à situação contemporânea de catástrofe econômica, com inflação alta, recessão e desemprego, afetando sobremaneira as camadas de baixa renda.
Lula e FHC, o líder sindical e o intelectual marxista, eram os símbolos da “Nova República”, os queridinhos da intelligentsia. Em verdade, o seu futuro antagonismo, de seus partidos e seus seguidores, nada mais significaria que um conflito em família, uma disputa por cargos e posições de influência no seio de um quadro de total hegemonia cultural esquerdista. Com a redemocratização, o campo político-ideológico brasileiro ficou restrito a um confronto entre socialismo e social-democracia, banindo-se para fora de seus muros, como coisa monstruosa e herança dos chamados “anos de chumbo”, tudo o que escapasse àquele quadro meticulosamente pintado.
Nossa imprensa absorveu também, mais que argumentos intelectuais em favor de tal ou qual ungido, um marxismo cuja forma Nelson Rodrigues já diagnosticara como “difusa, volatilizada, atmosférica”, uma visão de mundo em que se misturam elementos de ortodoxia doutrinária e as inovações do neomarxismo gramsciano-frankfurtiano (mais dedicado a solapar a tradição cultural clássica e judaico-cristã do que em acabar com a propriedade privada dos meios de produção), acrescidos de uma boa dose de pensamento soixante-huitardista, desconstrucionista e pragmatista. À tradicional luta de classes, somaram-se a luta de “gêneros” (mulheres versus homens), “sexualidades” (homossexuais versus heterossexuais) e “raças” (negros versus brancos, nordestinos versus paulistas etc.), além de mil e um desdobramentos destas, num processo de crescente tribalização e animosidade que, hoje, é marca indelével da vida cultural brasileira (sobretudo nas universidades).
Se, como sentenciou Rui Barbosa, a degeneração de um povo e de uma nação começa pelo desvirtuamento da própria língua, é inevitável reconhecer estarmos atualmente em maus lençóis. Pois aquele marxismo atmosférico impregnou-se na linguagem do jornalismo contemporâneo, tornando-a enviesada e hesitante, em que nada pode ser dito sem medo de ofender ou violar alguma norma do moralismo progressista, com toda a sua seletividade e duplo padrão de julgamento. Palavras e expressões são suprimidas, estranhos eufemismos criados, a sintaxe corrompe-se. A diferença entre realidade e versão desaparece sob o uso abusivo do discurso indireto: “segundo fulano”, “sicrano alega que”, “na opinião de beltrano” — pouco importando, nesse jornalismo declaratório, se o que dizem fulano, sicrano e beltrano é verdade ou mentira.
Conquistada a posição hegemônica, todo discurso contrário ao pensamento revolucionário e os interesses do partido-Príncipe foi escamoteado e os contrários difamados e excluídos. Os debates de um só lado do espectro político tornarem-se a norma na nossa imprensa progressista. E o subjetivismo adotado para forçar a agenda “politicamente correta” ou defender a agenda progressista põe em choque realidade com discurso (dissonância cognitiva) inibindo a inteligência e enlouquecendo a sociedade – tudo é relativo, menos o discurso da intelligentsia. A surrealidade política e cultural brasileira parecem mesmo não ter limites. Muitas das coisas que, tempos atrás, eram ditas em tom de piada, para debochar dos exageros do politicamente correto, hoje deixaram de sê-lo. Hipérboles, metáforas e outras figuras de linguagem tornaram-se literais; o ridículo impôs-se como coisa grave e solene; o absurdo virou regra; o burlesco, lei.
Conceitos são pervertidos ou destruídos. Nossa concepção de bondade e de justiça tornou-se açucarada e enjoativa – vivemo a era da bondade espalhafatosa, autocomiserada, narcísica e vaidosa de si. Temos uma bondade acusatória e indulgente. Sou bom, logo, tudo me é permitido. Nossa concepção de bondade, de generosidade, de cordialidade não é nem falsa nem sincera – é estética –, isto é, consiste numa apreensão dos valores bondade, generosidade, cordialidade que não é suficientemente existencial para que esses valores se traduzam em atos verdadeiramente bons, generosos ou cordiais.
A assalto a inteligência é exacerbado com o afastamento da grande literatura. É por meio dos clássicos das letras e das artes que temos a chance de experimentar situações e dramas humanos que, de outro modo, jamais experimentaríamos. Só assim podemos expandir nossa consciência e nossa própria humanidade, transcendendo provincianismos individuais e culturais, tomando parte no grande diálogo da humanidade consigo mesma e adquirindo aquele senso de eternidade sem o qual não passamos de primatas vestidos. A avassaladora decadência artística que vivemos faz parte da revolução cultural imposta pela intelligentsia. Sem o conhecimento ancestral para alimentar nossa “imaginação moral” ficamos sujeitos a “imaginação idílica” dos bem-falantes.
Na tradição da antropologia filosófica grega e judaico-cristã, o homem é caracterizado como um ser cuja essência é viver a meio caminho (metaxy, na terminologia platônica) entre a transcendência e a imanência (ou, em linguagem aristotélica, entre Deus e as bestas). Como mostra Eric Voegelin, o conceito grego de metaxy equivale ao conceito latino de participatio, sugerindo, ambos, a participação humana no divino. O homem de imaginação moral costuma perceber-se como alguém que não existe por si mesmo. A percepção humana mais básica e original é a de que existimos num mundo já dado. Esse mundo em si existe em razão de um mistério. O nome desse mistério, ou causa do ser, em que o homem participa, é Deus — ou qualquer outro nome que se queira dar à ideia de transcendência.
A antropologia filosófica moderna que está na base da “imaginação idílica” — seja em sua versão rousseauniana, positivista ou marxista — caracteriza-se essencialmente pela rejeição de uma ordem transcendente do ser, rejeição essa que resulta, ainda segundo Voegelin, numa perda de dignidade do homem, pois que nega a sua participação no divino. Essa negação acaba gerando uma ou outra forma de desumanização. Nos termos de Aristóteles, pode-se dizer que essa desumanização se dá ora para baixo — na direção das bestas (o panteísmo, o materialismo e o ecologismo) –, ora para cima – na rivalidade com Deus (a autodivinização: o super-homem nietzschiano e seus avatares). Está aberto o caminho para a reengenharia humana – a desumanização do homem.
No Brasil, quis-se fazer a contracultura antes da cultura e o resultado não poderia deixar de ser o que hoje se observa: a valorização do grotesco e do marginal (o eterno “Seja marginal, seja herói” de Hélio Oiticica), o apego demagógico às expressões culturais ditas “periféricas” – fruto de uma visão absolutamente estereotipada da periferia e da pobreza –, e uma multidão de iconoclastias tão vazias quanto tediosas. Uma obsessiva insistência no projeto estético-moral de épater la bourgeoisie (“chocar a burguesia”) só pode resultar em pastiches malfeitos, de segunda mão, daquilo que na virada do XIX para o XX já fora feito mais e melhor na música (Mahler, Stravinski, Schoenberg), na dança (Isadora Duncan, Nijinski), nas artes plásticas (Dalí, Kandinski, Braque, Pollock), na literatura (Apollinaire, Breton, Ezra Pound, Gertrude Stein), no cinema (Buñuel, Maiakovski), na arquitetura (Bauhaus, Le Corbusier, Frank Lloyd Wright) e na filosofia (Nietzsche, Freud, Sartre).
A imaginação moral da “elite” cultural brasileira estreitou-se de tal maneira que a medida última de justiça ou injustiça, de heroísmo ou covardia, de bem e de mal, de belo e de feio, passou a corresponder ao posicionamento adotado em face das fúteis polêmicas midiáticas do dia, as quais giram sempre em torno das mesmas temáticas artificialmente criadas pela mentalidade progressista, todas de uma banalidade acachapante, nas quais sentir-se bem é confundido com fazer o bem, e o gosto passa por senso de justiça. Os nossos bem-pensantes – e, por meio deles, os brasileiros em geral – tornaram-se aquelas “almas curvadas para a terra e vazias de todo o celeste” descritas por Pérsio em sua sátira segunda.
Há décadas que o pensamento de esquerda tem sido plenamente hegemônico nos principais meios formadores e difusores de opinião (universidade, imprensa e meio artístico) – desde a década de 60, em pleno regime militar, os altos cargos da nossa mídia são quase todos ocupados por militantes ou simpatizantes da esquerda, que ao mesmo tempo, ou em fases alternadas da sua carreira profissional, publicam semanários “nanicos” ou, hoje em dia, blogs “alternativos”, dando à plateia ingênua a impressão de que são a arraia-miúda em luta contra a poderosa indústria de comunicações.
Dos anos 1960 em diante, a alta cultura simplesmente ruiu. Tudo o que não fosse a imagem e semelhança do intelectual enragé de esquerda desapareceu do horizonte intelectual. Talvez por isso, sem um adversário que a confrontasse com a realidade e as próprias deficiências, a esquerda tenha se debilitado tanto, restando sozinha em seus delírios de poder e debatendo-se perante inimigos imaginários. O que se entende por “direita” hoje no Brasil não passa de uma caricatura, um espantalho, um rótulo acusatório abrangendo todos os fantasmas que a mentalidade esquerdista é capaz de produzir. Um jovem estudante que hoje ataca a “direita” não tem a mais mínima ideia do que está falando, porque seus professores – e os professores destes – jamais usaram o termo de modo substantivo, senão apenas como adjetivo. A direita real foi banida e, na falta de exercício intelectual, a própria inteligência de esquerda atrofiou brutalmente. Era o fim da alta cultura e do debate de ideias no país, substituídos cada vez mais por corporativismo e patrulhamento ideológico. A história cultural brasileira foi assim reduzida a uma autobiografia da nossa esquerda política.
O engodo da queda do muro de Berlim, da perestroika e da glasnost tirou a palavra “comunismo” do debate público, mas o movimento seguiu dominando consciências. A imaginação comunista terminou reinventada, fragmentando-se numa miríade de modos de ser de esquerda ou — palavra nova para velhos hábitos — progressista. E tudo longe do escrutínio da opinião pública. Foi assim que muitos autoproclamados ex-comunistas brasileiros se esquivaram de um exame de consciência mais profundo, limitando-se a uma crítica meramente formal (e, de resto, inócua) ao modelo soviético. Dispensados da autocrítica, entregaram-se, ato contínuo, ao seu esporte predileto: a denúncia dos males do mundo. O grosso da intelligentsia patropi jamais esboçou sinais de haver percebido que, mais que um regime político, um projeto econômico, uma doutrina filosófica ou uma utopia social, o comunismo encaixa-se perfeitamente no conceito de religião política, cujo abandono é mais fácil manifestar em palavras que em atos. Na fé secular comunista, as ideias terminam por converter-se em hábitos e afetos inconscientemente incorporados à personalidade: é preciso, ao fim e ao cabo, que o apóstata do comunismo rejeite uma parte importante de sua própria identidade pessoal – os comunistas patropis nunca tiveram o seu momento Kronstadt (símbolo condensado de um saldo de consciência (epifania moral) – ver o testemunho de Louis Fischer em The God that Failed organizado por Richard Crossman). Kronstadt é produto de uma árdua reflexão moral e do penoso exercício de uma consciência humana levada aos seus limites. Almas distraídas e superficiais são incapazes desse tipo de autoexame.
A maior parte dos intelectuais da geração 1968 deixou de ser comunista apenas nominalmente. “O muro caiu em Berlim”, lamentou certa feita Jean-François Revel, “mas não nas mentes.” No Brasil, é verdade, muitos renegaram o modelo marxista-leninista tradicional. Ocorre que, na ausência de um confronto com a própria consciência, acabaram cedendo acriticamente ao imaginário introduzido pelo chamado “marxismo ocidental” — associado sobretudo à Escola de Frankfurt e ao gramscismo —, cuja expressão mais visível nos meios de comunicação de massa é o multiculturalismo politicamente correto.
No novo contexto, ao menos duas ideias fundamentais de Marx e Engels foram mantidas. Em primeiro lugar, a premissa da exploração ou do “jogo de soma zero”, segundo a qual, ao longo da história humana, é necessário que uns percam para que outros ganhem. Em segundo, a ideia da determinação material da consciência. As classes originais em luta – burguesia e proletariado – foram substituídas e multiplicadas, tendo as novas clivagens outros critérios para além dos que estabelecia a estrutura produtiva: de “raça” (ou cor), sexo, gênero, preferência alimentar, meios de transporte etc. Toda ação humana foi politizada, ou seja, vista como disputa por poder, e todo indivíduo agora se vê como ativista e representante de uma causa. O fulano já não é apenas homossexual: ele agora é um combatente da causa LGBT contra a perversa heteronormatividade. Sicrano não é apenas alguém que não come carne: ele é um vegetariano militante em luta heroica contra o holocausto animal. Beltrano já não anda de bicicleta simplesmente: ele é um cicloativista enfrentando o reacionário e retrógrado sistema de locomoção urbano.
Para cada uma das categorias coletivas em conflito, toda a realidade parece estar circunscrita aos seus objetivos políticos, que adquirem, portanto, um caráter quase metafísico – depois de séculos de universalismo, a humanidade agora cessa nas fronteiras da tribo. Todos querem que a sua diferença específica seja mais diferente que as outras. As mais excêntricas idiossincrasias, próprias a determinado “coletivo”, passam a ser vistas e reivindicadas como direitos naturais inalienáveis. E os “coletivos” em luta multiplicam-se indefinidamente, formando mil e uma subdivisões cada vez mais sectárias, orgulhosas e convictas da própria superioridade moral, todas elas se colocando na condição de vítimas históricas preferenciais, portadoras, portanto, do sacrossanto direito à reparação (ver The Victims’s Revolution de Bruce Bawer) – e intelectuais e jornalistas tornam-se convictos de seu papel de denunciadores da exploração destas “vítimas” (cenário que, sonham os revolucionários, somente um Estado hipertrófico poderia resolver).
Na verdade, a esquerda é tão culturalmente hegemônica no Brasil que grande parte dos intelectuais públicos, quer formadores, quer difusores de opinião, é de esquerda sem nem mesmo saber disso. Essas pessoas adotam uma perspectiva de esquerda porque nunca conheceram outra, porque ser de esquerda lhes é tão natural quanto respirar. O grosso da elite cultural brasileira nos dias de hoje é assim. Seus gostos e repulsas lhes são predeterminados quase que à sua revelia, pela força do hábito e da tradição. Destarte, tudo o que não esteja em conformidade com os valores dessa elite adquire um caráter fantasmagórico, excêntrico, quiçá monstruoso (“polêmico”, no jargão jornalístico). As pessoas que acreditam ser as mais progressistas e de mente aberta são, justamente, as mais reacionárias, reagindo invariavelmente de maneira estereotipada a quaisquer fenômenos políticos e culturais irredutíveis aos cacoetes mentais de nossa intelligentsia.
Nosso intelectual de esquerda é um tipo curioso, uma hidra de várias cabeças. Com Marx e Engels, ele aprendeu que as condições materiais nas quais vive uma pessoa (ou seja, a sua classe social) determinam a sua consciência. Essa regra tem validade universal, aplicando-se a todos os seres humanos exceto… o intelectual de esquerda ele mesmo. Pois com Nietzsche, o intelectual de esquerda aprendeu que a sua vontade – mas só a sua – é soberana. No seu caso, então, o livre-arbítrio falou mais alto e o intelectual de esquerda, movido pelo aguçado senso de justiça social (que ele imagina ter herdado de Rousseau, o castelão devasso), decidiu tomar emprestada a consciência de classe alheia, assumindo como seus os interesses dos desfavorecidos, dos oprimidos, de toda e qualquer vítima do poder. Com Foucault (e com Adorno, Horkheimer, Marcuse e dezenas de outros apóstolos da crítica autodestrutiva), o intelectual de esquerda aprendeu que esse poder se manifesta nas circunstâncias as mais banais e microscópicas do cotidiano (no “fiu-fiu” do peão de obra à vista de uma formosa dama, por exemplo), cabendo a ele, intelectual de esquerda, a missão de denunciá-lo incessantemente. Com Deleuze e Guattari (ou terá sido com a Regina Casé?), aprendeu que ser de esquerda é adotar a perspectiva da margem e da periferia, assumir um devir minoritário. Com Zizek… Bem, com Zizek ele aprendeu a celebrar a “violência redentora” dos black blocs.
Autoidentificando-se com as supostas vítimas e exagerando o poder do eleito carrasco, o intelectual acaba, comportando-se como o mais cruel dos algozes. Esta perpétua sensação de fera acuada é uma experiência existencial básica de toda esquerda de matriz revolucionária, daí sua ação política ser sempre impiedosa. Toda vez que age, a esquerda imagina reagir. E mesmo quando exerce o poder das maneiras as mais totalitárias e brutais, vê-se sempre como vítima de um poder anterior que justifica as suas ações.
Não por acaso que os comunistas tenham sido, por um lado, os principais formuladores de um discurso de indignação moral contra os males do mundo e, por outro, os maiores perpetradores desses males, brindando a humanidade com um festival de horrores de dar inveja ao próprio Satanás. Há duas coisas que o comunismo fez em escala industrial: denunciar e matar. Um revolucionário corrupto será sempre mais corrupto que um não revolucionário. Este último pode vir a sentir vergonha, ou mesmo saciar-se com o produto de seu crime. O esquerdista revolucionário, jamais. Pego em flagrante delito, ele erguerá no ar o punho cerrado e, prenhe de um orgulho patológico, experimentará, no fundo de seu ser, a emoção de lutar por justiça no instante mesmo em que corrompe.
Não saber qual será o futuro ou, em outras palavras, omitir — tanto para si quanto para os outros — as possíveis consequências de seus projetos de sociedade é a essência mesma da mentalidade esquerdista. Para esta, a nova sociedade vindoura é apenas a cenoura que, presa ao burro, o faz persegui-la eternamente e, perseguindo-a, progredir. A cenoura está, simultaneamente, à frente do e no burro. Aquela representa o futuro; este, o esquerdista. O esquerdista não pode chegar ao futuro porque o futuro desloca-se com o esquerdista, que é o seu único porta-voz autorizado. E o futuro desloca-se precisamente para que o esquerdista permaneça sempre alheio aos critérios morais válidos para o restante de seus contemporâneos. A sociedade utópica dos esquerdistas é uma “promessa autoadiável”.
Fazer o mal em nome de uma causa é muito pior do que fazer o mal pura e simplesmente. Como deter aquele que promete o bem e, por conta disso, nos convida a transigir com o mal? A esquerda revolucionária sempre foi especialista na arte de simular virtude. O vigor espalhafatoso com que esquerdistas denunciam injustiças, a ostensiva indignação diante dos males do mundo e aquela “apaixonada intensidade” de seu discurso acusatório são parte essencial da persona revolucionária (ou, no vocabulário contemporâneo, “progressista”) e causam profunda impressão no espírito dos homens de bem. Mas não podemos esquecer que o escândalo com o mal, além de descrito na tradição judaico-cristã como pecado grave, é marca registrada das mentalidades utópicas (ver Utopia: The Perennial Heresy de Thomas Molnar) – comunistas e esquerdistas em geral são mestres imbatíveis no pecado da soberba, no sentido definido por Santo Agostinho: “Todos os vícios se apegam ao mal, para que se realize; apenas a soberba se apega ao bem, para que pereça.”
Hoje, os jovens brasileiros de esquerda sentem-se profunda e dolorosamente oprimidos sempre que seus desejos políticos não são aceitos como mandamentos divinos universalmente válidos. E manifestam essa sensação de maneira tipicamente histérica: somatizando-a em ânsias de vômito, taquicardias e crises convulsivas de choro. Muitos desenvolvem um processo quase alérgico quando expostos a opiniões divergentes ou obstáculos ao seu poder, que lhes soam como escandalosos, verdadeiros crimes contra a humanidade. Imbuídos daquele espírito marcusiano de “tolerância libertadora” (ou “discriminatória”), esses pequenos tiranos caçam a palavra de seus interlocutores como quem exercesse um direito divino.
A criação esquerdista da cultura nacional-popular (“nacional” no sentido de anti-imperialista; “popular”, no de antielitista) sustentava-se na noção de arte engajada e pedagógica, cuja meta final era o despertar da consciência crítica do povo para a situação de exploração em que vivia. Em verdade, por “despertar a consciência crítica” deve-se entender: incutir no povo os objetivos e valores caros ao intelectual, a fim de que venha a amar o que este ama e odiar o que este odeia – quanto mais correspondam às utopias dos intelectuais, mais “povo” são. Irmanados a banqueiros, empreiteiros, megaempresários e caciques políticos, nossos “frágeis e pobres” intelectuais enragés, quer sejam petistas, quer apenas simpatizantes, investem contra a poderosa “elite” formada por 92% dos brasileiros, numa clara ilustração do que o psiquiatra Paul Sérieux chamou de “delírio de interpretação” – no caso, de autointerpretação. A elite cultural perdeu de vez o contato com o povo brasileiro.
Da mentira da participação americana no contragolpe de 1964 ao imaginário golpe contra Dilma, a questão de fundo é uma só: nossos intelectuais mentem por uma completa e atávica irresponsabilidade moral. Não foi, afinal, um de seus próceres quem manifestou o supremo desejo de “viver sem culpa”, tendo encontrado na ética de Spinoza — ou numa versão materialista e hedonista desta — o meio de satisfazê-lo? Pois viver sem culpa parece mesmo ser o destino dos intelectuais de esquerda no Brasil. Daí que não possam parar de acusar — quase sempre aos gritos — os males do mundo, para preencher com palavrório político o espaço vazio onde deveria haver uma consciência individual madura. Gramscianamente posicionados nas redações de jornais, nas universidades, no mercado editorial, na indústria cinematográfica, nas artes e, sobretudo, nas salas de aula, batalhões de corruptos intelectuais já se empenham na missão de reescrever a história conforme os desejos do Novo Príncipe.
As universidades brasileiras apresentam um festival de episódios bizarros (que deixam de ser entendidos como abusos, mas já usos consagrados, tanto mais consagrados quanto mais destrutivos), produto de uma grave deformação estrutural erigida em sistema. O quadro atual vai muito além revolta ao estilo marcusiano, cujo objetivo parece ser o retorno a um estado de polimorfismo em que Eros triunfa sobre o Logos, pois há crime, há violência, há ódios políticos e apoio explícito ao totalitarismo.
Seria incorreto atribuir a responsabilidade dessa situação crônica no ensino apenas a grupos fanatizados de militantes disfarçados de alunos. Não se chega a esse estado de coisas sem um grande esforço combinado entre diversos atores que, por ação ou omissão, contribuem para o conjunto da obra. A culpa é generalizada e repartida entre estudantes, professores, funcionários, diretores e reitores, que, há décadas, parecem inteiramente dedicados a extirpar da consciência nacional a própria ideia de universidade. O que se vê hoje nos campi é resultado da perda total do senso de medida e de hierarquia, de um perigoso estado de indiferenciação onde ninguém sabe mais o seu lugar e os seus limites institucionais. Trata-se da conhecida incapacidade brasileira de distinguir entre público e privado, que usualmente atribuímos aos políticos, mas que entre os nossos acadêmicos se manifesta de maneira ainda mais obscena. O desastre no ensino brasileiro é o produto mais nocivo da corrupção intelectual da geração de 1968 – conseguiram produzir réplicas pioradas de si mesmos, cada vez mais autômatos e distantes da realidade geradora dos símbolos que hoje repetem feito papagaios. O resultado é o manicômio em que se transformou a universidade brasileira contemporânea. Nada mais sintomático que o infame STF tenha protegido a doutrinação nas salas de aulas, pois não querem perder o espaço conquistado para destruir mentes e corações das novas gerações em prol de sua utopia infernal (Ortega y Gasset já mostrará como os regimes totalitários — ele tinha em mente o fascismo e o bolchevismo — sempre se valeram das massas de estudantes universitários para impor sua violência revolucionária).
As universidades hoje são instituições que, ano após ano, despejam na sociedade basicamente duas categorias de graduados: nos melhores casos, técnicos competentes (de hábito provenientes das áreas de exatas e biomédicas), mas ignorantes de tudo quanto escape à sua restritíssima especialidade; nos piores, jovens protoburocratas (usualmente da área de humanas) desde já à espera da aposentadoria, e hordas de militantes políticos.
Em termos de cultura geral há pouca diferença hoje entre um universitário e um não universitário. A bem da verdade, é mais provável que, em média, um não universitário, por haver preservado sua inteligência natural contra o assédio da estupidificação ideológica ora reinante na academia, seja intelectualmente mais capaz que um universitário-padrão. E é precisamente aí que entra a condescendência do acadêmico mente aberta, para restabelecer artificial e farsescamente aquela diferença inexistente na prática. Se ele clama pela abertura das portas da universidade é por pretender posar de porteiro. Fala em arejá-la para fingir ser ela um clube fechado de sábios, clube do qual, docemente constrangido, ele faria parte. Assim, o finório ganha em todas as mesas: mantém seu status de membro de uma instituição (supostamente) de elite e, ao mesmo tempo, ostenta sua tolerância e rebeldia em relação aos pares, que, por sua vez, fazem a mesmíssima coisa, cada qual se sentindo a ovelha mais negra num rebanho todo feito de ovelhas negras.
A fazer companhia aos intelectuais acadêmicos proliferam os “intelectuais periféricos”, figuras que, não obstante oriundas da cultura popular e carentes de educação formal, seriam portadoras de um saber (ou “saberes”, no plural, que soa ainda mais politicamente correto) valioso e inacessível a bacharéis, mestres e doutores. Um dos primeiros a usar o termo foi um sociólogo da Unicamp, cuja tese de doutorado, defendida em 2012, analisa a “trajetória intelectual” do rapper Mano Brown, líder dos Racionais MC’s. Sem grande inovação, tudo o que o autor faz é aplicar o conceito gramsciano de intelectual para demonstrar como Brown tem sido um dos mais destacados “organizadores da cultura” da periferia de São Paulo. Brown é também, como se sabe, um agitador político pró-PT, portanto totalmente inserido no grande esquema de poder montado pelo partido-Príncipe antes, durante e depois de sua presença no comando do Estado.
Temos que se Mano Brown é um intelectual, a funkeira Valesca Popozuda é uma “grande pensadora contemporânea”. Foi o que afirmou no enunciado de uma prova um professor de filosofia que dá aulas para uma turma do ensino médio em Brasília. Na explicação do professor, o objetivo era provocar a imprensa e suscitar um debate sobre o preconceito contra a mulher, ou seja, homem queria aparecer e ostentar seu progressismo em público (e conseguiu – a Folha de São Paulo encampou a ideia). Enquanto a intelligentsia promovem Brown, Popozudas e outras badalhocas, nomes como Mário Ferreira dos Santos, Vilém Flusser, Miguel Reale, Gustavo Corção, Olavo de Carvalho e tantos outros são escamoteados das novas gerações.
Valesca Popozuda é, hoje, o que há de mais establishment dentro da academia. Antes mesmo de ser citada como “grande pensadora contemporânea” pelo professor de filosofia em Brasília, a moça já havia sido escolhida patronesse de uma turma de formandos da Universidade Federal Fluminense e tema de um projeto de pós-graduação intitulado “My pussy é poder — A representação feminina através do funk no Rio de Janeiro: Identidade, feminismo e indústria cultural”, que permitiu à autora ser aprovada em 2º lugar no concurso para o mestrado daquela instituição.
Não há nenhuma tolerância ao contrário do ideário esquerdista, sobrando apenas aquela tolerância libertária de Herbert Marcuse, devotada única e exclusivamente aos clones ideológicos. É assim que milhares e milhares de jovens ingressam num ciclo vicioso em que tanto mais se propaga a ampliação dos horizontes quanto mais se adentra um solipsismo infernal. E quanto mais afastados estão esses jovens de uma formação cultural e intelectual sólida, menos falta sentem dela, imaginando poder conceder aos outros aquilo de que carecem acima de tudo. Estão convencidos de que irão salvar o mundo, sem notar que, num pacto faustiano com o poder, perderam completamente a própria alma.
Já não vão à universidade — que, ademais, já não lhes pode oferecer — em busca daquele hábito mental e daquele espírito humanista da velha Universitas Litterarum medieval, caracterizada pelo desejo de conhecimento. Vão em busca de objetivos utilitários. Uns querem virar técnicos; outros, militantes políticos. Aqueles ainda esperam compreender algo do mundo, posto que um algo bem pequeno e circunscrito; estes, que dele tudo ignoram, só pensam em transformá-lo – nossos universitários já não podem formar aquela elite de verdadeiros intelectuais que depende a edificação espiritual de uma nação.
Notas
Flávio Gordon (1979- ), doutor em antropologia social, nasceu no Rio de Janeiro.
A Corrupção da Inteligência foi publicado em 2017.
Inteligência neste livro significa tanto uma função social (a classe falante – intelligentsia) e um atributo individual (capacidade humana de inteligir e seu uso, incluindo o discernimento moral). Adaptado do russo intelligentsia, o termo é de origem francesa (intelectuelles), tendo surgido no contexto do famoso Caso Dreyfus, que polarizou a França em fins do século XIX. Com intenções pejorativas, foi usado pelos antidreyfusards para atacar os defensores do oficial judeu, vítima de antissemitismo e condenado injustamente por alta traição. O alvo do ataque eram escritores tais como Émile Zola, Charles Péguy, Marcel Proust, Anatole France, entre outros, que assinaram artigos e manifestos – com destaque para o célebre J’Accuse de Zola – marco de engajamento coletivo dos assim chamados “intelectuais” em causas políticas e sociais.
Em 02/10/2002 Lula afirma em entrevista ao Le Monde (“La gauche brésilienne aux marches du pouvoir”) que “eleição é uma farsa pela qual é preciso passar para se chegar ao poder – antecipando tudo que faria, confessando seu desprezo pela lei e pela ordem. Mensalões e Petrolões são apenas instrumentos para conquista indefinida do poder.
A falência das instituições brasileiras (incluindo a Igreja e as Forças Armadas) é comprovada por sua inércia na ascensão do PT ao poder a despeito das recorrentes demonstrações de sectarismo e mentalidade totalitária por parte dos altos quadros do partido. Tal corrupção político-institucional foi precedida e possibilitada pela corrupção da inteligência.
O sucesso de Lula, ardiloso e malandro, deveu-se muito mais aos seus vícios — a sua mais completa amoralidade — que às suas virtudes. Lula é a expressão mais acabada de um estado de degeneração cultural.
Hitler e Lula não impressionaram por terem sido excepcionais, mas representativos. Cada um em seu contexto, ambos foram a encarnação perfeita daquilo que Ortega y Gasset denominou “homem-massa”. Foram dois homens medíocres, ambos sofrendo do que poderíamos chamar de síndrome de Raskolnikov: a formação de uma autoimagem distorcida, exacerbada, sentimentaloide, movida por um orgulho doentio e pela crença totalmente irreal na própria grandeza. Não por acaso, Hitler e Lula reivindicaram para si, mutatis mutandis, aquele “direito ao crime” tão bem descrito por Dostoiévski.
O comunismo é pior que o nazismo, pois, ao contrário deste, soube disfarçar o seu mal com as cores do bem, parasitando e pervertendo o senso de caridade e de amor ao próximo.
Os EUA também sofrem um processo de destruição da inteligência. Em The Closing of the American Mind, Allan Bloom denuncia a devastação cultural provocada pela “nova esquerda” nos anos 1960, principalmente com o rebaixamento do currículo universitário – abandono dos clássicos, como Homero e Platão, em favor de nulidades intelectuais (e.g. Rigoberta Menchú e Frantz Fanon), modismos teóricos (e.g. estudos gays, negros e femininos) e elementos da cultura pop.
Outras obras que inspiraram o autor e que revelam o mesmo drama brasileiro: (a) A Traição dos Intelectuais (1927) de Julien Benda, (b) O Ópio dos Intelectuais (1955) de Raymond Aron, (c) A Grande Parada (2000) de Jean-François Revel, (d) A Infelicidade do Século (1998) de Alain Besançon, (e) Radicais nas Universidades (1990) de Roger Kimball, (f) Illiberal Education (1991) de Dinesh D’Souza, (g) Os Intelectuais (1988) de Paul Johnson, (h) Pensadores da Nova Esquerda (1985) de Roger Scruton, (i) Os Intelectuais e a Sociedade (2010) de Thomas Sowell. (j) A Vida na Sarjeta (2001) de Theodore Dalrymple, (k) The Last Intellectuals (2000) de Russell Jacoby, (l) The Reckless Mind (2001) de Mark Lilla, e (m) A Nova Era e a Revolução Cultural (1994), O Jardim das Aflições (1995) e O Imbecil Coletivo (1996) de Olavo de Carvalho.
O efeito Dunning–Kruger (descrita pelos psicólogos-sociais David Dunning and Justin Kruger) é um bias cognitivo hipotético de (a) pessoas com baixa capacidade para a tarefa em questão superestimarem suas habilidades (resultado de uma ilusão interna – erro sobre si mesmo), e (b) pessoas com alta capacidade para determinada tarefa subestimarem sua capacidade (resultado de uma interpretação errônea externa – erro sobre os outros).
Ao recusar a indenização oferecida aos anistiados, Millôr Fernandes disse que “não era ideologia, era investimento”. De fato, os comunistas já tinham distribuído entre os seus quase R$8 bilhões de 2014 até maio de 2021, a maioria sob sigilo (atualmente uma despesa anual de mais de R$1 bilhão).
Exemplo de manipulação midiática: jornalistas não empreguem nenhum termo específico para a perseguição religiosa sofrida por cristãos ao redor do mundo, um termo equivalente à tão falada “islamofobia”. Inexistente no vocabulário midiático cotidiano, portanto, tudo se passa como se aquela perseguição não existisse no mundo real, ao passo que a “islamofobia”, de tão repetida por uma classe falante escandalizada, adquire a aparência de calamidade. Exemplo: Em 2016 a Reuter assim anunciou o atentado terrorista de um homem-bomba sírio: “Syrian man denied asylum killed in German blast”.
"Asinum asinus fricat” – provérbio latino (“o asno afaga o asno”). Aplica-se a “autofagia jornalística”, ou seja, o hábito de só escrever nos jornais aquilo que se lê nos jornais – eterno ouroboros desinformativo.
O cantor da banda baiana Psirico diz que seu hit carnavalesco Lepo lepo é um “grito contra o capitalismo”. Talvez pareça piada, mas o cantor é um perfeito intelectual orgânico gramsciano. Evidentemente, nem ele nem seus fãs precisam conhecer a crítica de Marx ao capitalismo. Basta “saber” — e cantar e repetir — que o capitalismo é algo ruim.
Conceito de “Estado ampliado” de Christine Buci-Glucksmann (filósofa francesa): O Estado ampliado encerra um poder virtualmente inabalável, dado que o exercício da coerção por parte da classe dominante estará ancorado numa hegemonia prévia. Aí, o Estado já não é apenas ente de força, mas também educador. Além de administrar a coisa pública, ele busca fomentar toda uma moral coletiva. No limite, uma vez conquistada a hegemonia plena, em que houvesse uma perfeita homogeneidade de valores e ideias, o Estado torna-se mais e mais dispensável, até, por fim, extinguir-se por completo – versão gramsciana da utopia marxista do “fim do Estado” (o fim do Estado por hipertrofia e não redução).
Pepe Mujica sobre a crise política brasileira em entrevista ao Jornal do Brasil (27/04/2016): “Os defeitos não são do PT. São da sociedade brasileira”.
A tese central de Gramsci pode ser resumida à afirmação de uma relação inexorável entre cultura e poder. A cultura seria tanto produto quanto instrumento de poder, este sempre pensado em referência à luta de classes. Ao construir essa teoria-espantalho, atribuindo a uma pretensa hegemonia cultural burguesa — mais que ao controle sobre os meios de produção — as resistências ao projeto revolucionário, Gramsci forneceu aos comunistas o salvo-conduto de que precisavam para se lançar à missão de instrumentalizar toda atividade intelectual e artística. É a tese da locupletação geral.
Em 1999, com ar professoral de quem não estivesse fazendo proselitismo, senão enunciando uma verdade científica ignorada pelo público, Marilena Chauí, a Xeroxona, explicou aos seus entrevistadores no programa Roda Viva, da TV Cultura: “Uma coisa [que] nunca foi posta em dúvida, à direita, à esquerda, pelo centro, nunca, é a honestidade de um governante petista e a maneira como ele trata a coisa pública efetivamente como uma coisa pública”. Foi a mesma Marilena Chauí quem, em junho de 2003, caprichou na forma para declarar a jornalistas da Folha de S.Paulo: “Quando o Lula fala, o mundo se abre, se ilumina e se esclarece.”
Gilberto Gil sobre o julgamento do Mensalão (16/10/2012): “Os tribunais estão certos e estão errados, igual a todo mundo. Os tribunais acertam, os tribunais erram, eu acerto, eu erro. A Justiça é certa, a Justiça é errada. Sempre. Você que quer saber? Eu não quero saber. Tudo é certo e errado…”. Gil é a prova de que maconha estraga o cérebro.
Hugo von Hofmannsthal (1874-1929): “Nada está na realidade política de um país que não esteja antes em sua literatura”.
“Imaginação moral” de Edmund Burke (1729-1797): entendimento ético substituído pela razão imposta pela Revolução Francesa
“Imaginação idílica” de Irving Babbitt (1865-1933): imaginação que rejeita a moralidade tradicional, clássica e judaico-cristã em nome de uma moralidade subjetivista, que em lugar de postular uma ordem moral eterna e externa ao homem, atribui a este a fonte exclusiva do bem e do mal (subjetividade humana como fonte da moral).
Entrevista com Ipojuca Pontes (07/06/2021): Andrei Jdanov (1896-1948), ideologista cultural soviético e principal propagandista na era stalinista, organizou o Cominform em 1947 com o intuito de difundir a visão de cultura soviética (realismo socialista), na qual a tipologia humana pendia entre dois polos a serem explorados nas artes: o herói negativo (burguês caricato) e o herói positivo (operário idealizado). No Brasil, financiaram o jornal Voz Operária onde diversos intelectuais brasileiros militaram (Jorge Amado (1912-2001), Nelson Werneck Sodré (1911-1999), Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), Astrojildo Pereira (1890-1965) e outros – todos stalinistas), buscando enquadrar a arte nos moldes definidos pelo Comiform – filme Rio 40 Graus (1955) é modelo do realismo socialista, Jorge Amado escrevia aquilo que o PC ordenava. O pensamento revolucionário esquerdista já esteva infiltrado nas artes, mídia, ensino e aparelho burocrático quando da contrarrevolução de 1964, e os militares pouco fizeram para higienizar estas instituições. Apenas os artistas “engajados” tinham espaço para desenvolverem-se, sendo os demais boicotados. O comando de produção das novelas (usadas para diluir as tradições) é dado a Dias Gomes (ex-secretário dos PC no Rio de Janeiro). Na música tipos como Caetano Veloso e Chico Buarque são ungidos como gênios.
Patropi é uma forma encurtada de "país tropical", se referindo a imagem que o Brasil tem no exterior, de praia, Carnaval e curtição. Essa expressão foi introduzida pela canção País Tropical, de Jorge Ben Jor, em 1969. Também foi o nome de uma personagem hippie da Escolinha do Professor Raimundo.
Dialética, eufemismo para distorção do real com fins políticos. Na descrição de Arthur Koestler (1905-1983): “Gradativamente, aprendi a desconfiar de minha preocupação mecanicista com os fatos e a considerar o mundo à minha volta sob a luz da interpretação dialética. Era um estado satisfatório e, de fato, abençoado: uma vez assimilada a técnica, você não era mais perturbado pelos fatos; automaticamente, eles assumiam a cor apropriada e encaixavam-se no lugar certo. O Partido era infalível, tanto moral quanto logicamente: moralmente, porque os seus objetivos eram corretos, ou seja, acordes com a Dialética da História, e justificavam todos os meios; logicamente, porque o Partido era a vanguarda do proletariado, sendo este a encarnação do princípio ativo na História.”
Kronstadt era o nome da fortaleza naval localizada no golfo da Finlândia onde, em 1921, marinheiros, soldados e civis (outrora chamados por Trotski de “orgulho e glória da revolução”) rebelaram-se contra a tirania e a centralização bolchevique ao fim da Guerra Civil Russa. A rebelião foi brutalmente reprimida a mando de Lenin, resultando num banho de sangue que custou a vida de milhares de rebeldes, deixando outros tantos feridos e condenando centenas a perecer no campo de Solovki, o primeiro grande campo de concentração soviético, construído numa ilha no mar Branco duas décadas antes que os nazistas resolvessem imitar a ideia. A violenta repressão à revolta de Kronstadt dividiu os socialistas de todo o mundo.
“O mal de quase todo esquerdista desde 1933”, escreveu certa vez George Orwell, “foi ter querido ser antifascista sem ser antitotalitário.”
Inspirada pela fórmula leninista da “estratégia das tesouras”, a esquerda cresce por cissiparidade, ou esquizogênese, dividindo-se contra si mesma para tomar o lugar de quaisquer concorrentes possíveis. Por isso estão loucos e iludidos aqueles que, vendo o esquerdismo dividido, celebram seu enfraquecimento e sua próxima derrota. Um partido só pode ser derrotado por outro partido, jamais pela sua própria confusão interna, que é fermento de sua expansão ilimitada.
Herbert Marcuse distorce Freud: Freud concebia a regressão psicanalítica como meio de cura; Marcuse, como meio de luta. Marcuse recusou o pilar fundamental da teoria freudiana (“Civilização é repressão.”), tentando demonstrar que uma civilização não repressiva era não apenas possível como desejável.
O sentimento de culpa é uma benção, é o equivalente psicológico da dor física – é a dor moral. Síndrome de Riley-Day é uma desordem do sistema nervoso que torna o paciente insensível à dor física, e ele normalmente padece antes de completar 30 anos de idade em algum acidente. Ausência de culpa é uma doença da mente (psicopatia), e também da alma (húbris).
Foi uma longa conversa para reinterpretar o passado, analisar o presente e pensar o futuro. Com um gravador em punho, o senador petista Cristovam Buarque (DF), ex-ministro da Educação, resolveu registrar a troca de impressões com o ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso, quando eles se reuniram, no final de 2004, em Providence, nos Estados Unidos. O diálogo somou 50 páginas impressas, segue um trecho (Fonte: O Globo, 29/11/2004): Entrevistador e entrevistado revelam identidades. Ambos defendem um choque social e acreditam que, um dia, apesar das farpas de um lado e do outro, PT e PSDB marcharão juntos na política brasileira. CRISTOVAM BUARQUE: A sua eleição e a do Lula não são fatos inesperados? A esquerda chegar ao poder? FERNANDO HENRIQUE CARDOSO: Totalmente. CRISTOVAM: E não é uma surpresa que tenhamos chegado ao poder sem uma proposta nova para o povo? Chegamos rebocados pela direita. FERNANDO HENRIQUE: Surpresa não é chegar, é chegar pelas duas vias... (risos) CRISTOVAM: Nossas brigas (PT e PSDB) não podem impossibilitar um trabalho? FERNANDO HENRIQUE: Não discutimos nem disputamos ideologia. É poder, é quem comanda. Minha ideia para o Brasil é a seguinte: você tem uma massa atrasada no país, e partidos que representam esse atraso, clientelismo. Os dois partidos que têm capacidade de liderança para mudar isso são o PT e o PSDB. Em aliança com outros partidos. No fundo, disputamos quem é que comanda o atraso. O risco é quando o atraso se comanda. É um pouco o negócio do pacto com o diabo, do Fausto, não é? Você pode perder a sua alma nesse processo, porque o atraso pode te comandar. O risco neste momento é de vocês, do PT. De comandar um pouco o atraso e imprimir os outros nessa direção. CRISTOVAM: Ainda é possível uma aliança PT-PSDB? FERNANDO HENRIQUE: Acho que sim. Porque a luta é política, não é ideológica. CRISTOVAM: Nós, do PT, fomos cooptados, ficamos lúcidos, amedrontados ou oportunistas? A nossa mudança veio de qual destes fatos? FERNANDO HENRIQUE: Veio de tudo isso. Na campanha, é natural um certo oportunismo. Com jogada de marketing, você cria um mito, conta uma história. O meu mito era fácil, era o real, moeda, estabilidade. O Lula era ele próprio, a vida dele. Eu não estava mentindo, realmente tinha feito o real. O Lula também não, representa a ascensão de uma camada. Mas uma coisa é campanha e outra é governo. No governo, não basta paz e amor. CRISTOVAM: Não está na hora de a gente dar um choque social no Brasil? FERNANDO HENRIQUE: Se não fizermos alguma coisa rápido, haverá danos à democracia. Se o resultado vai muito devagar, é uma tragédia. Se não anda, pior ainda. Andar para trás é inaceitável. Eu resumiria dizendo: mais investimento em infraestrutura e um choque social. CRISTOVAM: Com uma carga fiscal de mais de 30% do PIB já dá para fazer… FERNANDO HENRIQUE: Aumentou muito a arrecadação. Não entendi porque houve um aumento do superavit primário. Sou doutor nisso. Desde 1999 estou lutando com o FMI. A ideia do Fundo é sempre um pouco mais alto. Porque com o superavit atual, de 4,5%, você não paga nem os juros. Mas se for de 5%, também não vai pagar. Não precisa exagerar no superavit primário. Eu até posso dizer isso. O Lula é que não pode porque é o presidente. Os mercados caem no dia seguinte, é verdade. CRISTOVAM: Mas para dar esse choque, não é preciso ter um compromisso (a palavra pacto não é boa)? FERNANDO HENRIQUE: Não devemos falar de pacto porque dá má sorte. Digamos uma convergência. Tem de ser uma coisa suprapartidária. A sociedade tem de comprar a ideia. E tem que pegar gente influente na mídia, porque hoje não existe nada sem mídia. Na política atual, parafraseando Descartes (“Penso, logo existo”), é “estou na TV, logo existo”. Se você não é virtual, você não existe. CRISTOVAM: A imprensa a gente até traz, agora a Justiça é que difícil trazer… FERNANDO HENRIQUE: As classes dirigentes, dominantes, e mais do que as classes, as mentalidades dominantes e as culturas tradicionais estão encasteladas na Justiça. CRISTOVAM: Em novembro de 1998, acompanhei o Lula para visitá-lo. Quando o senhor abriu a porta do apartamento residencial no Alvorada, disse: “Lula, venha conhecer a casa onde você um dia vai morar”. Foi generosidade ou previsão? FERNANDO HENRIQUE: Não creio que tenha sido uma previsão, mas sempre achei uma possibilidade. E também um gesto de simpatia. Eu disse ao Lula naquele dia: “Temos uma relação de amizade há tantos anos, não tem cabimento que o chefe do governo não possa falar com o chefe da oposição”. Era uma época muito difícil para o Brasil. Eu disse lá, não sei se você se lembra: “Algum dia nós podemos ter de estar juntos”. Eu pensava numa crise. E disse ao Lula: “Não quero nada de você. Só conversar. É para você ter realmente essa noção de que num país, você não pode alienar uma força”. Lula conversou comigo no dia da posse. E foi bonita aquela posse... Na hora de ir embora, o Lula levou a mim e a Ruth até o elevador. E aí ele grudou o rosto em mim, chorando. E disse: “Você deixa aqui um amigo”. Foi sincero, não é? CRISTOVAM: Você é adversário dele? FERNANDO HENRIQUE: Eleitoralmente, sim. Mas tem que estar perto. Tem que saber o que o outro pensa.
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