Personagens Hamm – cego, incapaz de levantar-se Clov – empregado de Hamm, incapaz de sentar-se Nagg – pai de Hamm, vive numa lata de lixo Nell – mãe de Hamm, vive noutra lata de lixo
Interpretação “Acabou, está acabado, isto vai acabar, talvez isto acabe. (Pausa.) De grão em grão, um a um, e um dia, de repente, vira um monte, um pequeno monte, o monte impossível. (Pausa.) Não podem mais me punir. (Pausa.) Vou para minha cozinha, três por três por três, e esperarei ele apitar. (Pausa.) Agradáveis dimensões, formidáveis proporções, me debruçarei sobre a mesa, olharei para a parede e esperarei ele apitar.” – Clov abrindo a peça Encenada quatro anos após Esperando Godot, esta nova peça não responde as questões abertas nos trabalhos anteriores e pouco se move da temática já abordada inclusive nas três novelas que compõe a Trilogia. Porém aponta a possibilidade de um novo caminho para aqueles que tenham a coragem de debelar as falhas intelectuais e morais que nos assolam.
O cenário cerrado com apenas duas janelas retangulares paralelas no alto lembra o interior de um crânio humano que cerrou seus olhos para o mundo exterior. Também dando a ideia de que as personagens sejam aspectos do mundo interior de uma pessoa. – Nagg e Nell representariam a memória (memórias proustianas cerradas em potes) enquanto o diálogo de Hamm e Clov parece o de uma mente consigo mesma.
Hamm controla as demais personagens e os tem como audiência de suas histórias (fictícias ou reais) de interação com outras pessoas e situações da vida. Numa delas Hamm recusa ajuda a um menino que simbolizava fertilidade e renovação – para ele a vida não vale a pena ser renovada. Em linha com a fala inicial de Clov, aquelas personagens estão morrendo lentamente (“grão em grão”), com um fim que nunca chega (“monte impossível”), enquanto confortam-se com um pouco de ordem (“agradáveis proporções) e esperam. Tudo na casa está se degenerando e desmoronando. E o tempo (desagradável) parece não passar (“Que horas são?” – “A mesma de sempre.”).
A manutenção da ordem parece ser importante para as personagens. Clov diz “Amo a ordem. É meu sonho. Um mundo onde tudo fosse silencioso e imóvel, cada coisa em seu derradeiro lugar, sob o derradeiro pó.” – ordem como ausência de ação e mudança, desejo de morte.
Mas Hamm pergunta-se se fora da casa, fora do cerrado mundo de sua atual existência, não haveria vida. Pondera se sua situação não se deve a forma como encara o mundo, tentando forçar a realidade dentro de suas ideias inadequadas (“Durante toda a vida, as mesmas perguntas, as mesmas respostas.”). Apesar de encontrar conforto nas ideias de sempre (“Amo as velhas perguntas. Ah, as velhas perguntas, as velhas respostas, não há nada igual!”) Hamm entende suas possíveis inadequações e se enerva, mas não consegue romper com suas gastas ideias (ao tentar rezar desiste negando a existência de Deus – “Ele não existe!”). Esta inabilidade de enxergar além das ideias vazias é acompanhada do isolamento moral que permeia a relações entre as personagens – configurando o erro de fechar-se para a vida ao invés de abrir-se para ela.
A aparição do menino ao final (mesmo simbolismo do menino na história de Hamm) parece libertar Clov da dependência do pensamento limitante, abrindo-lhe para a misteriosa realidade e inspirando-lhe o desejo de sair da casa – abrir sua mente para o mundo e não mais restringir o mundo às suas ideias.
Neste drama Beckett abre uma possibilidade ao homem de sair do poço existencial em que se jpgou. Mas conseguirá Clov libertar-se de Hamm e atravessar a porta? Conseguirá o homem romper sua gaiola imanente e abrir-se para a transcendência?
Notas
Samuel Beckett (1906-1989) nasceu num subúrbio de Dublin, Irlanda (Eire).
Autor crítico e dramaturgo, ganhador do prêmio Nobel em 1969. Escreveu em francês e inglês, e é conhecido principalmente pela peça Esperando Godot (1952).
Destacam-se ainda a trilogia de novelas Molloy (1951), Malone Muert (1951) e O Inominável (1953), e a peça Fim de Partida (1957).
Assim como Franz Kafka, a obra de Beckett transmite sensação de angústia – são os grandes poetas da desesperança..
Em 1969 Beckett recebe o prêmio Nobel "for his writing, which - in new forms for the novel and drama - in the destitution of modern man acquires its elevation". A maioria dos críticos vê Beckett como um revelador da real condição humana – o conteúdo da sua obra seria “a busca de si mesmo”. Alguns o veem como o arauto do solipsismo (doutrina segundo a qual só existem, efetivamente, o eu e suas sensações, sendo os outros entes (seres humanos e objetos), partícipes da única mente pensante, meras impressões sem existência própria). Afinal o que Beckett nos queria dizer? Denunciar a decadência humana ou, como um apologista da nova ordem, expor um falso absurdo da nossa existência?
Beckett descreve Fim de Partida como uma peça "rather difficult and elliptic, mostly depending on the power of the text to claw, more inhuman than Godot."
Foi o ultimo trabalho relevante de Beckett. Seus trabalhos mais expressivos concentram-se nos anos 50 (idade entre 44 e 54 anos). Depois disto seus dramas ficaram, para usar a palavra dos críticos, minimalistas: (a) Ato Sem Palavras (1957 – 10 minutos de duração – atores vagam a esmo enquanto objetos descem e sobem no palco), (b) Play (1963 – 15 minutos de duração – atores dentro de jarras recitado textos rapidamente), (c) Breath (1969 – 25 segundos – palco com lixo, choro de nascimento, respiração e luzes pulsando e, novamente, choro de nascimento), (d) Not I (1972 – 14 minutos – apenas uma boca recitando um texto confuso), e (e) Quad (1981 – 9 minutos – atores vestindo capuzes andando em sincronia sobre um quadrado ao ritmo de percussão).