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Diário de Um Pároco de Aldeia de Georges Bernanos



Personagens Principais Pároco de Ambricourt – narrador, jovem, recém-ordenado Pároco de Torcy – mais velho, experiente e pragmático Conde – principal família da cidade Condessa – cínica, incrédula pela perda do filho Chantal – rebelada, filha do Conde

Personagens Secundárias Louise – governanta do castelo, amante do conde Olivier – irmão da Condessa Serafina – jovem aluna da aula de catecismo, sensual e arengueira Dr. Delbende – cínico, pragmático Dr. Laville – viciado em drogas, avisa ao pároco de sua iminente morte Dufrety – colega de seminário do pároco


Interpretação Neste romance confessional, com conotação filosófica, Bernanos nos brinda com um estudo sobre a santidade, descrevendo-a como ela é.

O pároco de Ambricourt é inadaptado a vida real e concreta, parece não pertencer a este mundo. Quer salvar as almas, mas ninguém tem consideração por ele, considerando-o muito jovem e ingênuo.


Todos tem uma visão pragmática da vida, esvaziada de espiritualidade, contrastando fortemente com o pároco. Os discursos do pároco de Torcy lembram o Grande Inquisidor dos Irmãos Karamazov de Dostoiévski: que vê a Igreja com o fardo de manter a fé cristã porque Jesus não foi suficientemente convincente. Ao longo da leitura do diário há um clima de tédio constante, de imobilidade, uma sensação de impotência diante da situação reinante. É uma materialização (perda do espírito) que neutraliza nossa humanidade, reinterpretando os fenômenos espirituais e reduzindo os valores morais a fatores genéticos, físicos ou químicos. É um mundo despido de conteúdo, onde a fé é considerada apenas um jogo.

Mesmo diante de todo antagonismo, o pároco quer fazer o melhor, quer cumprir a sua missão. Excepcional do ponto vista moral, ele faz oposição as tendências do mundo apresentando um horizonte de consciência muito mais amplo que os demais, transcendendo o seu tempo. O pároco está certo diante dos Céus e não da Terra (“o ridículo está sempre tão perto do sublime”).

Ele não é um homem do seu tempo, não comunga com aquilo que todos parecem buscar num mundo material e farsesco. No fim, incapacitado de viver neste mundo, morre em paz, reconciliado consigo mesmo. “Qu’est-ce que cela fait? Tout est grâce.”


 

Notas

  • Georges Bernanos (1888-1948) nasceu em Paris, França.

  • É um dos grandes autores católicos nascidos no século XIX que junto com François Mauriac, Paul Claudel e Julien Green, entre outros, desejavam restaurar os valores católicos a partir da literatura.

  • Bernanos militou na L’Action Française, movimento ortodoxo que lutava pelos valores conservadores, incluindo a monarquia. O movimento radicalizou-se e ao movimento chegou a ser excomungado.

  • Principais obras de Bernanos, além do Diário (escrito em 1936) em questão, são: Le grand Peur des Bien-Pensants, Monsieur Ouine e Sob o Sol de Satã (obra que lhe deu notoriedade).

  • Ele era intransigente e quixotesco. Queria a perfeição na terra, sonhando com um mundo de boa vontade que é concretamente impossível.

  • A manutenção de um diário ajuda a nos entendermos. A primeira condição para a prática filosófica é a capacidade de contar, com sinceridade, sua história para si mesmo.

  • Identifica-se na obra a vida e filosofia de Santa Terezinha: (1) morte jovem por tuberculose (24 anos); (2) a prática do diário; (3) o lamento da perda da alma da infância (fala do Pároco de Torcy); (4) a luz encontrada na consciência de sua insignificância (carta da Santa a sua irmã).

  • A personagem Dom Quixote também estava certa diante dos Céus e não da terra.

Trechos da Narrativa

Os padres Antigamente, por exemplo, a tradição prescrevia que um discurso episcopal nunca devia se encerrar sem uma prudente alusão – convicta, é claro, mas prudente – à perseguição próxima e ao sangue dos mártires. Hoje em dia, essas predições vão se tornando cada vez mais raras. Provavelmente, porque sua realização parece menos incerta.

... mas confesso que padre letrado sempre me causou horror.

O padre medíocre é feio.

Os pobres e os ricos ... são Paulo não se iludia. A abolição da escravatura não suprimiria a exploração do homem pelo homem. (...) Dizia apenas que o cristianismo havia trazido ao mundo uma verdade que nada poderia fazer cessar, porque se encontrava previamente no âmago das consciências e porque nela o homem se reconhece imediatamente: Deus salvou cada um de nós e cada um de nós vale o sangue de Deus.

A idéia deles é boba. Naturalmente, trata-se ainda de exterminar o pobre – o pobre é testemunha de Jesus Cristo, é herdeiro do povo judeu, ora! – mas ao invés de destruí-lo como gado, o matá-lo, imaginaram transformá-lo numa pessoa que vive de rendas, num aposentado.

Haverá sempre pobre entre vós, pela mesma razão porque haverá sempre ricos, isto é, homens ávidos e duros, que procuram menos as posses do que o poder. Homens como estes existem entre os pobres como entre os ricos, e o miserável que vai curar sua bebedeira à beira do rio talvez tenha os mesmos sonhos que César, adormecido sob suas cortinas de púrpura. Ricos ou pobres, olhai-vos de preferência na pobreza, como diante de um espelho, pois ele é a imagem de vossa decepção fundamental, ela traz para este mundo o lugar do paraíso perdido, ele é o vazio de vossos corações, de vossas mãos. Somente a coloquei tão alto, a coroei, a desposei, porque conheço vossa malícia. Se eu tivesse permitido que vós a considerásseis vossa inimiga, ou apenas como estrangeira, se eu vos tivesse deixado a esperança de expulsá-la um dia do mundo, teria com o mesmo ato condenado os fracos. (...) Pus meu sinal sobre a fronte deles ...

Um problema insolúvel: restabelecer os direitos do pobre, sem estabelecê-lo no poder. (...) Uns vivem da idiotice de outrem, de sua vaidade, de seus vícios. O pobre, por sua vez, vive de caridade. Que expressão sublime.

A divisão de ricos e pobres deve responder a uma grande lei universal. Um rico, aos olhos da Igreja, é protetor do pobre, seu irmão mais velho, ora! Veja que, com freqüência, ele é esse irmão mais velho a contragosto, pelo simples jogo das forças econômicas, como eles dizem. Um multimilionário que quebra, e lá se vão milhares de pessoas para o olho da rua. Podemos então imaginar o que acontece no mundo invisível quando tropeça um desses ricos de quem estou falando, um intendente das graças de Deus.

Nós, diante do Senhor Mas qual é o peso de nossas chances, para nós que aceitamos, de uma vez por todas, a assustadora presença do divino em cada instante de nossas pobres vidas?

... a pureza não nos é prescrita como um castigo, ela é uma das condições misteriosas mais evidentes – a experiência o atesta – deste conhecimento sobrenatural de si mesmo, de si mesmo em Deus, que se chama fé. A impureza não destrói esse conhecimento, aniquila a necessidade dele.

E o imprevisível nunca é negligenciável. Estarei ali onde nosso Senhor quer que eu esteja? Pergunta que me faço vinte vezes por dia. Pois o mestre que servimos não somente julga as nossas vidas – ele compartilha delas, e as assume. Teríamos muito menos dificuldade para contentar um Deus geômetra e moralista.

Eis-me despojado, Senhor, como somente vós sabeis despojar, pois nada escapa à vossa temível solicitude, ao vosso temível amor.

Acredito nisso, senhora. Creio que se Deus nos desse idéia clara da solidariedade que nos une uns aos outros, no bem como no mal, de fato não poderíamos mais viver.

O que posso lhe afirmar, apesar de tudo, é que não há um reino dos vivos e um reino dos mortos, somente existe o reino de Deus, e todos, vivos ou mortos, estamos dentro dele.

O demônio E o demônio da angústia é essencialmente, creio, um demônio impuro.

O demônio da luxúria é um demônio mudo.

Pois Satã é um amo muito rígido: ele não ordenaria, como o Outro, com sua simplicidade divina: “Imitem-me!” Ele não suporta que suas vítimas se assemelhem a ele, permite-lhes apenas uma caricatura grosseira, impotente, com a qual deve se deliciar, sem jamais se saciar, a feroz ironia do abismo.

Os pecados O pecado contra a esperança! O mais mortal de todos e talvez o mais bem recebido, o mais acariciado. É necessário muito tempo para reconhecê-lo, e a tristeza que o anuncia, o precede, é tão doce! É o mais rico dos elixires do demônio, a sua ambrosia.

Confundir a luxúria própria do homem, e o desejo que aproxima os sexos, é o mesmo que dar o mesmo nome ao tumor e ao órgão que ele devora, e cujo aspecto às vezes suas deformidade reproduz de maneira assustadora. (...) Como não imaginam com mais freqüência que a máscara do prazer, despojada de toda hipocrisia, é justamente a máscara da angústia?

A alegria Veja, vou lhe definir um povo cristão pelo seu contrário. O contrário de um povo cristão é um povo triste, um povo de velhos. (...) É do sentimento de sua própria impotência que a criança tira humildemente o princípio da sua alegria. (...) Se nos tivessem deixado fazer o que queríamos, a Igreja teria dado aos homens esta espécie de segurança soberana. (...) Fora da Igreja, um povo é sempre um povo de bastardos, um povo de crianças abandonadas. Evidentemente, resta-lhes ainda a esperança de se fazer reconhecer por satã. (...) Ora, a Igreja foi encarregada por Deus de manter no mundo o espírito da infância, a ingenuidade, este frescor. (...) A Igreja dispõe da alegria, de toda a alegria reservada a este nosso triste mundo.

A Virgem Maria O olhar da Virgem é o único olhar verdadeiramente infantil, o único olhar de criança que jamais foi erguido sobre nossa vergonha e nossa infelicidade. Sim, meu filho, para bem rezar a ela, é preciso sentir sobre si esse olhar que não é inteiramente o olhar de indulgência – pois a indulgência não existe sem alguma experiência amarga – mas o da terna compaixão, da surpresa dolorosa, de não se sabe ainda qual sentimento, inconcebível, inexprimível, que a torna mais jovem do que o pecado, mais jovem do que a raça da qual provém, e que ela, apesar de mãe pela graça, mãe das graças, é a caçula do gênero humano.

A verdadeira humildade Odiar a si mesmo é mais fácil do que se pensa. A graça está em se esquecer. Mas se todo orgulho estivesse morto em nós, a graça das graças seria amar-se humildemente a si mesmo, como qualquer um dos membros sofridos de Jesus Cristo.

Nossa condição de seres caídos Acredito cada vez mais que aquilo que chamamos de tristeza, angústia, desespero, como que para nos persuadir que se trata de certos movimentos da alma, é a própria alma; que, desde a queda, a condição do homem é tal que nada poderá perceber, dentro como fora dele, a não ser sob a forma da angústia. (...) Se não fosse a vigilante piedade de Deus, me parece que na primeira tomada de consciência que tivesse de si mesmo, o homem se tornaria novamente pó.

Trabalhe, disse-me ele, faça pequenas tarefas, dia após dia. (...) É assim que o bom Deus espera nos ver, quando nos abandona às nossas próprias forças. As pequenas tarefas não parecem importantes, mas dão paz. São como as flores do campo, você sabe. Achamos que não têm perfume, mas, quando juntas, rescendem. A oração das pequenas coisas é inocente.

... a forma carnal da esperança, acho que é isso que chamam felicidade.

O inferno Julgamos o inferno a partir das máximas deste mundo, e o inferno não é deste mundo. Ele não pertence a este mundo, nem tampouco ao mundo cristão. Um castigo eterno, uma expiação eterna – o milagre está em termos essa idéia aqui na terra, ao passo que, a falta, assim que parte de nós, basta um olhar, um sinal, um apelo mudo, para que o perdão mergulhe sobre ela, do alto dos céus, como uma águia. (...) O inferno, senhora, é não se amar mais. (...) Não amar mais, não compreender mais, e ainda assim viver, que prodigioso milagre! O erro comum a todos está em atribuir ainda a essas criaturas abandonadas alguma coisa de nós, de nossa perpétua mobilidade, enquanto que elas estão fora do tempo, fora do movimento, fixadas para sempre. (...) A infelicidade, a infelicidade terrível daquelas pedras em brasa que foram homens, é que elas nada mais têm a compartilhar.

Economia e política Admiro os revolucionários que se dão a tanto trabalho para explodir muralhas com dinamite, enquanto o molho de chaves das pessoas bem-pensantes lhes teria permitido entrar tranqüilamente pela porta, se acordar ninguém.

... com aquela seriedade fúnebre, com aquele ar de segurança desconfiada que o privilégio do dinheiro dá aos mais ínfimos burgueses.

... o Estado começou a fazer das tripas coração. Cuida dos seus filhos, cura as suas feridas, lava a roupa, faz a sopa dos pobres, limpa a escarradeira dos caquéticos, mas olha para o relógio, imaginando se sobrará tempo para cuidar de seus próprios negócios.

Pegaria desde logo um daqueles “militantes”, aqueles mercadores de frases, artesãos de revoluções ...

Assim é que a famosa encíclica de Leão XIII, Rerum Novarum, vocês lêem tranqüilamente, com olhos indiferentes como um mandamento qualquer de quaresma. Na época, meu filho, achávamos que a terra tremia sob nossos pés. Que entusiasmo! Naquele tempo, eu era pároco de Norenfonte, em plena região mineira. Aquela idéia tão simples de que o trabalho não é mercadoria, submetida à lei da oferta e da procura, que não se pode especular sobre salários, sobre a vida dos homens, da mesma forma que sobre o trigo, o açúcar e o café, ela revolvia as consciências, você acredita?

Em suma, nosso Senhor conhecia muito bem o poder do dinheiro, abriu perto de si pequeno espaço para o capitalismo, deu-lhe a sua oportunidade, e até mesmo fez o primeiro depósito: acho isso prodigioso.

A mídia O Verbo se fez carne, e os jornalistas daqueles tempos não souberam de nada!

A Idade Média ... a Idade Média compreendeu tudo.

Lutero ... foi naquele tempo que compreendi Lutero. (...) ... o velho Lutero acabou tendo que carregar feno para a manjedoura dos príncipes alemães, uma bela turma ... (...) Ainda que a princípio justa, pouco a pouco sua ira o havia envenenado: virou gordura ruim, eis tudo.

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