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Desconstruir Duchamp de Affonso Romano de Sant’Anna


Joguei o urinol na cara deles como um desafio e agora eles o admiram como um objeto de arte por sua beleza. – Marcel Duchamp (1887-1968)


Desde o instante em que a arte deixa de ser o alimento para as melhores mentes, o artista pode usar todos os truques do charlatão intelectual. Hoje em dia, a maioria das pessoas não espera mais receber consolo ou exaltação da arte.


Os “refinados”, os ricos, os ociosos profissionais, os destiladores de quintessências buscam o que é novo, estranho, extravagante, escandaloso na arte. Eu mesmo, desde o cubismo e além dele, contentei esses mestres e esses críticos com todas as bizarrices mutáveis que me passaram pela cabeça.


E quanto menos eles me compreendiam, mais eles me admiravam. À força de me divertir com todas essas brincadeiras, com todos esses quebra-cabeças, enigmas, e arabescos, eu fiquei célebre, e muito rapidamente. E celebridade para um pintor significa vendas, lucro, fortuna, riqueza. E hoje, como o senhor sabe, eu sou famoso, eu sou rico.


Mas, quando estou sozinho comigo mesmo, não tenho a coragem de me considerar um artista no sentido antigo e grande da palavra. Giotto e Ticiano, Rembrandt e Goya foram grandes pintores: eu sou apenas um divertidor do público, um charlatão.


Compreendi o tempo em que eu vivi e explorei a imbecilidade, a vaidade e a avidez de meus contemporâneos. É uma amarga confissão a minha, na verdade mais dolorosa do que parece. Mas ela tem o mérito de ser sincera. – Pablo Picasso (1881-1973) em entrevista fictícia a Giovanni Papini, Libro Nero (1951)


E como ficou chato ser moderno agora serei eterno. – Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)


Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão é, como seu título indica, o corajoso esforço do professor e crítico Affonso Romano de Sant'Anna de questionar o universo da arte contemporânea, mais submisso aos valores ideológicos, econômicos e marqueteiros do que aos artísticos e culturais. Não se trata de ser contra ou a favor da arte moderna, mas de propor uma indagação, uma reflexão, um esforço para afastar o entulho e descortinar novos caminhos.


Ao discutir a ação nefasta dos oportunistas que invadiram o mercado de arte, o autor provocou enorme e salutar reboliço. Foi intensamente aplaudido por aqueles que ansiavam por um porta-voz com coragem suficiente para revelar que há algo de podre no reino da arte, governado por um rei que está nu. Foi odiado e vilipendiado por aqueles que o consideram um iconoclasta reacionário, que ousou questionar certezas que, para eles, devem ser aceitas como dogmas.


A “arte contemporânea” (termo mercadológico criado pela casa de leilões Christie’s nos anos 1970) confunde-se com misticismo e religião: um diálogo com o ausente, mediado pelo “artista” (crítico e curador) como sacerdote de um credo – a fé é acreditar nas intenções do artista. Quanto mas vazia a obra, mais cheia de significados a preencher. O milagre da ausência de linguagem tornar-se linguagem aos olhos do espectador – uma arte esotérica só para “iniciados” que fingem ver a roupa do rei, sonhando com a possibilidade da descoberta de uma gnose iniciática (ver Mito e Realidade de Mircea Eliade).


No princípio era a obra, e a consciência estética e artística do produto levou os pensadores a teorizarem sobre a obra. Passado algum tempo, a teoria passou a preceder à obra, e surgiram os manifestos. Depois a obra passou a ser lida em função do manifesto ou teoria. E, finalmente, o manifesto e teoria substituiu a própria obra. Deixou-se de fazer arte, passando-se a falar de arte, numa pretensiosa conversa fiada para justificar nulidades – a arte contemporânea se crê “conceitual”, cheia de pretensões filosóficas.


Artistas e obras passam a ser avaliados por cifras alcançadas em galerias e leilões. A quantidade passa a determinar a qualidade, uma situação esteticamente perversa que denota nossa decadência espiritual e intelectual (ver O Reino da Quantidade de René Guénon). O mercado de arte passa a prestar-se a lavagem de dinheiro – transformaram a arte em crime.


O artista revolucionário/vanguardista, irmanado com críticos e historiadores, busca legitimidade atacando tudo que foi criado no passado – parricídio estético na tentativa de ocupar com o seu corpus artístico o lugar do corpo dos antepassados. O anterior não teria mais função, teria sido apenas uma etapa para chegar-se até aqui – é preciso ocultar estes “cadáveres” do passado para que nas bienais da vida possa resplandecer a “arte contemporânea” como a única e legítima arte.


Artistas se rotulam de contemporâneo na busca de um jubiloso abrigo, acreditando assim estarem se inserindo no ápice da história da arte – estratagema que demanda ocultar toda e qualquer obra que não se encaixe dentro do receituário “contemporâneo”.


Para recolocar as artes plásticas no devido caminho, Sant’Anna propõe uma intervenção multidisciplinar (psicologia, antropologia, sociologia, marketing, etc) para esclarecer os auto-enganos e os enganos coletivos em que, pseudo-artisticamente, nos metemos.


 

A arte moderna representa o espírito moderno e, infelizmente, hoje aí reside sua única legitimidade. Se o espírito moderno é materialista e imanente, nada mais natural que as artes reflitam tal estado de coisas – a arte tornou-se materialista, perdendo toda conotação espiritual. Mesmo sendo uma proposição decadente, é possível encontrar raros casos de genialidade aptos a produzir obras capazes de elevar o espírito humano.

Mas não é fácil ser um verdadeiro artista no mundo contemporâneo, pois sua liberdade é tolhida de três modos:


(1) O marchand exige uma obra comerciável, com tamanho e temática que enquadre-se nos anseios do seu público alvo.


(2) O crítico quer “obras abertas” que lhe permita se exibir fazendo análises intermináveis sobre coisas que não estão no quadro, que possibilite expressar suas próprias teorias.


(3) O curador das grandes exposições quer que a obra tenha relação com algum fenômeno social (bandeira ideológica), alguma conotação polêmica relacionada com algum momento da vida pública.


O artista plástico para poder viver de seu trabalho precisaria se submeter a uma dessas três tiranias, gerando artistas com quase nenhuma liberdade criativa. É difícil deter uma autonomia dentro deste mundo cada vez mais restrito.


 

Para Aristóteles a essência da arte está na imitação (mimese poética) – a arte resulta da propensão do homem à imitação – aprendemos por imitação – e do prazer que dela extrai (o homem imita a natureza, tanto na aparência (exterior) como na essência interna). As artes podem representar as coisas como são ou como devem ser.


Afastando-se do conceito de arte platônico (imitações fenomênicas que, por sua vez, são imitações dos paradigmas eternos das Ideias), o Estagirita entende a arte muito além da reprodução passiva das coisas, mas como a recriação segundo uma nova dimensão: “… a função do poeta não é contar o que aconteceu mas aquilo que poderia acontecer, de acordo com o princípio da verossimilhança e da necessidade.” Imitar a vida não é apresentá-la tal qual ela é (manifestação num mundo imperfeito), mas como deveria ser (um mundo mais próximo da perfeição onde (a) há uma ligação entre causa e efeito, (b) estáveis e significativas leis da probabilidade determinam as ações, e (c) um senso de inevitabilidade, domínio do destino, está presente).


O objeto da arte é essencialmente contemplativo, a obra de arte é voltada para a contemplação do objeto da mimese aristotélica. A contemplação do transcendente, do espiritual, gera um determinado tipo de arte. E quando negamos a transcendência acabamos contemplando nossa própria imanência. A derrocada das artes reflete o processo de decadência civilizacional. Este processo de involução das artes é semelhante ao da filosofia que partiu da relevância absoluta de compreender a estrutura da realidade para cair no relativismo onde não é possível entender mais nada.


A decadência na transferência do tema transcendente para temas cada vez mais imanente, de Giotto (1266-1337) a Piero Manzoni (1933-1963), se deu ao longo dos séculos:



 

Um dos problemas das artes em geral é seu uso como instrumento de político. O artista, desprovido de talento, apega-se a alguma bandeira ideológica (comunismo, gayzismo, racismo, ecologismo, indigenismo, etc) no intuito de divulgar seu trabalho na mídia comprometida e atrair os ávidos de expressar bom-mocismo – a arte perde sua universalidade.


Mas toda obra de arte tem uma Forma final, uma conclusão. E esta Forma é alcançável pelos sentidos (visível, audível). A Forma pode ser bela independentemente da atratividade do seu objeto – a beleza está na Forma.


O Conteúdo (reflexo do objeto) é subordinado a Forma – a Forma predomina sobre o Conteúdo (pensamento e intenção do artista). Só é obra de arte quando podemos separar a Forma do Conteúdo (ideologia).


 

A arte é espelho da vida, mostra ao homem as forças e fraquezas da alma com o objetivo de promover a catarse. A verdadeira arte ajuda a sublimar os desejos ilegítimos e elevar-nos o espírito.




 

Notas


  • Affonso Romano de Sant’Anna (1937- ) nasceu em Belo Horizonte (MG).

  • Poeta e cronista, nas décadas de 1950 e 1960 participou de movimentos de vanguarda poética.

  • Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão é a coletânea das 51 crônicas versando sobre a arte contemporânea publicadas originalmente no jornal O Globo no início dos anos 2000.

  • A Nova Roupa do Rei de Hans Christian Andersen é o experimento sobre conformismo de Solomon E. Asch em forma de conto de fadas.

  • Atualmente as supostas obras de arte ganham mais vida quando apresentadas em “livros de arte”. Aí são buriladas e cercadas de textos herméticos e pretensiosos para iludir os incautos e os filisteus. Porém diante da obra real só há desencanto.

  • Com o Expressionismo (início do século XX) houve uma transferência definitiva do objeto da mimesis aristotélica. O artista deixa de ver o mundo exterior e passa a olhar para seu mundo interior – “É a psique que fala.” definiu o pintor austríaco Oskar Kokoschka (1886-1980).

  • Até o surgimento das vanguardas, o valor estético e o preço de uma obra de arte era avaliado pelos seguintes critérios (isolados ou combinados): (a) tempo aplicado na sua elaboração e seu espaço (tamanho), (b) o tipo de material empregado, e (c) a competência e genialidade do artista (óbvia e comprovada aos olhos de qualquer pessoa.

  • A denominação arte abstrata é equivocada: um quadro de Wassily Kandinsky (1866-1944) tem formas e cores, tem concretude, existe.

  • “Beleza é aquilo que envelhece bem.” – José Monir Nasser (1957-2013)

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