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Como Ouvir e Entender Música de Aaron Copland


O único fim, o único objetivo de toda música é o louvor a Deus e a recreação da alma. Quando isso se perde de vista, não pode haver mais verdadeira música, restando somente ruídos e gritos infernais.” – Johann Sebastian Bach (1685-1750)

Ouvimos música em três planos distintos:

(1) Plano Sensível – ouvir a música sem pensar, entregue ao próprio prazer do som.


(2) Plano Expressivo – identificar de um determinado sentido na peça ouvida, os humores que ela desperta, o estado de espírito que ela aviva, os sentimentos que o compositor queria expressar – sentidos muitas vezes inefáveis.


(3) Plano Musical – entender o plano das próprias notas e da sua manipulação, identificar seus elementos essenciais, a textura musical, e sua estrutura ou forma musical.


A música tem quatro elementos essenciais:

(1) Melodia – é o que cantamos ou assobiamos de um tema que nos agrada, sendo que só podemos cantar uma nota de cada vez (os instrumentos de sopro, assim como a voz humana, são instrumentos melódico). Melodia é a combinação sucessiva de sons como um relato, cada uma das notas engendra a outra nota. A melodia é a alma da música – ela revela a genialidade ou manifesta a pobreza de um compositor. “A paciência ou o estudo bastam para reunir sons agradáveis, mas a composição de uma bela melodia é obra de gênio. A verdade é que uma melodia bonita não necessita de ornamentações nem de acompanhamentos para agradar. Para saber se é realmente bonita, temos de cantar a melodia sem acompanhamento”, afirmava Joseph Haydn (1732-1809).

Deve-se sempre agarrar a melodia ao ouvir uma peça de música, não a deixando submergir no material secundário. A melodia se dirige ao que o ser humano tem de superior: a inteligência, a nobreza da alma, o desejo de infinito, de felicidade.

Tecnicamente todas melodias existem dentro dos limites de um sistema de escalas (arranjo de uma série particular de notas). A maioria das músicas baseia-se no arranjo de sete notas (com doze semitons dentro do âmbito de uma oitava) – escala diatônica (movimenta-se pela tônica, ou nota de referência).

(2) Harmonia – é a combinação de sons produzidos simultaneamente, criando diferentes estados de ânimo no ouvinte (o piano é exemplo de instrumento harmônico) – a base que acompanha a melodia. Etimologicamente, harmonia vem de uma palavra grega que significa “conjunto”, “junção simultânea”: a harmonia é arte de juntar, de combinar sons, em função de uma linha melódica. Tons separados soando juntos produzem acordes – a harmonia, enquanto ciência, é o estudo desses acordes e da sua relação mútua. A harmonia toca o homem em suas sensações, seus sentimentos, sua sensibilidade, seu coração.

Um acorde é um som composto por várias notas: o acorde de Dó Maior, por exemplo, é composto pelas notas dó-mi-sol. Acompanhará a melodia, conformando-se a ela. Pode ser

dissonante, de 7ª, por exemplo: dó-mi-si(b)-dó, dando um tom diferente à melodia e nesse caso requer-se um acorde consonante como solução harmônica; um dó cantado sobre um acorde de dó maior não soará como um dó cantado sobre um acorde de dó 7a ou de dó menor. O compositor mudará os acordes em função daquilo que deseja evocar através da melodia. A harmonia une-se à melodia, eleva-a, deixa-a mais precisa, dá-lhe nuances como o brilho de um diamante ou a neve no cume de altas montanhas. Um acorde Maior dá à melodia um tom, um clima particular, e um acorde menor pinta-a de outra cor, cada um deles atuando de modo distinto sobre os sentimentos. O primeiro, manifestando plenitude, o outro, certa melancolia. É a vestimenta, a decoração da melodia. A melodia e a harmonia se enriquecem reciprocamente, mas a primeira domina e a segunda se apaga. A harmonia será tão melhor quanto menos se impor, ocupando seu lugar de modo preciso e discreto.

(3) Ritmo – quando escutamos música é comum que marquemos seu “tempo” de forma intuitiva com batidas dos pés ou das mãos, ritmo é este tempo a intervalos constantes e regulares. Pode haver dois ou mais ritmos independentes executados simultaneamente (com as primeiras batidas coincidentes ou não) – polirritmia.

O ritmo, assim como a harmonia, acompanha a melodia e dá-lhe uma estrutura (para Platão o ritmo é a “ordem do movimento”). A frase melódica se desenvolveu segundo a cadência imposta pelo compositor. Mas, diferentemente da harmonia, o ritmo dirige-se ao homem em sua parte inferior, na parte corporal de seu ser.

A palavra “ritmo” vem de “rima”, que distingue a poesia da prosa, um texto “normal” sem

cadência particular. (4) Timbre – é a coloração do som (colorido tonal), graças ao qual é possível diferenciar entre vozes ou instrumentos musicais – o timbre na música é análogo a cor na pintura. O ouvinte deveria aumentar sua percepção dos diferentes instrumentos e suas respectivas características tonais, bem como entender melhor as finalidades expressivas de um compositor no uso de qualquer instrumento ou combinação de instrumentos.

Há três espécies de textura musical: (a) monofônica, caracterizada por uma só linha melódica desacompanhada (e.g. canto gregoriano); (b) homofônica constituída de uma linha melódica principal e um acompanhamento em acordes (“invenção” dos primeiros compositores operísticos no século XVII); e (c) polifônica, que exige mais atenção do ouvinte, pois se move em planos melódicos separados e independentes, que se cruzam formando harmonias (e.g. prelúdio coral Ich ruf zu Dich, Herr Jesu Christ de Bach cantado em três vozes).

A estrutura (forma) musical é a organização coerente do material de que dispõe o compositor. É a maneira como os compositores arranjam e ordenam suas ideias musicais, ou seja, como eles elaboram, moldam e estruturam uma composição. Há dois elementos básicos usados por eles: o contrastee a repetição.

O contraste é obtido de uma infinidade de possibilidades como, por exemplo, altura (sons agudos contrastando com os graves), dinâmica (forte ou fraco), andamento (rápido o vagaroso), modo (maior ou menor), métrica (alterações de compasso), caráter (alegre/triste, fogoso/calmo, ligeiro/solene, etc.), harmonia (dissonante ou consonante), modulação (mudança de tonalidade), formação (pequena ou grande), timbre, textura densa/espaçada, pesada/ligeira, homofônica/polifônica, etc.). etc.

A repetição de ideias é necessária para encadear a música, dando unidade a composição. A composição pode assumir inúmeras formas:

FormaBinária: construída com duas seções de peso igual (A e B), sendo a segunda uma réplica da primeira.


FormaTernária: construída com três seções A¹ (enunciado), B (contraste) e A² (enunciado), sendo A¹ e A² iguais.


FormaRondó: num rondó o tema principal (seção A) está sempre rondando aos demais seções (B, C e quantas mais houver). Exemplo: A¹ (tema principal), B (1º episódio contraste), A² (repetição do tema principal), C (2º episódio novo contraste), A³ (repetição do tema principal) – A² e A³ podem apresentar uma forma abreviada ou levemente modificada de A¹.


Tema e Variações: é das mais antigas formas musicais, depois de apresentar a melodia de maneira relativamente simples, o compositor repete-a tantas vezes quanto o desejar, mas então modificada, com outra roupagem, variando-a seja na harmonia, no ritmo, no andamento, na instrumentação, etc.


Entre as formas maiores destacam-se a:


Suíte: designa um certo número de peças, normalmente de danças, reunidas numa obra elaborada como um todo. Muito usada no período barroco reunindo quadro danças de diferentes países: allemande (da Alemanha) de andamento moderado, courante (da França) ou corrente (da Itália) relativamente rápido, sarabande (da Espanha) vagaroso, e gigue (da Inglaterra) de andamento vivo.

Sonata: peça destinada a ser tocada (“soada”), opondo-se cantata destinada ao canto. Quando destinada a três instrumentos é denominada Trio, Quarteto para quatro instrumentos e Sinfonia quando a sonata é para orquestra.

A maioria das sinfonias e dos quartetos e uma quantidade de sonatas apresentam quatro movimentos que diferem um do outro tanto pelo andamento como pelo caráter e estão quase sempre ordenados da mesma maneira.

Concerto: sua concepção remonta à Renascença, com compositores que escreveram peças para dois grupos oponentes de instrumentos (a palavra concerto pode tanto provir do conceito italiano de “consonância” como do latim significando “disputa”). O concerto grosso barroco (um pequeno grupo de solistas – concertino – opostos a uma orquestra de cordas desenvolveu-se no concerto para solo.

Música de Câmara: escrita para um pequeno conjunto de instrumentos solistas com partituras independentes e destinadas a pequenos recintos (câmara = quarto).

Ópera: é um drama musicado onde os papéis estão destinados a cantores que representam e cantam acompanhados por uma orquestra, com a participação, muitas vezes, de um coro. Árias são peças escritas para solistas e, em geral, empregadas para descrever pensamentos e emoções suscitadas nas personagens. Já nos recitativos (secco acompanhado pelo cravo e quanto mais um violoncelo ou stromentato com acompanhamento orquestral) as palavras são pronunciadas mecanicamente e usados para apressar o relato da história.

Oratório: composição musical baseada em textos religiosos, escrita para vozes solistas, coro e orquestra. Parecida com o oratório, mas em escala menor, é a cantata.

Moteto: pequeno coral de caráter sacro, com letra em latim, quase sempre em estilo contrapontístico (arte de sobrepor uma melodia a outra – polifonia) e executado a capella (sem acompanhamento instrumental). Anthem (hino): peça coral de caráter sacro, cantada durante ofícios da Igreja Protestante. Diferente do moteto por ter sua letra em inglês.

Missa: ofício mais solene da Igreja Católica, as palavras são em latim e, habitualmente, expressas na forma cantochão (monódico e diatônico). Baseia-se nas cinco partes do Ordinário da Missa: Kyrie (Deus, tende piedade de nós, Cristo, tende piedade de nós), Gloria (Glória a Deus nas alturas), Credo (Creio em Deus), Sanctus-Hosanna-Benedictus (Abençoado aquele que vem em nome de Deus), e Agnus Dei (Cordeiro de Deus, vós que tirais os pecados do mundo).

Madrigal: peça curta, de caráter profano, em estilo contrapontístico, na qual se faz amplo uso da imitação. Composto em geral para quatro a seis vozes que dispensam acompanhamento.

Lied: palavra alemã para canção, usada para designar sobretudo as canções com acompanhamento de piano dos compositores românticos alemães do século XIX (como Schubert, Wolf, Brahms e Schumann).

Música Descritiva ou Programática: é a que conta uma história suscitando imagens na mente do ouvinte. Floresce principalmente no Romantismo com obras orquestrais como a sinfonia descritiva (buscavam inspiração na literatura ou pintura), a abertura de concerto (não a utilizada na abertura de óperas, mas tocadas em concertos – um só movimento), e o poema sinfônico (elaboração de Liszt, também de um só movimento, mas mais longa e livre que a abertura de concerto).

 

Todo compositor começa com um tema (ideia) musical, que pode vir como uma melodia, apoiada ou não numa acompanhamento, ou como uma ideia rítmica. Há quatro tipos de compositor em sua forma peculiar de conceber música: (a) o de inspiração espontânea quando a música parece jorrar mais rápido do que a capacidade de anotá-la (e.g. Franz Schubert), (b) o tipo construtivo que parte de uma ideia germinal (tema) e constrói em cima disto uma obra completa (e.g. Beethoven), (c) o tipo tradicionalista que trabalha sobre o estilo de música próprio de seu tempo, buscando superar o que já se fizera antes (e.g. Bach), e (d) o tipo pioneiro que encara a composição às avessas do tipo tradicionalista (e.g. Debussy).


 

A música começa com o compositor, passa pelo intérprete e termina com o ouvinte. O estilo de um compositor é consequência da interação da sua personalidade e sua época. O intérprete é o intermediário da música – o ouvinte ouve menos o compositor que a concepção que o intérprete faz deste compositor. O intérprete deveria apenas servir ao compositor, mas isto nem sempre acontece. Por mais que existam as notações musicais, é impossível refletir na partitura tudo aquilo que o compositor pensava sobre aquela peça musical – assim uma composição não é uma obra estática, sendo sempre reinventada a cada interpretação. Quanto ao ouvinte, este deve ouvir atentamente, conscientemente e com toda a sua inteligência, sendo o mínimo que pode fazer pelo futuro de uma arte que uma das glórias da humanidade.

 

Notas

  • Aaron Copland (1900-1990) nasceu no Brooklyn, NY, USA.

  • Compositor, destacou-se com a caracterização de temas americanos.

  • Como Ouvir e Entender Música foi publicado em 1939.

  • O som é causado por algo que vibra, sendo as vibrações levadas através do ar espalhando-se em todas as direções. Atingindo a membrana do tímpano a faz também vibrar transformadas em impulsos nervosos levados ao cérebro que os identifica como diferentes sons. Uma nota musical apresenta ondas vibratórias regulares e constantes, diferentemente das vibrações caóticas de um barulho – muitos instrumentos de percussão produzem vibrações irregulares (barulho) e tem papel importante na música.

  • Em cada nota ouvida, numa sequência de sons, o cérebro identifica três características principais: (a) altura (agudos e graves, ou altos e baixos), (b) volume ou intensidade (sons forte ou fracos – 1dB (um decibel) é o limiar do audível e 120dB o limiar da dor), e (c) timbre (coloração do som).

  • Diapasão é a extensão da altura da voz ou instrumento musical. Os sons mais graves vibram entre 16-20 vezes por segundo, e os mais agudos chegam a 20k vibrações por segundo – fora deste limites o ouvido humano não alcança escutar.

  • Escala (do latim scala, ou escada) é uma série de sons conjuntos que se sucedem em direção ascendente ou descendente (o menor intervalo entre dois destes sons é conhecido como semitom). A estrutura harmônica definida deve ser seguida ao longo de toda partitura (“tom de”, e.g. sol maior ou dó menor).

  • A palavra grega mousike designa o conjunto de artes inspiradas pelas musas: a poesia, a música e a dança – depois, mais particularmente, aplicada à arte dos sons.

  • O caso do canto gregoriano, em que o ritmo não é cadenciado, tem de ser considerado à parte: suas linhas melódicas se desenvolvem por sucessões de arsis (impulsos) e de tesis (descansos), em função do sentido do texto e do acento da palavra em latim. Esse ritmo particular, que nenhum metrônomo pode medir, é a imagem da oração, “a elevação da alma a Deus” seguida de seu descanso em Deus. "Não há mais que um problema, só um: voltar a dar aos homens um significado espiritual, fazer chover sobre eles algo parecido ao canto gregoriano. Não há mais que um só problema: redescobrir que há uma vida ainda mais elevada do que a da inteligência, e ela é a única que satisfaz o homem.” – Saint-Exupéry.

  • A música moderna favorece o ritmo em detrimento da harmonia e da melodia, invertendo a ordem natural que auxilia o homem na busca do belo, bom e verdadeiro. Esta inversão dos elementos musicais não é uma simples ideia original, faz parte do ideal revolucionário. O efeito de tal inversão é substituir a tranquilidade da ordem pelo caos, a paz pela insatisfação, a vida pela morte: “O que nos interessa é a revolução e a desordem” – Jim Morrison, do grupo The Doors.

  • Platão demonstra na República que é fácil deformar a alma de um povo e destruir um Estado por meio da música, “pois é aí que a ilegalidade se insinua mais facilmente, sem ser percebida... sob forma de recreação, … a primeira vista inofensiva”. Daí a tese de Platão de que “toda inovação musical é prenhe de perigos para a cidade inteira” e que não se pode alterar os modos musicais sem alterar ao mesmo tempo as leis fundamentais do Estado. A música, pois, atuando lenta e imperceptivelmente nas tendências mais profundas das almas pode provocar verdadeiras revoluções. Essa tese é facilmente comprovada na História. As três grandes Revoluções – Renascimento e Reforma, Revolução Francesa e Revolução Comunista – bem como a revolução hippie, foram precedidas por grandes transformações artísticas, que influíram poderosamente nas tendências, e prepararam as próprias explosões revolucionárias.

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