“ Calamitas virtutis occasio est.” (“O desastre é uma oportunidade para a virtude.”) – Sêneca
Todas as coisas devem começar com Deus. Deus existe? Sim, diz Sêneca. Deus existe e a prova de sua existência é a própria natureza. A revolução das estrelas, o surgimento das estações, a própria maré que sobe e desce, estes são testemunhos duradouros da perfeição de Deus. Não são acidentes aleatórios. São a prova de que Deus existe e que Deus é bom. Até mesmo os terremotos e as erupções vulcânicas, que podem parecer malignos, têm seu propósito na mente de Deus. Então Deus é só bondade.Ele é onisciente.
E Deus revelou à raça humana a razão e a perfeição da sua criação e as leis que se aplicam a ela. E estas leis, estas leis da natureza ou lei natural, estabeleceram também para toda a raça humana um código de comportamento. É uma crença no certo e no errado absoluto, de que algumas coisas estão certas em todos os lugares e em todos os tempos e algumas coisas estão erradas em todos os lugares e em todos os tempos.
E que Deus criou o universo para testemunhar esta lei natural. Agora, se Deus é bom, perguntou Sêneca, como pode acontecer o mal? Por que o mal existe? Sêneca diz, primeiro, erramos ao classificar algo como mau. Se você é realmente uma boa pessoa, e é testado pelo mal, por uma doença que você não consegue explicar, pela perda de um ente querido, pela perda de um emprego. Primeiro, Sêneca diz que é porque Deus está testando você. Um bom pai, acredita Sêneca, nunca seria indulgente com os filhos e, quanto mais amar um filho, mais severo ele será. Então Deus colocou essa adversidade sobre você, sabendo que você deveria ser forte o suficiente para suportá-la e superar isso.
E em segundo lugar, pessoas más, eventos malignos nunca poderão prejudicá-lo. Eles podem matá-lo, mas o mal nunca poderá prejudicar a pessoa verdadeiramente boa. Como pode ser isso? Pense em Sócrates. A frase remonta a ele em seu leito de morte: “Meus acusadores, Ânito e Méleto, que me acusaram e me condenaram por traição podem me matar. Eles podem me forçar a cometer suicídio, mas nunca poderão me prejudicar. A única maneira pela qual eles poderiam me prejudicar é obrigando-me a cometer uma ação errada. Em outras palavras, me fazer odiá-los pelo que fizeram comigo. Apenas tenho controle sobre minha mente, os pensamentos que tomo com essa mente e as ações que realizo com base nesses pensamentos. E a minha mente, mesmo que eu esteja condenado à morte, é livre. E os pensamentos que tenho com essa mente nunca poderão ser controlados por meus algozes. E, em última análise, as ações que tomo, seja para odiá-los ou não, pertencem apenas a mim. E enquanto eu disser que nunca retribuirei o mal com o mal, mas apenas com o bem, então não fui conquistado por eles.”
Sêneca também apresenta um exemplo romano: Marco Pórcio Catão ou Catão, o Velho (234 – 149 a.C.). Quando Júlio César conquistou suas grandes vitórias, quase todos os romanos que se opuseram a ele passaram para o lado de César. Diziam aceitaram o governo do ditador pelo bem maior de Roma. Aceitaram a clemência do ditador César. Apenas Marco Pórcio Catão recusou.
César ofereceu-lhe dinheiro. César ofereceu-lhe poder no novo governo. E Catão viu o seu exército ser derrotado, a terra controlada por César, o mar controlado por César, até a pequena cidade de Útica, no Norte de África, onde Catão se refugiara, até os seus portões eram controlados por César. Catão sabia que lhe restava uma opção e essa é a opção que sempre resta a um homem bom no pensamento estoico: o suicídio. Sócrates ensinou que o suicídio era errado, que Deus lhe deu a vida e que você não deveria tirá-la, mas essa não era a visão estoica. Para os estoicos, quando a vida se torna insuportável, você acaba com ela.E a morte era muito melhor do que a subjugação a uma tirania. Tão grande que Cato se esfaqueou. E quando a facada não funcionou, ele arrancou os próprios intestinos. E Catão morreu. E enquanto o mundo pertencia a César, Catão pertencia a Deus, Quem foi mais nobre?
Nada realmente ruim pode acontecer ao homem bom (sábio), pois os opostos não podem se misturar. O que parece adversidade é, na verdade, um meio pelo qual o homem exerce suas virtudes. Como tal, ele pode sair da provação mais forte do que antes. Mau para o sábio seria ter maus pensamentos, cometer crimes, desejar dinheiro ou fama – o sábio já tem todo o bem possível, o restante é indiferente.
O homem verdadeiramente bom (sábio) nunca poderá se render diante dos infortúnios, mas sempre os superará e mesmo que caia, continuará lutando de joelhos. O homem sábio entende o destino e seu desígnio e, portanto, não tem nada a temer do futuro. Ele também não espera nada, porque já tem tudo o que precisa: sua conduta virtuosa – os únicos bens verdadeiros são os interiores, permanentes, e invulneráveis frente ao destino (Fortuna).
Notas
Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C. - 65) nasceu me Córdoba, então integrante do Império Romano.
Filósofo estoico, dramaturgo (suas tragédias inspiraram Shakespeare), e político romano.
Já idoso, rico, em seu exílio autoimposto, Sêneca escreveu uma série de diálogos filosóficos nos quais regressou ao caminho (estoico) que outrora sabia que deveria seguir e que havia deixado de lado pelo poder. Sobre a Providência Divina, um ensaio em forma de diálogo em seis breves seções, foi escrito nos últimos anos de sua vida. O título completo da obra é “Quare bonis viris multa mala accidant, cum sit providentia” (“Por que infortúnios atingem os homens de bem, mesmo existindo a providência?”). Este título mais longo reflete o verdadeiro tema do ensaio, que não se preocupa tanto com a providência, mas com a teodiceia.
A Providência designa a ação no mundo de uma vontade externa (não humana, transcendente), levando os eventos a um fim. Referida como providência divina é um termo teológico que se refere a um poder supremo, superintendência, ou agência de Deus ou alguma divindade sobre eventos. Durante a Antiguidade, os debates filosóficos opuseram os epicuristas, segundo os quais a origem e a evolução do universo são precisamente apenas uma questão de acaso, e os estoicos neoplatonistas, para os quais – pelo contrário –elas resultam da vontade de um Criador ou mesmo da ação da natureza/universo (Logos para os estoicos).
Teodiceia é um termo derivado do título da obra Ensaio de Teodiceia do filósofo alemão Leibniz, que justifica a existência de Deus a partir da discussão do problema da existência do mal e de sua relação com a bondade de Deus.
As imperfeições do mundo, incluindo o mal, são um ato de bondade de Deus, pois se este mundo em que vivemos fosse perfeito ele seria Deus e deixaria de existir.
O pensamento de Sêneca opõe-se a moderna ética situacional que relativiza as decisões morais ao contexto em que são tomadas.
Um grande livro aborda um grande tema (aborda questões que refletem em como devemos viver e nos ajudam a tomar decisões morais), é escrito em linguagem nobre (que elevam nossa alma) e fala através dos tempos (lições do passado que perduram ao longo dos tempos) – informação e conhecimento que nos tornam mais sábios. Acima de tudo, um grande livro fala a cada um de nós como indivíduo (lições de vida que incorporamos e aplicamos em nossa vida).