top of page

Político de Platão


Sempre que a opinião realmente verdadeira sobre o belo, o justo e o bom, e seus contrários, se forma na alma e é bem fundamentada, digo tratar-se de algo divino que nasce numa alma demoníaca.” – Hóspede de Eléia sobre o necessário para recuperação da ordem (309c)

Personagens Sócrates – filósofo Hóspede de Eléia – adepto de Parmênides e Zelão, comportamento socrático Sócrates, o moço – jovem matemático, aluno da Academia Teodoro – velho geômetra

O próprio Platão declarou o estado apresentado na República como realizável somente na dimensão espiritual, um modelo ideal (instrumento de estudos) e impraticável historicamente – a autoridade do espírito (autoridade do brâmane, filósofo) é uma autoridade apenas se aceita em liberdade (a tirania da classe inferior não pode ser transformada em liberdade contrapondo-se a ela uma tirania do espírito).

Platão não voltará a mencionar o rei-filósofo, e empreende uma aproximação de seus conceitos à realidade histórica no diálogo Político. Anteriormente, em Fedro (escrito não mais que um ano após a República), Platão já separara o filósofo do rei, e priorizara a alma humana ao invés da pólis, apresentando o estado de desintegração de Atenas como irreparável. Mas a resistência da pólis à regeneração por meio da Ideia não invalida a Ideia, e tampouco a posição do filósofo cuja alma é ordenada pela Ideia. O filósofo agora retorna da caverna destituído de esperança ou intenção de reforma, um retorno “apenas de corpo”, pois sua alma não mais faz parte da pólis histórica.

Estecarácter aparentemente estático da coexistência entre a realidade da Ideia e a realidade não ordenada pela Ideia é rompido no Político pela redução do conflito a um momento transitório na história cíclica do cosmo:


Mito dos Ciclos Cósmicos Em dado momento, o Cosmos é conduzido em sua trajetória pelo próprio Deus até o término dos períodos de seu tempo medido, quando ele é libertado do controle divino (afastamento de Deus – descanso no sétimo dia, castração de Urano) e segue girando por si mesmo em direção oposta – análogo a diástole e sístole no coração humano. Tal alternância é inevitável, pois só o divino é imutável, enquanto o Cosmo, de natureza corpórea, submete-se à lei da mudança (geração e corrupção) – e isto também se aplica ao domínio do homem na sociedade.

Quando o Demiurgo afasta-se, o Cosmo tenta manter o curso conforme a direção divina indicada, mas seu componente material advindo do caos anterior à intervenção divina gradualmente provoca a degeneração. No princípio do período presente, o homem, privado dos cuidados dos espíritos, tornou-se fraco e indefeso, e, por necessidade, aprende a cuidar de si – esta a origem de Prometeu, Hefesto e outros benfeitores míticos da humanidade (símbolos das invenções e conquistas civilizacionais). Mas com o passar do tempo, cresce o esquecimento do Cosmo, a doença primordial da desordem ganha controle e, finalmente, emerge abertamente – o perigo da completa destruição aproxima-se.


O Deus platônico não é onipotente, fazendo-lhe oposição a força primordial da matéria caótica; e, mesmo quando a ordem é imposta à matéria, ainda permanece-lhe o Desejo Inato que, se seguir sua própria tendência, produzirá a reversão ao caos – o aumento do desejo caracteriza a velhice de uma civilização. Mas há uma divindade mais elevada, num terceiro nível hierárquico, que controla o ritmo da ordem e desordem do tempo: Heimarmene (Destino) é a ordem do tempo determinando o ritmo de maneira a não perpetuar a ordem divina, mas também não permitir que as forças do caos cheguem a contento, recuperando a juventude da ordem do cosmo. Esta trindade – Deus, Desejo Inato e Heimarmene – marca os limites além dos quais está o mistério da iniquidade.


Platão não está desejando o retorno de uma Idade do Ouro, porque o paraíso implica a renúncia à consciência filosófica – a dor da consciência é preferível a benção da inconsciência. O filósofo que adquiriu a plena estatura espiritual descarta esta velha mitologia – o idílio de felicidade sem problemas não é adequado ao homem. A rejeitada Era de Cronos e a aceita Era de Zeus simbolizam estágios na evolução da consciência do mito do povo e dos poetas para o nível do filósofo, ambas são símbolos da evolução anímica. As forças caótica devem ser combatidas e a ordem restaurada por meio do instrumento de um governo régio – uma nova irrupção de ordem divina.O ciclo de declínio não se reverte automaticamente, ele precisa ser revertido pelo homem que é veículo da Ideia. Esta evocação platônica encontra sua realização plena na crescente ordenação espiritual de um mundo em desordem, por meio da figura de Alexandre, da monarquia soteriológica (doutrina da salvação da humanidade) do período helenístico, da ordem imperial romana, e de Cristo.

Tipo de Governo

Os governos podem ser divididos nos (a) de um só, (b) de poucos ou (c) de muitos; e estes podem ainda ser cindidos de acordo com a obediência ou desobediência dos governantes à verdadeira lei e aos costumes, resultado na seguinte divisão:


Tipos de Governo (Sob o ponto de vista de obediência às leis)


A qualidade de um governo diz mais respeito a sua aderência às leis que sua forma institucional. Os tipos com lei e tirânicos são uma sequência histórica – a realidade da política move-se da ordem da lei para a desordem da tirania. Estes tipos de governos são todos decadentes, pois o “pastor de rebanhos” (primeira caracterização do político) correspondente ao espírito divino era da Era de Cronos, e na fase atual todos os homens são rivais pela posição de governante – os políticos atuais assemelham-se ao seu rebanho em hábitos e criação.


O tema do Político é a luta do governante régio (aquele que detêm a ciência régia) com uma sociedade turbulenta. O princípio orientador do governante é o bem da pólis, e suas ações estão de acordo com a justiça e sabedoria, independentemente da forma institucional e da aderência às leis.

Por princípio, não há mérito na lei como uma ordem de ação humana – a lei é uma ordem geral, enquanto a ação humana é pessoal e concreta. Tal discrepância torna impossível que se aplique uma mesma lei para todos os casos individuais, uma regra simples não pode cobrir o que é o inverso de simples – daí um governo legalista ter sempre um carácter tirânico. O melhor é que o homem governe, e não a lei, desde que o homem seja dotado de sabedoria régia. Ainda assim, as leis são instrumento indispensável da ordem social e devem ser definidas com sabedoria e base nos costumes, sem perder seu carácter de expedientes.

O Estado de Direito constituído nos tipos de governo acima deve ser questionado como fonte da desordem reinante e um obstáculo para a recuperação da ordem – Platão entendia que a seriedade da situação demandaria um governo de homens extra-constitucional. Mas dada a impraticabilidade do governo régio sem leis e a indesejabilidade da tirania, devesse condescender a um governo por meio das leis escritas que mais se aproximem da tradição formadora da pólis – combater a tendência degenerativa das leis. Este arranjo é ainda infeliz, pois, como visto acima, a lei por si só (sem o governo régio que a escreva e circunstancie) tende a injustiça (parábola do médico e do navegador 298a-299e).

Até este ponto, o diálogo apenas removeu as matérias estranhas sobre a ciência política, como no processo de refinação do ouro onde os trabalhadores retiram a terra e as pedras. Ainda seguindo o símile da refinação do ouro, Platão agora empreende a separação pelo fogo dos demais materiais preciosos assemelhados ao ouro, ou seja, as artes (a) do generalato, (b) da administração da justiça e (c) da retórica – todas necessárias para a arte régia, mas sem autonomia para sê-la.

A arte da guerra se preocupa em fazer e vencer a guerra, e não em decidir se é ou não conveniente fazer a guerra de preferência a manter a paz, decisão pertencente ao campo da política. Analogamente, a atividade dos juízes é diversa da política e a ela subordinada, porque, se limita a aplicar a lei, enquanto a atividade do político estabelece a lei. Também a retórica se distingue da política porque, enquanto a primeira é atividade de persuasão, a segunda é atividade que decide se é ou não conveniente persuadir (ou usar a força) e por isso é não só diversa, mas superior.

O político que queira restaurar a ordem a partir da multidão desintegrada terá que eliminar (pela morte ou exílio) todos que não possuírem coragem e temperança, ou outras inclinações à virtude (areté), bem como os de natureza má, levados pela impiedade, orgulho (húbris) ou injustiça. O carácter violento de tal medida assume proporções escatológicas tipificadas nos mitos do dilúvio – início de um novo ciclo civilizacional ou humano.

Somente a partir desta depuração a arte régia, análoga a arte da tecelagem, pode começar a tecer a malha política. O político terá que ligar com os fios da unidade os dois elementos humanos: o eterno (aiegenes) e o biológico (zoogenes). O primeiro, de natureza divina, será ligado com o fio divino da verdade (a verdadeira noção do belo, do justo, do bom e de seus opostos) – neste processo, empreendido através da educação, o homem corajoso tornar-se-á temperado, de forma a não cair na brutalidade, e o homem temperado ganhará força e sabedoria para não cair na estupidez. E o segundo elemento se ligará mediante o casamento apropriado, combinando-se os dois tipos e evitando a divisão dos cidadãos em duas castas. Assim, a arte régia consiste em tecer os caracteres em uma ordem que receba a unidade por meio das noções comuns de verdade, bondade e justiça, formando uma comunidade de harmonia e amizade.

Este renascimento platônico da comunidade não é a salvação da humanidade, mas um retorno à juventude do cosmo que será seguindo, de acordo com a lei inescrutável de Heimarmene, por um novo declínio.

Métrica Axiológica A vida humana depende de uma complexa avaliação dos prazeres e de cálculos de excesso e de falta e igualdades recíprocas que lhe dizem respeito – daí a necessidade de uma arte (ciência) da medida moral. Tal arte seria a mensuração do mais e do menos com relação ao justo meio, segundo a medida necessária para a geração das coisas e segundo o que faz com que exista o bom e o mau (métrica ontológico-axiológica em complemento a métrica matemática). É o conveniente, oportuno, devido e tudo o que implica o meio entre os extremos.

Sobre a métrica axiológica fundam-se todas as artes e as suas produções (inclusive, obviamente, a arte política), que, conformando-se à justa medida, produzem coisas belas e boas, e fogem do excesso ou da falta com relação ao justo meio. Platão emprega aqui uma revolução do modo de pensar pitagórico limitado a métrica matemática, revolução análoga à alcançada no Sofista referente ao pensamento eleata.

A justa medida, o meio entre os extremos do muito e do muito pouco, consiste-se numa delimitação exercida pela unidade-na-multiplicidade – o Uno entendido como “medida exatíssima”, a base do iceberg do qual o discurso da justa medida no Político é a ponta emergente.

É a capacidade de produzir a unidade-na-multiplicidade que permite ao político realizar o grande tecido da sociedade, misturando os extremos, e unindo-os com vínculos, em relação à justa medida, e, portanto, justamente em função da “medida perfeitíssima” encontrada no Mundo das Ideais.

 

Notas

  • Platão (427-348 a.C.) nasceu em Atenas ou na próxima Egina.

  • Filho de Ariston, descendente do rei Codro, Perictíone e de um irmão de Sólon do lado materno. Ainda na juventude, recebe o apelido de Platão (“largo”) por razões incertas, mas provavelmente ligadas ao seu tipo físico. Seu nome era Arístocles.

  • Aos 19 anos torna-se discípulo de Sócrates. Sua obra escrita nos chegou aparentemente completa (26 diálogos são considerados legítimos).

  • Segundo o matemático e filósofo Alfred North Whitehead (1861-1947), “A mais segura caracterização da tradição filosófica europeia é que esta se constitui de uma série de notas de rodapé a Platão.”

  • Os subtítulo dos diálogos, e.g. Fedro, sobre o Belo, foram dados por Trasilo no século I, na Biblioteca de Alexandria que então comandava.

  • Político, da realeza, é diálogo legítimo (gênero lógico), provavelmente do período da maturidade, fase da segunda florescência filosófica de Platão.

  • No diálogo é empregada a mesma metodologia da divisão (diaeresis), quebra do genérico ao específico, já vista no Sofista.

  • O diálogo faz parte da investigação sobre a diferença entre o sofista, o político e o filósofo. Porém o prometido diálogo sobre o filósofo nunca foi escrito. Especula-se que com a oposição ao sofista e a busca da arte régia, o filósofo já tenha sido claramente apresentado como aquele que possui a perfeição da ciência dialética, a ciência mais elevada, que permite alcançar a verdade. E como tal ciência não pode ser aprendida adequadamente através do escrito, seu desenvolvimento adicional faria parte da agrapha dogmata.

  • A terceira casta (xátrias) é covarde, teme a guerra que destrói a propriedade. Empresário afeta coragem apenas no jogo de empresas, na verdade morre de medo de errar.

  • Sonho: lembranças do dia, imagens do desejo e/ou impressões do mundo sutil.

  • Sempre teve gente errada no mundo, a diferença é que hoje ele são a elite (ver Dr. Mabuse ou O Alienista) e no passado eram colocados no hospício ou à margem da sociedade.

  • Pirata é diferente de corsário. O corsário é pago pelo rei para roubar para a coroa. O MST e similares são os corsários do governo esquerdista.

  • Suplício de Tântalos: sempre perto do seu desejo mas sem nunca alcançá-lo.

  • O juízo final pode ser o esgotamento de uma humanidade (isso pode acontecer ao longo de um bom tempo).

  • Estadista (definição): produz a boa relação entre as castas, entre os diferentes segmentos da sociedade de forma sinergética.

  • Só conhecemos algo por comparação com as formas, este é o aspecto deste diálogo que o liga com os demais da tetralogia que versa sobre a teoria do conhecimento. Conhecimento é lembrar as formas, é lembrar aquilo que você já sabe.

Comments

Couldn’t Load Comments
It looks like there was a technical problem. Try reconnecting or refreshing the page.
bottom of page