top of page

Luis Buñuel (1900-1983)

  • Foto do escritor: Cultura Animi
    Cultura Animi
  • 18 de abr.
  • 9 min de leitura

Fortunately, somewhere between chance and mystery lies imagination, the only thing that protects our freedom, despite the fact that people keep trying to reduce it or kill it off altogether. – Luis Buñuel (buscou na imaginação aquilo que deveria encontrar na alma)



Nascido em uma família abastada, Luis Buñuel, mesmo já cinquentenário, sempre recorria a mamãe quando precisava de dinheiro, mas isto não o impediu de ser um comunista de carteirinha. Talvez embriagado de sua própria hipocrisia, Buñuel dedicou sua obra a apontar a hipocrisia que via nos outros.


A puerilidade política de Buñuel encontrou seu análogo artístico no então nascente Surrealismo que defendia o puro automatismo psíquico e o ditado do pensamento – livre de qualquer controle da razão, isento de qualquer preocupação estética ou moral – alistando-se ao movimento logo em seu primeiro trabalho. Desde seu nascedouro o Surrealismo foi extremamente alinhado ao comunismo, sendo a maioria de seus membros filiados a partidos comunistas – a Escola de Frankfurt, uma das pontas de lança do comunismo cultural, apoiou fortemente o movimento surrealista.


Buñuel sempre se manteve fiel aos princípios surrealistas primários com os quais mais se identificou: um espírito de revolta, o poder subversivo do amor erótico, uma crença na criatividade do inconsciente (sonhos e fantasias), um gosto pronunciado pelo humor negro, e um desprezo permanente pela religião e a moralidade. Em suma, o trabalho de Buñuel, longe de ser apenas um entretenimento, abordou questões que tinham a ver com como levar uma vida libertina diante das pressões que, em sua opinião, procuram negar a vida.


Com o tempo, Buñuel foi arrefecendo sua ira de adolescente tardio, seus filmes foram adotando uma abordagem menos polêmica, menos politizada (algo dissimulada), e mais relacionada às amplas questões humanas do que a da mera dita burguesia.


A carreira artística de Buñuel desenvolveu-se principalmente ao longo de três períodos bem demarcados: o início surrealista na França (1928-30), as produções mexicanas (1947-62), e as produções francesas (1967-1977).


Seguem comentários sobre os filmes mais marcantes destes períodos:


Un Chien Andalou (1928): Luis Buñuel e Salvador Dalí apresentam 16 minutos de imagens bizarras e surreais. Aclamado com o primeiro experimento surrealista no cinema, apesar de The Seashell and the Clergyman da francesa Germaine Dulac (1882-1942) ter sido lançado alguns meses antes. Não há uma narrativa coesa, e isto é proposital dentro da proposta do movimento surrealista, tudo desconexo como um sonho bizarro – as tentativas de buscar algum sentido nas imagens foram ridicularizadas pelos realizadores desta curta-metragem. Não há nenhum conteúdo no filme, mas esteticamente Un Chien Andalou contribuiu para expandir o potencial sintático do cinema. Buñuel e Dali ficaram frustrados com a indiferença do público com relação ao filme, pois esperavam chocar e provocar reações violentas.


L'Âge d'Or (1930): Conto surrealista de um casal lascivo e suas frustradas tentativas de consumar o coito sustadas por suas famílias, a igreja e a sociedade dita burguesa. Buñuel foi a forra depois da frustração com a morna reação do público a Un Chien Andalu, e fez um filme grosseiro, ruim e que em nada contribuiu para a gramática cinematográfica. Seu “sucesso” foi ter sido banido por cinco décadas. O filme não tem capacidade para ameaçar os costumes, sendo apenas um atentado à inteligência e ao bom gosto. Um exemplo de como a ideologia é incompatível com a arte.


Los Olvidados (1950): Grupo de delinquentes juvenis vive uma vida violenta e cheia de crimes nas favelas da Cidade do México, enquanto a moral do jovem Pedro é gradualmente corrompida e destruída pelos demais. O filme poderia ter o mérito de alertar para o problema da crescente delinquência juvenil nos centros urbanos, porém erra em querer apontar a pobreza como origem do problema. Mas involuntariamente Buñuel deixa entrever que a fonte deste mal é a desestruturação da família e a consequente ausência do amor materno e da ordem paterna. Curiosamente a locução do filme apela às “forças progressistas” por uma solução, sendo o progressismo um dos inimigos da estrutura familiar. Também é digno de nota o fato do filme ter sido rechaçado na União Soviética por não seguir a cartilha do Cominforn (Information Bureau of the Communist and Workers’ Parties) ao apresentar o juiz de menores e o diretor da escola fazenda de forma positiva, fugindo da exigida dicotomia do herói negativo e do herói positivo. Um filme deprimente.


El (1953): O exterior suave de um aristocrata esconde um temperamento volátil e paranoico que gradualmente se revela depois de se casar com uma bela mulher. Inspirado no romance homônimo de Mercedes Pinto (1883-1976). Trata-se do retrato de um paranoico – o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981) passava o filme aos seus alunos como exemplo do comportamento paranoico. A personalidade de Buñuel é evidenciada no explícito anticatolicismo do filme. O paranoico é retratado como profundamente religioso, associando sua loucura a suposta repressão da moral católica.


The Criminal Life of Archibaldo de la Cruz (1955): A delirante jornada de um homem perturbado mentalmente obcecado em cometer o crime perfeito. Adaptação livre do romance Ensayo de un crime (1955) do escrito mexicano Rodolfo Usigli. Comédia de humor negro realizada com orçamento limitadíssimo. A história é um tanto tola e recheada dos fetiches de Buñuel. Mas o verdadeiro interesse do filme não está na narrativa, mas na ingenuidade de sua construção, no manuseio do tempo, e na experiência da narrativa cinematográfica. Em sua crítica ao filme, Stanley Kauffmann foi certeiro, reconhece os recursos técnicos de Buñuel, mas não deixa de notar a puerilidade de sua ideologia: “He is a master technician with the outlook of a collegiate idealist who has just discovered venality and lust... Buñuel, the swami of sadism, has now reached the point of self-parody... Buñuel remains, for me, a highly resourceful technician and a highly neurotic adolescent.


Nazarín (1958): Padre de uma comunidade pobre vive uma vida de caridade de acordo com seus princípios religiosos, mas muitos não retribuem suas ações. Buñuel visou criticar a caridade, pois a considerava humilhante aos pobres, sendo um mero veículo para satisfazer a consciência do caridoso. Ele também desconfiava da bondade natural do ser humano, já que, em sua opinião, aqueles que são objeto de um gesto de caridade costumam ser ingratos com o caritativo. Porém o tiro saiu pela culatra e o filme apresenta o real sentido da caridade cristã, transformando a narrativa em uma descrição ideal do comportamento que um padre deve apresentar: generosidade extrema, pobreza, entrega constante a outras pessoas e assim por diante – "Vende tudo o que você tem e o distribui aos pobres (e você terá um tesouro nos céus); Então venha e siga-me." (Lc. 18, 22). O padre Nazarín também apresenta o sentimento humano de desconforto quando sua caridade não é recompensada. Mas o fim último da caridade é agradar a Deus, e o homem não deve buscar uma compensação por exercitar o bem. No entanto, e como somos humanos, muitas vezes não entendemos dessa maneira o ato de caridade, e, quando o bem não é recompensado, reagimos com perplexidade e, às vezes, até desespero.


Viridiana (1961): Viridiana, uma jovem freira prestes a fazer seus votos finais, faz uma visita a seu tio viúvo a pedido da Madre Superiora. A infame arremedação da Última Ceia e o fato da protagonista ser uma noviça deu ao filme a fama de ser anticlerical, mas a verdade é que o filme é anti-humanidade. Buñuel está dizendo que nossos piores instintos estão sempre prontos para atacar: é a tara do tio, a libertinagem do primo, a animalidade dos mendigos, a falta de pudor da empregada, a falta de educação da filha desta, e, finalmente a perversão final da protagonista. Atos de bondade são como lutar contra moinhos de vento (enquanto o primo salva um cão, outro padece simultaneamente sem ser salvo), e as virtudes são tolices – Buñuel seguia deturpando a caridade. Ao final Viridiana adota esta doentia visão de mundo, e sucumbe ao ménage à trois do primo. O argumento da narrativa é descartável (as motivações para as ações das personagens são insuficientes), mas o diretor mostrava que conhecia seu ofício e tinha prazer em exercitá-lo na busca constante do enquadramento significativo, em agrega valor aos objetos com enfoques da câmera que dão uma singular magia às imagens. O cinéma d'auteur estava de moda, e Viridiana encaixava-se perfeitamente no conceito – conexão da obra com a temática do cineasta desenvolvida num estilo inovador e singular. Os críticos adoraram e o filme catapultou a carreira de Buñuel. A paródia da Última Ceia é gratuita e de puro mau gosto, feita apenas para chocar a audiência e gerar publicidade para o filme – nada como um escândalo e uma censura para promover uma obra artística. Curiosamente, seis décadas depois, a mesma grosseria de adolescente boçal com a Última Ceia foi replicada na torpe abertura dos Jogos Olímpicos de Paris – a revolta ególatra não leva a lugar algum. Cannes deu a Palme d’Or ao filme, o desastre parisiense de Maio de 1968 já estava no forno.


The Exterminating Angel (1962): Os convidados de um jantar de classe alta se veem incapazes de ir embora. Poderia ser uma comédia macabra, uma visão ácida da natureza humana que abrigaria instintos selvagens e segredos indescritíveis – um grupo de convidados prósperos para o jantar retidos por tempo suficiente se voltam contra si como ratos em um estudo de superpopulação. Mas o mimado Buñuel quis fazer uma parábola de uma suposta paralisia e destruição intestina da “burguesia”, através da perda da energia e autoconfiança essenciais para a manutenção do poder. A situação deteriorada tiraria da classe dominante o verniz da convenção, e sem suas defesas sociais e psicológicas, seus piores impulsos emergiriam – incapaz de mudar, ela estaria malfadada ao extermínio. Buñuel abandonava a estratégia de “chocar a burguesia”, preferindo uma abordagem mais serena, sardônica, sinistra, e espirituosa para estilar sua ideologia. A narrativa tem algo do existencialismo de No Exit (1944) de Sartre. E curiosamente o filme foi considerado subversivo e banido na União Soviética: a noção de que as pessoas não pudessem “deixar um partido” (“leave a party”) foi considerada provocativa e antigovernamental.


Belle de Jour (1967): Jovem esposa frígida (interpretada por Catherine Deneuve) decide passar as tardes do meio da semana como prostituta. Inspirado no romance homônimo de Joseph Kessel publicado em 1928.A narrativa é bem direta: a protagonista (Séverine) é abusada sexualmente quando criança e desenvolve um senso de culpa rejeitando a religião (ambas as cenas são mostradas em flashback), isto provoca a frigidez junto ao marido que ama, enquanto, estranhamente, desenvolve tendências sadomasoquistas que fantasia e busca satisfazer com estranhos, o que trará graves consequências. O surrealismo de Buñuel surge nas cenas finais, abrindo a possibilidade de que tudo não passava de fantasia da protagonista – erotismo não existe fisicamente, mas na imaginação. Muitos críticos interpretam que Buñuel defende a libertinagem de Séverine como um processo de cura de seus traumas causados, não pelo abuso sofrido, mas pela repressão social. Mas o que se impõe é a realidade de que a desenfreada liberação das pulsões só provoca desgraça.


The Discreet Charm of the Bourgeoisie (1972): Uma série de sonhos dentro de outros sonhos, sem uma trama clara, em torno de seis pessoas da classe alta e suas tentativas consistentemente interrompidas de fazerem uma refeição juntos. As insinuações políticas empalidecem diante da engenhosidade da construção narrativa, e da airosidade e esmero desta. Mesmo assim a intelligentzia fez contorcionismo para analogicamente ver no filme "conotações edipianas", ataques ao "horror patriarcal", e até classificar os seis frustrados comensais como classe média, vendo na "refeição" um rito burguês (como se alimentar-se fosse exclusividade de um grupo econômico). As referências a violência policial e ditaduras latino-americanas são tão ridículas que só fazem rir. A impossibilidade de completarem uma refeição juntos remeteria a incapacidade dos convidados deixarem a festa em The Exterminating Angel, e sua desgastada conotação política de erosão da burguesia. Fato é que aos 72 anos de idade Buñuel colocava o seu cinema do absurdo em outro patamar. Notar o charme e elegância da atriz Stéphane Audran, paradigma da parisiense mitológica.


The Phantom of Liberty (1974): Série de anedotas e paradoxos interligados mas sem coesão narrativa. A liberdade do filme é colocada no sentido de liberdade de escolha diante do acaso, mas a intelligentzia ligou o “fantasma” do título ao “espectro” da primeira linha do Manifesto Comunista. A narrativa faz menções a pedofilia, desleixo dos pais com os filhos, afastamento da beleza clássica, perda do pudor, engodo malthusiano, relativismo cultural (cita a charlatã Margaret Mead para ilustrá-lo), incesto, deturpação da função religiosa, falência da justiça, o intelectual assumindo papel nocivo, perversão sexual, e a falácia revolucionária (o grito de “Vive les chaînes!” (“Viva os grilhões!”) proferido pelos revolucionários que prometem liberdade e entregam mais opressão) – o mundo de The Phantom of Liberty é o do materialismo sem transcendência. O filme funciona como uma sequência de The Discreet Charm of the Bourgeoisie, explorando a loucura humana com momentos divertidos e emblemáticos. O diretor se recusa a permitir que seus atores representem, sendo não mais que instrumentos humanos que ilustram o embate das significativas liberdades de escolha.


That Obscure Object of Desire (1977): A complicada relação entre um velho parvo e uma jovem oportunista. Baseado no romance La Femme et le Pantin (1898) de Pierre Louÿs – esta foi a sexta de um total de oito adaptações do livro para o cinema realizadas até hoje. A elusiva vigarista é representada por duas atrizes, pois a mulher dos sonhos do velho babão não existe. A narrativa é algo monótoma, as tentativas de fazer graça são pobres, e as alegorias políticas nada inspiradas. O embate político ao final do filme indica que Buñuel, ao final da vida, colocava todas as tendências políticas num mesmo saco. Foi o último filme do Buñuel, um desafinado canto do cisne do mestre do cinema surrealista.

©2019 by Cultura Animi

    bottom of page